sábado, 1 de janeiro de 2011

Porto de Galinhas Era o Paraíso


Chegaram a Porto de Galinhas ao entardecer. Era como o paraíso estendendo-se diante de seus olhares maravilhados. O vento gemia nos coqueirais que se espraiavam rente à faixa arenosa. Um pouco além, na imensidão da tarde, as ondas quebravam em sucessão ritmada. O mar era o mundo alongando-se para além da linha do horizonte. Descobriram o paraíso naquele miraculoso entardecer de dezembro, 1971, e o paraíso chamava-se Porto de Galinhas.

Porto de Galinhas era então uma pequena vila habitada por pescadores, gente pobre e obscura que vivia da pesca, do trabalho nos canaviais que dominavam a paisagem entre a praia e a rodovia e de uns fiapos de economia coletora. Não havia luz elétrica, saneamento nem água encanada e o acesso à praia era difícil o suficiente para revestir-se de certo toque de aventura na imaginação exaltada daquele grupo de jovens universitários.

Alugaram a casa de um dos pescadores situada na rua que é ainda a rua central da praia. Era uma casa modesta, mas ainda assim uma das melhores da vila. Tinha dois ou três quartos nus, varanda e quintal. Levaram colchões e esteiras, além de alguns objetos necessários à sobrevivência durante um mês naquela praia remota. No decorrer desse tempo o grupo sofreu frequentes variações, pois parte dos jovens precisava dividir o tempo entre a praia e o Recife.

Ecoando o espírito da época, muitos eram politizados, embora impedidos de praticar a política ou já desinteressados de o fazer. O sentido de politização da vida era tão poderoso, mesmo naquela vila remota, que precisavam de algum modo justificar sua omissão, sua rendição prazerosa à gratuidade da vida, sua recusa da política. Foi ali, naquele remoto verão, que alguns descobriram a literatura hispano-americana lendo García Márquez, Vargas Llosa, Julio Cortázar, Alejo Carpentier e Neruda. Alguns, já conscientes do engodo que é a baixa literatura travestida de literatura engajada, riam de Thiago de Melo, em particular de um livro que embrulhava em versalhada as ilusões esquerdistas do tempo: Faz escuro mas eu canto. Era o caso de José Carlos Freire, que entre risos ameaçava os que à noite lhe tiravam o sono com brincadeiras importunas: “Se não me deixarem dormir, leio em voz alta três poemas de Thiago de Melo”. Era o suficiente para que todos, entre gargalhadas, o deixassem dormir em paz.

Alguns dentre aqueles jovens estudavam medicina. Representavam na Macondo que era então Porto de Galinhas a última geração de médicos inspirados por uma formação de tinturas humanistas e decidido sentido de participação social. Daí a saliência de uma noção política da vida, daí o exercício da medicina social que nitidamente marcou a formação de todos eles. Embora impedidos de militarem politicamente, compensavam esse veto estagiando em hospitais e clínicas públicas, atuando dentro dos limites possíveis nos diretórios acadêmicos da universidade. Mas aquele mês de verão vivido no paraíso de Porto de Galinhas foi um mês de pura e inocente farra, um mês de descoberta de prazeres virgens e insólitos.

O amor era uma descoberta iluminada, diria mesmo inocente. Embora simbolizassem uma geração pioneira, a que começou a rotinizar o sexo entre namorados e a fundação de uma ética avessa à tradição assimilada dentro da família, sintomaticamente criticada a partir de ideais libertários tangidos pelo espírito de uma nova esquerda, nunca se entregaram à promiscuidade sexual, à infidelidade, à dissipação erótica e à cultura da droga que alguns somente mais tarde abraçariam ou provisoriamente provariam inspirados pela curiosidade ou gosto do experimento. A amizade entre casais de namorados, tão intensa entre alguns, era revestida de certa inocência sublimadora das pulsões eróticas que noutros círculos já começavam a arrebentar e logo mais tarde desaguariam na permissividade hoje rotineira.

