domingo, 16 de janeiro de 2011
Onegin
Paixão Proibida (Onegin)
Segundo o consenso crítico, Onegin, de Alexander Pushkin, é a obra fundadora da modernidade literária na Rússia. Romance composto em versos, consumiu anos de trabalho dentro da evolução criativa de Pushkin e por fim converteu Onegin e Tatiana, protagonistas da obra, em símbolos literários de uma cultura, então periférica no contexto europeu, que ao longo do século realizou a façanha de inscrever definitivamente a literatura russa no cerne da cultura universal. O fato é um problema fascinante e aparentemente insolúvel para os estudiosos, digamos os sociólogos da arte e da cultura, que precisam explicar como um país regido por uma autocracia impiedosa, povoado por uma massa de camponeses castigados pela servidão e uma elite alienada da cultura do seu povo foi capaz de produzir gênios de força criativa impressionante como Pushkin, Gogol, Turgueniev, Dostoiévski, Tolstói e Tchecov. É claro que poderia acrescentar a estes, sem dúvida maiores, alguns outros também incorporados à mais alta tradição literária do Ocidente. A obra de Joseph Frank Dostoevsky – A Writer in his Time, e também Natasha´s Dance, do historiador da cultura Orlando Figes, fornecem o mais denso e impressionante painel histórico para que melhor apreciemos essa experiência artística singular. A elas acrescentaria uma obra de Isaiah Berlin já traduzida no Brasil: Os Pensadores Russos (Russian Thinkers).
A adaptação cinematográfica de Onegin é em larga medida um empreendimento da família Fiennes cujo nome mais célebre é Ralph Fiennes, que interpreta Onegin com talento excepcional, como de hábito. Ralph foi também o produtor executivo do filme. A diretora é Martha Fiennes, irmã de Ralph, e a música é de autoria de Magnus Fiennes. Aliás, importa registrar a beleza da trilha sonora, notadamente a valsa que constitui o núcleo temático da trilha. Ressaltaria por fim o roteiro, coassinado por Michael Ignatieff, biógrafo de Isaiah Berlin. Ambos, Ignatieff e Berlin, são intelectuais de ascendência russa. Embora canadense, Ignatieff é filho de um diplomata russo e viveu muitos anos na Inglaterra onde se distinguiu como apresentador de um programa de televisão da BBC simplesmente inconcebível na mídia brasileira dada a excelência do seu nível intelectual. Refiro-me ao programa The Late Show que me conferiu a oportunidade de ver e ouvir pouco antes das frias e solitárias meias-noites inglesas intelectuais do porte de Isaiah Berlin, Christopher Lasch, Harold Pinter, Simon Schama, Martin Amis, Salman Rushdie, Ewan McEwan... Ressaltaria, por fim, o romancista e poeta D. M. Thomas, responsável pela tradução e adaptação das cartas de Onegin e Tatiana incorporadas ao roteiro do filme. Seu romance de maior repercussão é O Hotel Branco (The White Hotel), já traduzido no Brasil.
Onegin e Tatiana (Liv Tyler) são filhos russos de Rousseau. Quero dizer, expressam nos seus modos de sensibilidade a sensibilidade romântica cuja paternidade pode ser atribuída à obra de Rousseau. É certo que antes e sobretudo depois dele houve quem expressasse, na vida quanto na obra, esse modo de sensibilidade que vincou de forma profunda a ascensão da burguesia no século 19. Mas ninguém superou Rousseau na radicalidade filosófica e estética com que reivindicou a soberania da sensibilidade individual contraposta à tradição dos costumes da nobreza, ao racionalismo e ao materialismo e utilitarismo burgueses. Portanto, não é à toa que Onegin e Tatiana, já na primeira conversa que travam, sintomaticamente na livraria do primeiro, aludem explicitamente a Rousseau. Onegin recomenda a Tatiana a leitura de A Nova Heloísa (La Nouvelle Héloïse), romance em forma epistolar que causou efeitos devastadores à época em que vivem os protagonistas de Paixão Proibida (Onegin).
