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quarta-feira, 18 de maio de 2011

Modernismo e Regionalismo




A história das relações entre o modernismo de São Paulo e o regionalismo de Recife parece o romance familiar de dois irmãos desunidos brigando por heranças e feitos que, quando avaliados de forma isenta, são bens comumente amealhados, refeitos e transmitidos a seus herdeiros, que somos todos nós. Para ser mais fiel à analogia, a briga, ou os rompantes de desunião, são antes de tudo do irmão pobre, isto é, do regionalismo nordestino. O fato é sociologicamente compreensível. Como São Paulo tornou-se, à altura em que o modernismo lá eclodiu, a força hegemônica do país, é compreensível que não conceda importância demasiada ao irmão pobre. Aliás, o fato mesmo de o modernismo eclodir em São Paulo com as características que marcaram seu ímpeto modernizador e internacionalista constitui por si só uma evidência da hegemonia mencionada.

O fato é que só recentemente se afirma uma corrente nos estudos de crítica literária e cultural tendente a reconhecer e sobretudo demonstrar as afinidades que atam esses irmãos desavindos. O crítico pioneiro dessa corrente foi provavelmente José Aderaldo Castelo, como se pode verificar lendo seu livro José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo (1961). Aliás, antes dele Sérgio Buarque de Holanda fez o que pôde, com exemplar isenção crítica, para conciliar os irmãos desunidos quando escreveu em 1951 uma série de três artigos sob o título “Fluxo e Refluxo”. Esquecidos durante muito tempo, podem agora ser consultados pelo leitor na obra O Espírito e a Letra, composta por dois volumes que reúnem seus estudos de crítica literária dispersos durante muito tempo em periódicos inacessíveis ao público.

Sérgio Buarque põe o dedo na ferida, ou no motivo da briga, quando ressalta que o modernismo, embora de início universalista e até cosmopolita, foi também nacionalista e regionalista. Ele faz essa observação, comprovada pela história do movimento, visando corrigir o ponto de vista de Gilberto Freyre, que em 1941 escreveu uma introdução polêmica para seu livro Região e Tradição opondo o regionalismo de Recife, por ele liderado, ao modernismo de São Paulo. O eixo do conflito, ou o ponto de separação entre os dois movimentos, residiria no caráter internacionalista e até europeizante do movimento paulista. No lado contrário, Gilberto Freyre argumenta que se colocaria o regionalismo de Recife cuja inspiração regionalista procurou revalorizar a cultura brasileira a partir de suas fontes regionais e tradicionais.

Também José Lins do Rego, o discípulo mais fiel e arrebatado de Gilberto Freyre, assinou o prefácio do já citado Região e Tradição em tom de exaltada devoção à liderança intelectual exercida por Gilberto Freyre. Indo além disso, engrossou a briga aberta contra os paulistas atacando o modernismo e reiterando em tom polêmico o pioneirismo do nacionalismo postulado por Freyre a partir da perspectiva regionalista que adota no livro e no conjunto da sua obra. A valorização das fontes regionais da cultura brasileira levou Gilberto Freyre e seus seguidores a reivindicarem para o Nordeste uma posição de originalidade e fonte de valores nacionais que volta e meia são repostos em termos polêmicos.

Sem a intenção de resolver essa briga regional, que com certeza vai além das disputas atiçadas por Gilberto Freyre e José Lins do Rego, assim como por outros intelectuais e artistas nordestinos, um dado fundamental para compreendermos de modo criticamente isento essas disputas sem fim deriva com certeza das relações de rivalidade e ressentimento nutridas pelo irmão pobre contra a dominação e os preconceitos provenientes do irmão rico. Como este tem mais poder, a historiografia oficial do modernismo, produzida sobretudo em São Paulo, tendeu a subordinar o regionalismo ao modernismo tratando muitas vezes Gilberto Freyre, José Lins do Rego e outros grandes nomes da cultura nordestina como capítulos da história geral do modernismo, quando não meros anexos. Nesse sentido, é compreensível o ressentimento de Gilberto Freyre e de muitos dos seus seguidores. Mais que compreensível, é necessário salientar que a obra de Freyre, assim como dos grandes representantes do regionalismo nordestino, se fez de forma independente do modernismo paulista.