Embora desatados das repressões correntes na família de então, usufruíram daquele estado de liberdade única à beira das águas iluminados pelo esplendor das noites enluaradas e pelas canções de Chico Buarque, Edu Lobo, Caetano Veloso, Baden Powell, Vinícius de Moraes e Toquinho comportando-se como um grupo de jovens alegres e inofensivos no seu espírito festeiro. É certo que mudaram a rotina da vila entrando madrugada a dentro na ronda da praia, mergulhando nas águas em noites de luar e dançando ciranda, inventando brincadeira para ver quem seria capaz de ficar aceso na praia até o amanhecer. Também bebiam, sobretudo batida de limão, tão comum nas bebedeiras da época. Certa noite, um deles excedeu-se e armou um dramalhão de menino embriagado. Depois de muita cena e até lágrima de meninão ainda oprimido por obscuros traumas de família, entregou-se às águas num patético simulacro de suicídio para morrer nos braços de Iemanjá, mas logo foi salvo pelo lendário Capitão América.

Havia a música adornada pelos sopros líricos daquele paraíso tropical. Para alguns, os mais líricos, quatro discos compunham o fundo musical fruído à beira mar sob os esplendores da lua cheia. Levavam lençóis que estendiam sobre a areia e se deitavam namorando ou contemplando a vastidão do mar onde a lua se espelhava. Foi ali decerto que um deles viveu iluminações de fundo místico que Freud designou como “sentimento oceânico” da existência.

Mas vamos aos quatro discos acima mencionados. O primeiro era “Lotus”, de Baden Powell. Nunca foi infelizmente reeditado na forma de cd agora corrente. Algumas faixas, entre as melhores num disco de comovente intensidade lírica, circulam agora em coletâneas. É o caso de Viagem. O segundo era “Como dizia o poeta”, um dos pontos altos da parceria Vinícius-Toquinho. O disco ainda hoje impregna a memória musical de alguns que viveram o verão aqui evocado, mas caberia ressaltar Tarde em Itapuã. O terceiro era “É doce morrer no mar”, disco que reúne o melhor das canções praieiras de Dorival Caymmi. Ouvi-lo naquela atmosfera de sonho era uma experiência de dimensão emocional intraduzível em palavras. Por fim, havia “Construção”, disco lançado naquela época que evidenciava o grande poder de renovação de Chico Buarque como compositor. A faixa que confere título ao disco era sem dúvida a melhor, mas talvez outras tenham marcado bem mais profundamente a memória do paraíso fugaz que foi Porto de Galinhas.

Que me lembre, o medo hoje corrente nas nossas praias e cidades ainda não invadira as vidas ruidosas daquele grupo de jovens. Havia, sim, o medo da repressão política imposta pela ditadura em plenos anos de chumbo. Mas esse temor importava apenas para os poucos politicamente ativos dentro do grupo, aqueles que de algum modo, com ou sem medo, moviam-se entre as brechas estreitas através das quais a liberdade e o espírito de oposição respiravam. À parte isso, Porto de Galinhas era um território livre, um paraíso ecológico animando os sonhos e fantasias daqueles jovens inconscientes de forças e poderes que mais tarde atravessariam suas vidas. O fato é que nas ruas, nas praias desertas e mesmo nas grandes cidades, como era o caso do Recife, residência de todos ali reunidos, não se banalizara o medo que no presente assalta nosso cotidiano.

Havia ainda as caminhadas em grupo ao longo da larga faixa de areia que se forma na praia quando as ondas recuam. Andavam muitos quilômetros, ora em direção ao Sul, passando por Maracaípe e o Pontal de Maracaípe, ora em direção ao Norte, onde alcançavam Cupe e Muro Alto. Essas caminhadas eram tão divertidas e variadas, oscilando entre as travessuras em grupo e a formação de casais entretidos em conversas por vezes sérias e confessionais, que nem se lembravam de cansaço ou desânimo.

