sábado, 8 de janeiro de 2011

England, my England


Cheguei pela primeira vez à Inglaterra no dia em que completei 40 anos. Como escreve Drummond num dos seus melhores poemas, “Quarenta anos e nenhum problema / resolvido, sequer colocado”. Uma cadeira de rodas aguardava-me quando desembarquei no Aeroporto de Heathrow. Foi assim que se deu minha iniciação na democracia que sempre sonhei, aquela onde a cidadania é já uma prática tão corrente que somente causa espanto a quem proceda de um país como o Brasil. Refazendo-me de uma cirurgia no menisco interno, caminhava ainda com certa dificuldade. Daí a cadeira de rodas e o funcionário que me conduziu através do aeroporto com solicitude e paciência exemplares. Eu, afeito às práticas sociais brasileiras, eu é que me senti constrangido por ocupá-lo durante tanto tempo enquanto passava pelo ritual da alfândega, trocava moeda no câmbio etc. Por fim tomamos um táxi, eu e minha amiga Conceição Lafayette, e seguimos para a Universidade de Essex.

A universidade, uma das que surgiram na Inglaterra na segunda metade do século 20, situa-se entre Colchester e Wivenhoe Park. Para quem vinha de uma universidade brasileira, recaio nas comparações inevitáveis, aquela era uma paisagem de sonho. O verde estendia-se sobre os campos, já recobertos pelas folhas caídas das árvores, sinal do outono que se avizinhava. Para além dos prédios, dois lagos e algumas veredas cortando a mata rala. Os lagos inspiraram, aliás, um quadro de Constable, talvez o maior pintor paisagista inglês.

Foi dentro dessa paisagem tão bela e fria que me instalei na Eddington Tower com certa inveja de Conceição, que teve o privilégio de ser encaminhada para a Bertrand Russell Tower. Como era então apaixonado pela obra de Russell, hoje a releio com mais reserva e distância crítica, tocou-me um pouco a frustração de não ser hóspede da residência de quinze andares adornada pelo seu nome. Não bastasse tanto, não tinha a mais vaga ideia de quem fora Eddington. Somente mais tarde é que descobri que foi um grande astrofísico inglês. Como sou iletrado em matéria de física, astrofísica e saberes afins, imaginei que Eddington fora o inventor do futebol ou o primeiro gramático da língua inglesa. Adotei essa fantasia e a ela me mantive fiel mesmo depois de saber quem de fato fora.

Mal assentei os pés na Eddington Tower, apaixonei-me tolamente por Petra. Era uma holandesa loura e linda como uma boneca, o corpo belo distribuído em linhas que me entonteciam nas noites de solidão curtida no quarto minúsculo que era meu pouso e refúgio. Digo refúgio porque logo fui atormentado por uma experiência de cunho regressivo que me fez evocar uma observação muito aguda ouvida anos antes de Gérard Licari: “Fernando, aprender uma língua é uma experiência regressiva, uma regressão à infância”. De fato, ao me defrontar com o mundo inglês, naturalmente regido pela língua inglesa, contraí-me embaraçado, minha severa consciência crítica turvando-me a fala e o entendimento em situações de convívio continuadamente embaraçosas. Como então conversar com Petra, como me valer de minha fluência verbal, de minhas táticas líricas e sedutoras para conquistá-la? Afundei num poço fundo e sombrio, isto é, tranquei-me no meu quarto refugiando-me assim do convívio com os quinze jovens (oito mulheres e sete homens) que comigo compartilhavam o segundo andar da Eddington Tower.

Logo descobri na biblioteca de Colchester, explorando a seção de áudio e imagem, os talking books que muito concorreram para apurar meus ouvidos. Como minha preocupação era assimilar vorazmente o inglês que não aprendi no Brasil, pouco importava a qualidade dos livros que ouvia lendo-os ao mesmo tempo. Importava era a torrente das palavras, a forma como os sons se combinavam, além naturalmente da camada semântica do discurso. Lia e ouvia esses livros obsessivamente trancado no meu quarto, evadindo-me do convívio com as pessoas. Habituei-me assim a atravessar madrugadas de solidão e frio, ocasionalmente fazendo uma pausa, quando já exausto de estudar, para contemplar a fria e deserta paisagem do campus. E assim vivi num mundo à parte durante muitos meses, penando para atravessar a floresta de sons e sentidos condensados em romances de Raymond Chandler, Graham Greene, Anita Brookner, Penelope Lively, P. D. James, Ruth Rendell, Patricia Highsmith, Ford Madox Ford, Joseph Conrad, Thomas Hardy, Ed McBain e poetas como Eliot, Auden, Stephen Spender, Wallace Stevens, Yeats, Philip Larkin...