Vejamos melhor a questão da independência ou autonomia tanto do regionalismo de Recife quanto da obra dos grandes representantes do regionalismo nordestino. Gilberto Freyre formou-se até academicamente nos Estados Unidos. Além disso, sua filiação à cultura inglesa está muito bem comprovada não só em muitos dos seus depoimentos, mas sobretudo na sua obra e na sua formação geral. Gilberto foi provavelmente o primeiro jovem brasileiro que fez estudos sistemáticos de sociologia e ciências humanas nos Estados Unidos. Quando voltou a Recife em 1923, portanto no ano posterior à eclosão do modernismo, cuja data de batismo é a Semana de Arte Moderna, era portador de ideias próprias e independentes com relação à arte moderna e à cultura brasileira. Quanto a José Lins do Rego, este formou-se sob o influxo direto de Gilberto, a quem sempre devotou a mais irrestrita admiração e amizade. O caso de Graciliano Ramos também reforça o argumento relativo à autonomia do regionalismo nordestino. O mesmo, em linhas gerais, se aplica a Jorge Amado. Portanto, é coerente a resistência que todos opõem ao modernismo, resistência que em alguns chegou ao extremo da recusa a qualquer filiação ou afinidade estética e ideológica.

Considerado o argumento exposto no parágrafo precedente, é compreensível que os nordestinos, antes de tudo Gilberto Freyre, se tenham empenhado em reivindicar a autonomia do regionalismo sediado no Recife. Se já nos anos de 1920 Gilberto se ressentia do modernismo, propondo a partir de Recife um movimento de renovação cultural independente, seu espírito de independência certamente acentuou-se depois da publicação de Casa-Grande & Senzala, que logo o consagrou como o mais importante intérprete da cultura brasileira. Em 1941, quando lança Região e Tradição, como acima observei, desfecha com a ajuda de José Lins do Rego uma polêmica contra o modernismo que durante muito tempo sobreviveu e alimentou muito mal-entendido. É a tal briga entre irmãos a que aludi na abertura deste texto.

Tentando pôr ordem na casa, se possível reconciliando de vez os irmãos brigados, conviria destacar que modernismo e regionalismo têm bem mais em comum do que tendiam a admitir nossos regionalistas ressentidos. Personalizando a questão, pois a briga foi com frequência encarnada nas figuras dominantes dos dois movimentos, Mário de Andrade e Gilberto Freyre, Mário e Gilberto seguiram linhas muito convergentes na obra que produziram e nos caminhos que trilharam visando interpretar e valorizar a cultura brasileira. Corrigindo a crítica enviesada de Gilberto Freyre, que negou caráter nacionalista e regionalista ao modernismo com o propósito de reivindicar exclusivamente para si próprio e para o regionalismo que liderou os méritos das realizações culturais do período, é preciso reconhecer que o modernismo concorreu de forma decisiva para a valorização da cultura nacional, para o estudo e a defesa da identidade cultural brasileira, para os estudos dedicados à exploração e esclarecimento de todas essas questões.

Ambos os movimentos, através de vias autônomas, convergiram na busca de uma melhor compreensão da origem e formação da cultura brasileira, assim como no reconhecimento da importância de valores culturais reprimidos ou depreciados pelas elites brasileiras. Livros como Macunaíma e Casa-Grande & Senzala traduzem esses valores e sentidos culturais no sentido mais alto das realizações intelectuais do Brasil. Quase tudo que o modernismo realizou depois de 1924 está associado à busca de uma cultura brasileira autêntica e renovada. O mesmo se pode afirmar com relação ao regionalismo recifense, em particular, e ao regionalismo nordestino em geral, que viveu nos anos de 1930 o ponto alto das obras de inspiração regionalista, ou pelo menos geograficamente situadas na região que, embora empobrecida em decorrência da longa e lenta decadência da oligarquia açucareira, mostrou-se dotada de grande vitalidade artística e cultural.