Mas o fato é que os anos passaram, muitos anos passaram. A ditadura recuou, sobrevieram a anistia e a redemocratização, a década perdida e outras perdas acrescidas de alguns ganhos, já que ninguém é de ferro. Hoje, no momento em que digito essas memórias turvas e grupais, o Brasil move-se na maré montante da acumulação capitalista, da febre de consumo e do otimismo coletivo típico dessa época de festas, sobretudo quando o cenário econômico é tão animador. Como não sei de bem que não segregue males, reitero o lugar comum com alguma variação de forma, a própria expansão capitalista está gerando problemas que tendem a converter o Recife num inferno urbano. Em suma, Recife está se tornando uma cidade intolerável para gente do meu tipo com seu trânsito maluco, tão anômico e violento que mais semelha um ensaio de guerra civil.

Parte desses males estendeu-se para as cidades do interior e para as praias, notadamente Porto de Galinhas. Hoje ela é a mais badalada e concorrida do litoral pernambucano. Há anos, aliás, tornou-se um dos pontos de eleição procurado por turistas de todos os lugares do Brasil, além de muitos estrangeiros. A transformação de sua paisagem humana foi tão profunda no decorrer dos anos que a separam das memórias aqui evocadas que aquele remoto verão de 1971-72 semelha antes um sonho, uma fantasia tramada pela memória carente de evasão dessa realidade espremida entre muralhas de concreto, engarrafamentos opressivos e ruas ruidosas onde circulam massas histéricas.

Há muito felizmente libertei-me das prisões emocionais que tendem a produzir nostalgia, esse tipo de olhar desfigurador do passado tendente a recompô-lo com linhas e cores e situações humanas que nunca existiram, salvo na nossa memória carente de consolação ilusória. O que esbocei nesta breve crônica de memórias foi algo da realidade objetiva e da atmosfera emocional que marcaram minha vida e a daqueles amigos, há muito dispersos no tempo e no espaço, que descobriram Porto de Galinhas quando ela se abria ante nossos olhos deslumbrados e nossa imaginação como se fosse o paraíso, o paraíso fugaz que efetivamente vivemos naquele remoto verão. Mas sei que a própria noção de paraíso é antes de tudo um outro modo de consolação ilusória. Afinal, dentro do próprio paraíso que provei, ou antes figurei na minha imaginação, sentia já o gosto amargo da realidade que me espreitava dois passos além da praia, senão dentro da sua própria paisagem embriagante. O fato é que dali parti iluminado por um mês que transfigurou minha vida crivada de carência e incerteza. Foi graças àquele verão que descobri e fruí alguns dos mais belos momentos de minha juventude; também, por contraste, sofri o bastante para perder em definitivo a poeira das ilusões que deitei à margem da estrada ou lancei ao sopro da brisa que varria o mar de Porto de Galinhas.

Recife, 24 de dezembro de 2010.

4 comentários:

  1. Querido Fernando Mota.
    Poderia ser Macondo, Igarapeba, Ribeirão, ou Yoknapatawpha. Aliás, William Faulkner disse, e concordo, que o tempo é a convergência do pensamento de todos os que respiram o momento. Porto é a pluma que o vento vai levando pelo mar.
    Abraço forte,
    Cap

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  2. Cap: pulando do tempo e do espaço para o vinho, um amigo, César Melo, obrigou-me a confessar que o vinho da foto é o sangue de boi. Pois é, éramos líricos e pobres. O vinho que o dissesse. Se eu fosse Ariano Suassuna, promoveria um movimento de restauração de Porto de Galinhas; faria com que regredisse aos paradisíacos anos 1970: pescadores, pobreza ecológica, e luz de candeeiro. O que matou Porto de Galinhas foi a luz elétrica. No rastro desta vieram o progresso à moda nordestina e a barbárie turística.
    Nando Saudade.

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  3. Fernando,
    Um enólogo disse-me agora que nosso vinho é mais nobre que Romanée-Conti. A maturação atingiu o ápice 40 anos depois, eis a prova.
    O similar francês, que bebo a contragosto, exige de seis a 12 anos.
    Abraço
    Cap

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  4. Dear Cap: bendita revelação. Isso quer dizer que precisamos repor o sangue de boi no mercado pontuado por este refrão publicitário: eu bebo, sim /sangue de boi / tem gente que não bebe / e já se foi.
    Benditos você e eu que ficamos porque bebemos,
    Fernando.

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