Tatiana é uma jovem bela, reclusa na solidão impregnada pela ficção romântica que mudou radicalmente os modos de sensibilidade dominantes estendendo seus efeitos à própria atmosfera da cultura contemporânea, quando agora mergulha numa crise dilacerante que evidentemente não teria como considerar nos limites desta crítica baseada no filme. Sua concepção do amor, fundada na idealização do objeto amoroso e na autenticidade radical da sensibilidade de quem ama, atesta o quanto simboliza a sensibilidade romântica consagrada na obra de Rousseau. Sugerindo um paralelo com outra personagem fundamental da tradição literária, Madame Bovary, seria possível afirmar que ela está para a estética romântica assim como Madame Bovary está para a realista.
Onegin vive em São Petersburgo uma vida reduzida ao tédio (o ennui romântico tão característico de Byron e Musset) e à dissipação nos círculos aristocráticos. As cenas iniciais recortam de forma nítida esses traços românticos do protagonista. O tédio se expressa antes de tudo na sedução mórbida da morte. Mas ele é bruscamente deslocado desse ambiente aristocrático e dissoluto para o mundo rural russo. A morte do tio transforma-o em herdeiro de uma invejável riqueza traduzida em terras e muitas almas (a população de camponeses servis da Rússia).
Instalado solitariamente na propriedade herdada, Onegin se rende à vida indolente, ao modo de vida típico do “homem supérfluo”, personagem célebre na tradição literária da Rússia. Logo um encontro acidental com Vladimir Lensky (Toby Stephens) introduz na trama uma amizade tensa e crivada de antagonismos que espelha nos valores e atitudes dos dois personagens tensões e impasses da própria realidade cultural do país. A mais nítida é observável na tensão entre a cultura citadina de Petersburgo, símbolo da cultura europeia servilmente assimilada pela aristocracia, e a cultura rural aderente a valores eslavos. Lensky, na verdade, não traduz fielmente essa oposição aqui sugerida, pois nele notamos o timbre da cultura alemã, já evidente no lied de Schubert que horrivelmente canta na cena em que conhece Onegin. Além disso, é um poeta provinciano deslumbrado pela cultura de Petersburgo. É este de resto o ponto de imediata ambivalência na sua relação com Onegin, já que a seus olhos este representa valores que inveja, mas lhe são vedados, daí suas reações de hostilidade e ressentimento diante do amigo.
Retomando a tensão acima aludida entre a cultura europeia e a tradição eslava correntemente invocada pelos nacionalistas russos como símbolo de uma identidade oposta à cultura ocidental assimilada pela aristocracia, nenhum dos personagens encarna valores que seriam tipicamente russos. A própria Tatiana, embora celebrada por Dostoiévski como o tipo ideal russo, está impregnada do ocidentalismo que este tanto odiava. Já acima notei como ela foi profundamente influenciada pela sensibilidade romântica assimilada na obra de Rousseau e certamente outros heróis românticos da época. Dostoiévski, de resto, ilustra essa mesma contradição entranhada na ideologia do nacionalismo cultural onde quer que se manifeste. Não é portanto sem razão que Nabokov observa provocativamente ser Dostoiévski o mais europeu dos escritores russos.
Outro personagem que bem evidencia a subserviência das camadas letradas russas à cultura europeia, antes de tudo francesa, é Monsieur Triquet (Simon Mcburney) tutor da família Larin (Tatiana, Marsha, sua mãe, e Olga, sua irmã noiva de Lensky). Essa subserviência é tão patente que Triquet se sente à vontade para de forma arrogante opor o refinamento e a delicadeza francesas, índices de alta civilização, à incivilidade russa. Embora não passe de um sedutor arrogante e afetado, Triquet enfrenta resistência apenas de Onegin.