Em suma, talvez o melhor modo de conciliar os dois movimentos, ou indicar suas afinidades substanciais, consista em reuni-los à sombra do designativo neorromantismo, termo empregado por José Aderaldo Castelo no seu livro pioneiro acima citado para traduzir o fato de que ambos constituíram uma atualização do espírito do movimento romântico. Este, como sabemos, tem como características dominantes traços comuns ao modernismo e ao regionalismo: o espírito nacionalista, a valorização da cultura e da identidade nacionais, a acentuação dos valores particulares e subjetivos.

Referências bibliográficas:
Gilberto Freyre. Região e Tradição. Com Introdução do autor e prefácio de José Lins do Rego. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1941.
Idem. Manifesto Regionalista. 7ª. edição revista e aumentada. Prefácio de Antônio Dimas. Recife: Fundaj; Editora Massangana, 1996.
Valéria da Costa e Silva. A Modernidade nos Trópicos: Gilberto Freyre e os debates em torno do nacional. Recife: Carpe Diem, 2009.
Ver também os dois artigos contidos nos links abaixo:
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/brasileiros-de-sao-paulo-e-de.html
http://fmlima.blogspot.com/2011/03/nacional-e-universal.html

quinta-feira, 10 de março de 2011

Brasileiros de São Paulo e de Pernambuco



Para Antonella.

Gilberto Freyre inicia um dos seus ensaios assinalando relações de afinidade histórico-cultural entre paulistas e pernambucanos (Ver “Modernidade e modernismo nas artes”, in Vida, forma e cor). O tema, frequente em muitas das suas páginas, é no ensaio retomado com o aparente propósito de acentuar pontos de convergência entre os dois estados. O foco é histórico-cultural, sempre deslizando para a fixação de um ethos descrito com base em fontes históricas livremente utilizadas pelo autor na composição das suas obras mais significativas. Transitando das generalidades históricas para a fase da nossa cultura moderna na qual se inscreve a sua obra, passa Gilberto Freyre a considerar especificamente o papel desempenhado pelo modernismo de São Paulo na constituição dessa cultura. Embora reconheça seu caráter renovador, critica-o por se mostrar no conjunto incapaz de converter o movimento, modernismo, num modo substantivo de ser, isto é, ser moderno. Esta a fraqueza fundamental do movimento paulista. Nas palavras do próprio Gilberto,
“...(o modernismo) envelheceu depressa pelo fato de se ter contraído e sistematizado numa quase seita de adoração do que fora apenas um momento ou um instante – instante libertador, revolucionário, violentamente antiacadêmico – na vida do brasileiro criado com muita gramática ou com excessivo respeito pelas academias”.
O foco desta crítica se estreita especificando-se na figura de Mário de Andrade. Diferentemente de Oswald de Andrade, com quem é negativamente contrastado na distinção proposta por Gilberto entre moderno e modernista, Mário teria sido incapaz de transcender o momento puramente contestador dos códigos estéticos estabelecidos incorrendo assim em mimetismos vanguardistas indicativos de subserviência mental à cultura europeia. Em suma, a insuficiência de Mário de Andrade traduziria a própria insuficiência fundamental do movimento que liderou: um modernista incapaz de se fazer moderno.

É por demais sabida a resistência de Gilberto Freyre ao modernismo de São Paulo. Tal resistência é compreensível, talvez inevitável, se se considera a posição secundária atribuída ao regionalismo originário de Recife que nele encontrou a figura do líder e animador inconteste. Dada a hegemonia cultural exercida pelo eixo Rio-São Paulo, as forças culturais mais renovadoras desenvolvidas nas décadas de vinte e trinta foram no geral associadas à corrente triunfante do modernismo paulista. A própria crítica de corte modernista, assim como sua historiografia correspondente, tende a incorporar ao modernismo o impacto e a dimensão mais renovadora de obras como Casa-Grande & Senzala e o movimento de renovação da narrativa regionalista do Nordeste.
Consciente da importância da sua obra, ampliada em ação pessoal e continuada de liderança junto a numerosos artistas e intelectuais, Gilberto Freyre viu-se muitas vezes compelido a reivindicar em prefácios, artigos e ensaios um papel de absoluta autonomia para o movimento que comandou a partir de Recife. Ao fazê-lo, porém, incorreu por vezes em formulações polêmicas merecedoras de apreciação mais isenta do leitor e crítico da sua obra. Um dos propósitos deste artigo é, por conseguinte, fixar dentro de uma linha de necessária isenção crítica a imagem do modernismo fundada antes na apreciação das suas características culturais historicamente aferíveis do que em juízos polêmicos resultantes de lutas por hegemonia no campo cultural.