Por mais que o refúgio da solidão me enchesse a vida e me desbastasse a selva linguística através da qual errava e avançava, por vezes assaltava-me o desamparo do mergulho num mundo estranho e remoto. Salvavam-me desse aperto o convívio com Conceição, a baiana Lígia Bellini, de quem me tornei grande amigo e confidente, o paulista Renato e o grupo de mulheres associado a Conceição. Algumas eram de língua espanhola, vizinhança que já me deixava mais à vontade. Outra amizade decisiva nesse momento difícil foi a que vivi com Nice, nossa amiga de São Paulo que era um modelo de desprendimento e afeto, sempre a postos na amizade desinteressada com que animava gente de todos os tipos e procedências. A ela devo, entre outras coisas, o empréstimo oportuno de um violão espanhol que mais tarde comprei e ainda hoje é parte de minha vida mais lírica e íntima.

Passado esse estágio mais difícil, o do acesso a um mundo novo através da linguagem, que de resto é nossa única via de acesso a ele ou a qualquer outro mundo, senti-me mais livre e confiante para conhecer gente, associar-me a estranhos, explorar possibilidades de vida tão rica e diferenciada. Estudando numa universidade inglesa, tinha à mão uma infinita variedade de expressões humanas, de modos de cultura e experiência simplesmente incogitáveis num país das dimensões do Brasil, tão pouco permeável ao contato efetivo e vivo com outras expressões de cultura. Ali naquele minúsculo espaço do mundo que era o campus podia numa noite ou simplesmente na rotina da universidade conhecer gente de todas as partes do mundo, cada uma portando valores de cultura ainda então por mim ignorados, ou então abstratamente colhidos nas páginas de livros ou imagens de filmes ou outros meios de expressão estética.

É outra coisa, bem outra, saber das pessoas conhecendo-as na sua materialidade física, na expressão viva da voz e dos gestos, na conversa convertida em via de acesso a mundos culturais impensáveis dentro das fronteiras em que até então vivera. Meus anos na Universidade de Essex franquearam-me a oportunidade única de conviver, em alguns casos intimamente, com gente de todas as procedências. Começando pelo andar da Eddington Tower, onde vivi meus seis primeiros meses de Inglaterra, convivi com gente da Escócia, China, Holanda, Uruguai, Grécia, França, Barbados, Irlanda e até Inglaterra. Ampliando meu raio de convívio, fiz amizade com John Magee, que muito me ensinou sobre a Irlanda. Também, já bem mais tarde, o indiano Aditya, professor do Depto. de Economia que se tornou um dos meus melhores amigos. Machado de Assis, que ele lera graças a uma sugestão de leitura de Salman Rushdie, foi nosso elo de ligação inicial. Através de Nice, que já estudava em Essex há vários anos, cheguei a gente de muitas nacionalidades. No ambiente do meu departamento, Sociologia da Literatura, também conheci muita gente interessante, apesar de minha timidez que somente o tempo, o convívio amável com as pessoas e antes de tudo a autoconfiança conquistada através do estudo e do domínio da língua fizeram mais tolerável e discreta.

Um dia Kate Rhodes entrou na minha vida através da porta da sala que durante anos compartilhamos no Depto. de Sociologia da Literatura. Era uma inglesa linda e morena, apaixonada por teatro e dedicada a um trabalho de tese sobre o teatro de Tennessee Williams. Sua doçura, civilidade e inteligência logo me cativaram e logo daí passei ao culto de um amor travado, um amor em mim retido que somente ousei lhe confessar mais de dois anos depois. Minha timidez no mundo inglês chegou a esses excessos espantosos. Embora tivesse namorado, bem pouco interessado em teatro e literatura, aparentemente também bem pouco interessado nela, era comigo que compartilhava a paixão pelas peças que vimos em Colchester, na própria universidade e também em Londres. Quando viajou para os Estados Unidos, para cumprir parte dos seus estudos de doutorado, trocamos cartas muito afetuosas e íntimas. Quando todavia retornou, traiu minhas expectativas mais amorosas e latinas ao evitar cautelosamente qualquer momento de solidão a dois, qualquer margem de contato íntimo.