A questão da servidão é também introduzida no filme. Onegin declara-se contrário à sua permanência, ponto de vista incomum à época e portanto ousado. Vai além da oposição retórica e adianta estar determinado a arrendar suas terras a seus próprios servos. Se Tatiana desde o início já se sentia atraída por Onegin, este fato desperta de forma decisiva sua sensibilidade romântica. Reforça o ponto de vista de Onegin ao acentuar a injustiça de um sistema que condena milhões de pessoas à opressão em decorrência de um acidente de origem social. Quando mais tarde Tatiana pergunta a Onegin se ele irá de fato arrendar suas terras a seus servos, ele responde afirmativamente, mas acrescenta fazê-lo por força apenas de sua ociosidade.
Perdidamente apaixonada, Tatiana cede ao impulso romântico e à autenticidade da sensibilidade romântica ao escrever uma carta a Onegin na qual candidamente expressa seu amor. Este a recusa, mas procede com cavalheirismo louvável e até surpreendente num herói de hábitos dissolutos e ociosos, ao argumentar de forma honesta contra a possibilidade do amor que Tatiana lhe oferta e ardentemente deseja. O diálogo que travam espelha nitidamente o conflito entre a jovem de coração romântico e o homem cético ou entediado diante do que lhe parece a realidade do amor. Esta cena ocorre a meio da festa de aniversário de Tatiana.
De volta à festa, onde os convidados animadamente dançam, Onegin flerta com Olga (Lena Headey). De caráter bem distinto da irmã, Olga é volúvel e facilmente se deixa atrair por Onegin ante os olhos ciumentos e exaltados do noivo, Lensky. Este episódio se agrava precipitando o desafio que Lensky lança contra Onegin para que decidam a disputa num duelo. Daí o filme marcha para a situação de desenlace que transforma radicalmente o andamento da trama: Onegin mata Lensky, Olga logo lava o luto da alma ao casar com um militar, Onegin parte para o estrangeiro e Tatiana é negociada pela tia astuta, segundo as normas culturais da época, nos salões aristocráticos de São Petersburgo. Encurtando a história, casa com o príncipe Nikitin (Martin Donovan).
Os anos transcorrem e eis que enfim Onegin reaparece durante um baile oferecido por Nikitin e Tatiana. A ironia cruel da vida, ou da trama romântica, reverte agora os papéis. Onegin apaixona-se obsessivamente por Tatiana, que ainda o ama, mas ama acima de tudo seus deveres de fidelidade a um homem que reconhece não amar, mas é afinal seu marido. Rejeitado por Tatiana e sua inflexível e atormentada fidelidade, Onegin sofre sem pausa a dor do amor, o mesmo amor romântico que antes rejeitou na mulher que ainda o ama, mas o amor já não é mais possível. Agora é ele quem lhe escreve cartas de amor saturadas de dor e desespero, cartas que ela rasga e depois queima.
A cena do encontro final entre os amantes impossíveis é uma das cenas românticas mais dolorosas e patéticas do cinema. Parecem-me sugestivamente simbólicas as cores antagônicas que vestem: ela inteiramente de branco, ele de preto. O branco simboliza a pureza atormentada de Tatiana, sua fidelidade ao dever posta acima do amor desejado e insofreável, mas adúltero; o preto é o símbolo do sombrio e desesperado amor de Onegin, condenado a conduzir sua vida esvaziada de sentido pelas ruas desertas e geladas de São Petersburgo.
Créditos:
Título: Paixão Proibida (Onegin)
Baseado na obra de Alexander Pushkin.
Roteiro: Michael Ignatieff e Peter Ettedgui
Direção: Martha Fiennes.
Música: Magnus Fiennes
Elenco: Onegin (Ralph Fiennes)
Tatiana (Liv Tyler)
Lensky (Toby Stephens)
Olga (Lena Headey)
Nikitin (Martin Donovan)
Marsha (Harriet Walter)
Triquet (Simon McBurney).
Recife, 11 de janeiro de 2011.
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