Outro motivo que por certo decisivamente concorreu para pontuar a resistência e hostilidade de Gilberto Freyre contra o modernismo paulista deriva da polêmica travada com Joaquim Inojosa. Entusiasta do movimento paulista, Inojosa logo se tornou no ambiente de Recife um propagandista do novo ideário. Sua ação militante coincide com o momento em que Gilberto retorna a Recife e gradualmente desenvolve nos limites da província um movimento de revalorização das tradições regionais. Esse movimento, como é sabido, se define melhor com a publicação do Livro do Nordeste e a realização do Congresso Regionalista e atinge sua expressão mais alta e definitiva em 1933, quando da publicação de Casa-Grande & Senzala. Ora, se já no início do processo ele compreensivelmente se distancia do movimento representado em Recife por um mero epígono, um propagandista incapaz de realizar obra de qualidade própria, a afirmação objetiva da sua importância, nacionalmente consolidada com a publicação de Casa-Grande & Senzala decerto contribuiu para legitimar suas justas reivindicações de autonomia perante o modernismo paulista. Ao fazê-lo, porém, Gilberto Freyre por vezes cedeu à tentação, sempre inspirada por circunstâncias de natureza polêmica, de confundir o modernismo e a obra de Mário de Andrade com a dos epígonos, sobretudo regionais. A isso seria necessário acrescentar fatores tais como a rivalidade regional estabelecida entre São Paulo e o Nordeste, agravada pela expansão socioeconômica daquele em contraste com a longa e lenta decadência deste, a crise de poder detonada pela Revolução de 30 e a institucionalização do modernismo nos anos que se seguem a 1930.

Num documento de publicação tardia, Mário de Andrade esclarece as circunstâncias que definitivamente o afastaram de Gilberto Freyre antes mesmo de qualquer aproximação efetiva. O que abaixo descrevo, importa frisar nesse terreno minado por apreciações parciais, é o seu ponto de vista. Em carta endereçada a Guilherme de Figueiredo poucos meses antes de morrer, Mário refere-se a Gilberto como alguém distante. Por um momento, em meados dos anos vinte, foi informado a respeito deste através de amigos comuns residentes no Rio de Janeiro: Manuel Bandeira, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto. Se estes de um lado já demonstravam admiração por Gilberto, de outro assinalavam seu espírito malicioso, sempre inclinado a troçar mesmo dos amigos mais íntimos. Mário atribui a isso o fato de nada haver feito no sentido de então encontrar Gilberto.

Mas eis que Prudente de Moraes, neto, co-editor de Estética, o periódico modernista sucessor de Klaxon, publica no no. 3 desta revista uma resenha sobre A Arte Moderna, de Joaquim Inojosa. Nesta obra, lançada no Recife em 1924, intenta o autor divulgar, em linguagem polêmica, o ideário modernista para o público de Recife. Embora distinguindo-o com comentários elogiosos - Inojosa era afinal o propagador do modernismo em Recife, onde também representava Estética por indicação expressa de Mário de Andrade e dos editores do periódico – observa o resenhista o quanto a derivação do modernismo na província andava em descompasso com o centro dinâmico do movimento:
“Mas Pernambuco, sem excetuar o sr. Inojosa, ainda está na primeira fase do modernismo. Fase de revolta, de violência destruidora, de desorientação, em que se cultiva o absurdo pelo absurdo, a esquisitice pela esquisitice, as máquinas, modas, invenções, toda essa parte exterior da vida contemporânea pela aparência de atualidade do aproveitamento delas como motivo artístico. Seria inútil negar que todos tivemos esse período, que o futurismo italiano não conseguiu ultrapassar. (...) Depois, uma compreensão melhor do modernismo nos ensina a estabelecer algumas diferenças; cada um vai encontrando seu caminho e a gente perde a preocupação com os últimos inventos e últimas modas”.
Dado que a citação foi demasiado longa, refaço com palavras minhas outros pontos da resenha necessários à precisa caracterização do problema aqui discutido. Acrescenta Prudente de Moraes, neto, que a desorientação e a confusão de valores são defeitos evidentes na plaqueta assinada por Joaquim Inojosa. Como agravante, conhece imperfeitamente a história do modernismo. Seu relato da Semana de Arte Moderna, sempre de acordo com o resenhista, “só tem de exato a vaia”.