Um dia, em pleno verão, fomos juntos a uma festa na Roman Road, endereço de uma bela casa utilizada como residência externa da universidade. Nela moraram Renato, meu amigo paulista, e mais tarde Paulo Branco, meu amigo de Brasília. Também a anglo-indiana Bani Makkar, outra paixão que tive na Inglaterra. Bebendo vinho no pátio da casa, descortinava uma linda noite ainda recoberta pela luz do dia, embora o relógio viajasse além das 21h. Quando a acompanhei de volta para casa, pois morávamos ambos no Dutch Quarter, área central de Colchester, não mais resisti à tentação de afinal lhe declarar meu amor, aquele amor lírico e dissimulado que em mim retive durante cerca de dois anos. Quando enfim verti meu amor nos seus ouvidos, virou-se para mim e calmamente afirmou: “Fernando, love is a very serious matter”. E assim ficamos conversados e assim nunca mais me atrevi a lhe falar do meu amor. E assim continuamos os mesmos amigos de antes. Vá um brasileiro romântico e sexualmente impulsivo entender essas peculiaridades inglesas.

O verão de 1990 foi meu grande verão inglês. Já desenvolto, na língua assim como no convívio, cantava música brasileira acompanhado por meu canhestro violão. Ninguém aparentemente notava o quanto tocava mal. Se acaso notava, era generoso e educado o suficiente para nunca observar sem meias medidas: como ele toca mal. Como felizmente não canto mal, compensava uma falta com um ganho consciente. Assim, muitas vezes acolhi amigos na minha casa onde entretínhamos conversa animada, vinho tinto e cerveja e música.

No verão de 1990 abri ainda mais as minhas portas e por ela passaram muitas pessoas, sobretudo Carmen, a espanhola de Segovia que unanimemente elegemos como a musa daquele verão. Como legítima beleza latina, Carmen adorava saber-se eleita nossa musa. Uma corte de homens formou-se à sua volta: o chileno Claudio Andia, o inglês Christopher, o irlandês John Magee, seu mais lírico e devotado adorador, Barah, do Afeganistão, Mazen, do Líbano, o paulista Walter e naturalmente eu. Não é preciso muito exercício de imaginação para adivinhar a quem escolheu. Escolheu Walter, o cafajeste do grupo, o que a queria somente por desejo momentâneo e puro desfrute. Levou-a para a cama e logo a abandonou, além de sair vaidosamente espalhando sua façanha, feito típico de machinho latino. Carmen sofreu no silêncio de suas sete chaves e depois foi morar... adivinhem? com o mais tedioso e desinteressante do grupo: o inglês Christopher. Não bastasse tanto, marcava encontro comigo no bar da universidade. Depois de algumas cervejas deixava-se seduzir e estimulava meus jogos de sedução sem no entanto ceder. Por fim Christopher chegava e ela me deixava sozinho na mesa depois de um beijo e uma carícia no meu cabelo. Entendam os caprichos da imaginação erótica feminina.

Um dia, já depois de muita bebedeira, reuni-me no pátio da universidade com aquele grupo de amigos formado no verão de 1990. Pediram-me que eu cantasse uma música bem brasileira, cheia de alegria etc. A primeira que me veio à cabeça foi a marchinha carnavalesca Mamãe eu quero mamar. Foi amor à primeira vista ou ao primeiro ouvido. Adoraram-na e insistiram para que eu a ensinasse a eles. À noite tivemos uma festa numa das residências da universidade. A meio da farra, brindaram-me com uma surpresa que muito me comoveu. Pediram silêncio e então anunciaram que cantariam em minha homenagem a marchinha brasileira que lhes ensinara poucas horas antes. Foi algo indescritível ouvir Mamãe eu quero mamar cantada por vozes com sotaque inglês, chileno, libanês, irlandês, mexicano...

É difícil fazer com que um brasileiro dos trópicos, atado a vínculos de família, clima e cultura desregrada e festeira, compreenda o sentido da solidão que fatalmente vivemos na Inglaterra. Além do clima, de severidade depressiva para os amantes do sol e dos espaços abertos ruidosamente convividos, pesa a cultura da reclusão, a cultura do convívio indoors, tão regulamentada e ciosa de privacidade que ninguém ousa visitar ninguém sem aviso prévio ou compromisso agendado. Em suma, provei dessa forma de solidão numa extensão e profundidade impensáveis no Brasil. Como todavia a ela muito cedo me afeiçoei, posso dizer que em muitos sentidos me fez bem. Graças a ela pude melhor concentrar-me no estudo, na descoberta de fontes de cultura que prescindem de convívio. Como acredito que ninguém se conhece sem que se submeta a uma intensa experiência de autoexame, penso ainda que nada disso se faz à margem da solidão vivida como objeto de escolha, como ação de recuo voluntário das formas correntes de convívio, do gregarismo inconciliável com a noção da autonomia que caracteriza a individualidade moderna.