Pode-se aí nitidamente perceber como os modernistas mais consequentes tinham já revisto os excessos de contestação e até inconsequências que tingiram as lutas e tomadas de posição iniciais. E note-se que a resenha é assinada por um então militante do modernismo, editor, com Sérgio Buarque de Holanda, de um dos mais importantes periódicos do modernismo. Outra nota relevante prende-se ao fato de que ambos nesse momento se distanciam da suposta liderança intelectual de Graça Aranha ao mesmo tempo em que, movidos por razões de afinidade intelectual e ideológica, aproximam-se independentemente tanto de Mário de Andrade quanto de Gilberto Freyre.
Voltando à carta de Mário de Andrade, escreve ele a Prudente criticando-o por tratar Inojosa com tanta severidade na sua resenha. Dado que Mário era já o líder do movimento, atenua suas restrições a Inojosa cioso talvez de não melindrar o epígono combativo de Recife. Por artes do destino, ou mero acaso, Gilberto Freyre visita Prudente no momento em que este lia a carta enviada por Mário de Andrade. Como Gilberto era já inimigo de Inojosa, ao tomar conhecimento da carta de Mário decide-se a rejeitar este para sempre. A decisão de Gilberto perdura até 1928, quando Mário, viajando pelo Nordeste, é recebido por ele em Recife. Não o fez porém sem muita resistência, afinal vencida pela mediação de um grande amigo de ambos: Manuel Bandeira, também coincidentemente visitando sua cidade natal. A julgar pela curta anotação feita por Mário no seu diário de viagem, o encontro foi se não frio, com certeza apenas cordial e sem prolongamentos:

“... Tarde M. Bandeira me busca no hotel e me leva a Gilberto Freyre, que nos oferece um passeio de lancha pelo Capibaribe, maravilhoso, com vista da cidade...” (Mário de Andrade, O Turista Aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976, p. 347. Para confronto do meu texto com a carta de Mário de Andrade a Guilherme de Figueiredo, ver Mário de Andrade, A Lição do Guru. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, pp. 136-7).

Embora não me ocorra reivindicar em qualquer sentido prioridade para o tratamento crítico que procuro conceder à matéria polêmica deste artigo, talvez me exponha ao puxão de orelha do leitor mais esclarecido. Assim, cuidando prevenir-me de apreciações infundadas, frisaria ter ciência de alguns precedentes ilustres na nossa historiografia crítica. Refiro-me restritamente a José Aderaldo Castello, cujo livro sobre José Lins do Rego e suas conexões com o regionalismo e o modernismo traduz um espírito de elevada disposição de compreender ambos os movimentos de forma integradora, e sobretudo Sérgio Buarque de Holanda, que aprecia com juízo certeiro as divergências polêmicas entre os dois movimentos numa série de artigos reunidos em volume de publicação recente (Ver Sérgio Buarque de Holanda, O Espírito e a Letra, vol. II, org., introdução e notas de Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 331-345).

Aderaldo Castello foi o primeiro a desenvolver uma análise sistemática sobre o modernismo paulista e o regionalismo recifense num estudo de fôlego dedicado à obra de José Lins do Rego (Ver José Aderaldo Castello, José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo). Embora reconheça e documente a influência exercida pelo modernismo paulista no Nordeste, particularmente no Recife através do contato estabelecido por Joaquim Inojosa com o grupo paulista, Aderaldo Castello associa-se a Gilberto Freyre e Lins do Rego na defesa da autonomia do movimento regionalista. Observa ele corretamente que desde o começo – isto é, desde 1923, quando Gilberto Freyre regressa ao Recife e se aproxima de Lins do Rego – Gilberto distingue-se pelo papel decisivo que exerce na constituição de uma tendência independente dentro do processo nacional de renovação da cultura. Sem deixar de acentuar a oposição inicialmente verificável entre o movimento paulista e o pernambucano, a orientação crítica de Aderaldo Castello é pautada pela acentuação de traços convergentes entre ambos. Coerente com esse princípio, intenta unificar os aspectos mais positivos dos dois movimentos caracterizando-os como um movimento neo-romântico.

Frisava acima que a resistência de Gilberto ao modernismo é amplamente conhecida. Reiteraria, ademais, que se expressou muitas vezes em tom polêmico. Uma das suas manifestações mais remotas está contida na introdução que escreveu para Região e Tradição. Embora o livro tenha sido publicado em 1941, a introdução data de 1940. Nela, ecoando a depreciação polêmica do modernismo detonada por seu amigo e discípulo confesso José Lins do Rego no prefácio que consta deste mesmo livro, Gilberto Freyre caracteriza o modernismo como um movimento francamente hostil a qualquer forma de tradicionalismo e regionalismo. Polemizando num contexto em que intentava afirmar a autonomia e pioneirismo do regionalismo recifense, Gilberto identificou no modernismo já triunfante nos quadros da cultura brasileira o opositor que carecia de ser contestado. Assim, nas páginas polêmicas de Região e Tradição configura-se uma atitude e uma avaliação depreciativa que serão repostas em outros textos. A reiteração de uma crítica redutora, inspirada pelo espírito polêmico já aqui assinalado, tem infelizmente concorrido para que leitores mais apaixonados, quando não simplesmente ignorantes do nosso processo cultural objetivo, tendam a caracterizar o modernismo paulista como um movimento de inspiração estreitamente européia, como avesso à tradição, à cultura de extração regional e até antinacionalista. O equívoco é grave e com certeza não resiste à confrontação objetiva com os fatos culturais incorporados à linha da nossa tradição cultural.

Um outro motivo que justifica a tentativa de esclarecimento dos equívocos e mal-entendidos que cercam as relações entre modernistas de São Paulo e regionalistas de Recife radica no fato de que a tarefa mais alta da crítica e do leitor esclarecido consiste em precisar de maneira isenta a significação efetiva de ambos os movimentos e, mais restritamente, dos seus dois grandes líderes: Gilberto Freyre e Mário de Andrade. Insistir em opor um ao outro - sempre na intenção de louvar este em detrimento daquele; ou exaltar o segundo às expensas do obscurecimento do primeiro - é atitude que me parece incompatível com o exercício da crítica autêntica, que como tal carece de fundar-se em critérios e argumentos de natureza estética e intelectual, não em apreciações particularistas, sejam elas dirigidas por valores estreitamente regionais, ideológicos ou apenas pessoais.

Cabe, portanto, proceder ao exame dos argumentos fundamentais invocados na polêmica. Acusar o modernismo paulista de ser hostil à tradição é confundir o movimento tal como se configurou nas suas manifestações iniciais com a dinâmica de um processo que consistiu, em síntese, na conversão do modernismo internacionalista em modernismo nacionalista. É verdade que, à volta da Semana de Arte Moderna, era nítida a influência do ideário vanguardista procedente antes de tudo da França. Nesse momento, a grande aspiração dos modernistas era acertar o passo – ou o relógio, evocando aqui a metáfora empregada por Oswald de Andrade – do Brasil com o das vanguardas europeias.