Por outro lado, não acho desejável um padrão de cultura cujas normas impõem às pessoas formas de reclusão e frieza tendentes à indiferença. O inglês típico que conheci é admiravelmente civilizado, pautado por uma noção de respeito e tolerância social inconcebíveis no Brasil. Mas não se vive nada disso sem o custo de uma distância social que no limite isola as pessoas erguendo entre elas barreiras que me parecem penosas do ponto de vista do funcionamento saudável do nosso ser psíquico. Era triste, por exemplo, ver o povo inglês nos parques em pleno verão. Cada um, salvo pequenos grupos discretos, move-se no espaço público como uma ilha. Também me parecia por vezes melancólico observar em pleno verão, quando a noite descia às 22h, ruas limpas mas vazias de humanidade, de contato humano tingido pelas cores da alegria e do prazer de viver. Nesse sentido, acho que nossa cultura é de uma vitalidade invejável.

Ponderando assim pela rama algumas das diferenças culturais mais nítidas entre o Brasil e a Inglaterra, muitas vezes, sobretudo depois que retornei à minha terra, dei-me conta de haver me tornado um indivíduo cindido entre dois extremos que, como todo extremo, me parecem indesejáveis. Na medida em que possa individualmente escolher, nem me apetece o extremo brasileiro, que no limite chega à anomia, tamanho é o desregramento que pontua nosso cotidiano cultural, nem o inglês, cujo rigor normativo tende a isolar as pessoas nas suas casas ou na reclusão pública da individualidade privada. Ambos segregam aspectos positivos, tanto nossa sociabilidade desregulada quanto a civilidade fria do inglês, mas os reversos de ambos são também muito onerosos. O problema insolúvel que ainda sofro e certamente continuarei sofrendo pode ser resumido na seguinte pergunta: quanto de repressão no reino da civilização? Ou quanto de abuso no reino da anomia? Se pudesse realizar o país ideal, combinaria o melhor desses extremos observáveis nesses dois modos de cultura tão divergentes.

A Inglaterra me desprovincianizou. Embora há muito avesso a qualquer forma de bairrismo, regionalismo e por fim nacionalismo, todos em graus variáveis males típicos de uma apreensão provinciana da realidade, era ainda prisioneiro de uma experiência provinciana. É certo que lera muito da melhor literatura de corte universalista, assim como sempre procurara abrir meu espírito e minha imaginação para muito além das apertadas fronteiras que confinavam meus 40 anos. Ainda assim, faltava-me talvez o mais importante: faltava-me o contato vivo com uma rica e longeva tradição cultural, ademais diferenciada pelo franco acolhimento de gente de todas as nacionalidades e procedências dentro do seu território.

Como venho de observar, acredito que a Inglaterra me desprovincianizou. Este é um dos bens mais altos que lhe devo e de resto justifica minha anglofilia. Outro foi sua extraordinária civilidade que me facultou ser lá o que nunca consegui ser aqui: um cidadão consciente de que direitos e deveres são o direito e o avesso da cidadania efetiva. Foi lá, naquela ilha tão bela e fria e civilizada que melhor aprendi a compreender o ideal dos dois filósofos que estão entre os que mais profundamente admiro: Sócrates e Montaigne. Procuro humilde e sempre limitadamente realizar-me enquanto indivíduo dentro do princípio que intentaram realizar nas suas vidas exemplares: o princípio da cidadania universal. Sei que isso é antes um ideal ou um mito, mas um mito ao qual vale a pena dedicar o melhor de nossas vidas.

Corrigindo-me a tempo, a Inglaterra não me desprovincianizou. Afinal, a Inglaterra está cheia de ingleses provincianos desatentos ou indiferentes à extraordinária riqueza e diversidade cultural do mundo. Provincianos ou de outro modo etnocêntricos, eis o que de resto somos de forma espontânea e inconsciente, pois a consciência do outro é uma conquista, não um dado. O que ela me forneceu foram condições efetivas de ampliação da minha percepção do outro. Isso é algo que lá encontrei num grau aqui impensável. Mas somos nós que nos desprovincianizamos. Tentarei melhor traduzir essa experiência num artigo que será um desdobramento desta crônica de memórias.
Recife, 26 de dezembro de 2010.

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