Klaxon, órgão oficial do modernismo da primeira hora, exprime nas suas páginas, no gosto por vezes abusivo e inconsequente da experimentação formal, esse desejo de atualização das artes brasileiras. Mas esse quadro, de corte sem dúvida internacionalista, portanto avesso à corrente da tradição e do regionalismo, logo se modifica. O ano marco é sem dúvida 1924, embora algo da produção poética e da correspondência literária imediatamente anterior já indique o ponto de inflexão nacionalista em l923. Algumas evidências: poemas como Carnaval Carioca, de 1923, e O Poeta Come Amendoim, de 1924, ambos de Mário de Andrade, renovam a nossa poesia do ponto de vista temático e formal. No que se refere à correspondência de Mário, de imensa e já reconhecida importância documental para a história cultural brasileira, pode-se mencionar, entre outras, uma carta endereçada a Drummond em novembro de 1924. Nela é inequívoco o espírito de nacionalismo militante já plenamente adotado pelo líder do modernismo paulista. Criticando a formação francesa de Drummond, que o induzia a olhar o Brasil com um misto de indiferença e desprezo, assim argumenta Mário:
“Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. (...) devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (...) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime. (...) Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França e a Cochinchina. Mas é no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei” (A Lição do Amigo. Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, pp. 5-6).
Como ler a citação acima sem automaticamente lembrar o célebre prefácio escrito por Gilberto Freyre para a primeira edição de Casa-Grande & Senzala? Nele Gilberto declara um espírito de missão similar àquele traduzido na profissão de fé nacionalista de Mário de Andrade. Comparando seu fervor nacionalista ao dos russos e românticos do século XIX, Gilberto declara sua convicção de que tudo parecia depender dele e dos seus companheiros de geração (Casa-Grande & Senzala. 25a ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. lvii).

O móvel que norteia a produção de Casa-Grande & Senzala é a necessidade vivida por Gilberto de se compreender, de definir sua identidade individual através da apreensão da própria identidade cultural do Brasil. Esse espírito de missão orientado para a transformação da nacionalidade é comum a ambos, ele e Mário de Andrade. Acrescentaria ser ele comum a todos que se empenharam na realização do nacionalismo literário, em sentido específico e, mais amplamente, no sentido do nacionalismo cultural. Deixando de parte rivalidades regionais e variações estético-ideológicas no fundo acomodáveis no leito promíscuo do nacionalismo cultural, como não reconhecer em Gilberto Freyre e Mário de Andrade os agentes seminais desse movimento que tantas contribuições trouxe para o enriquecimento da nossa cultura moderna?

Se o nacionalismo cultural de Gilberto Freyre se desenvolve fundamentalmente a partir da sua volta a Recife para alcançar sua expressão suprema cerca de 10 anos mais tarde, quando ultima e publica Casa-Grande & Senzala, o de Mário de Andrade evolui do internacionalismo de 1922 e aporta em Macunaíma, em 1928, depois de um processo de adensamento e decantação que compreende a temática de fundo nacionalista na poesia, os escritos críticos sobre música, artes plásticas e cultura popular e suas viagens etnográficas através do Norte e Nordeste do Brasil. O fato de acentuar neste artigo os pontos de convergência entre ambos, pontos tantas vezes obscurecidos por eles próprios e em seguida por seus discípulos mais entusiastas até o limite mesmo do ano em que se celebra o centenário de nascimento do primeiro, não supõe todavia sequer a sugestão de que a convergência se dissolva em equivalência. Embora ambos realizem uma obra de expressão nacionalista inspirada pelo ambição, em larga medida bem sucedida, de revalorizar a cultura brasileira na linha de tensão entre a tradição e a modernidade, entre o particular nacional, e também regional, e o universal de corte antes de tudo europeu, é fato que divergem na ênfase e mesmo no fundamento do horizonte que recortam no conjunto da obra produzida. Enquanto Gilberto de um lado se baseia na região para formular sua concepção de cultura nacional, Mário intenta chegar a uma síntese nacional de cultura fundindo livremente elementos das várias regiões culturais brasileiras. Esse traço marcante da sua concepção de cultura nacional é evidente na própria composição de Macunaíma. Integrando-o à forma e ao andamento da narrativa, Mário descreve os deslocamentos alucinantes do herói através do país, a fusão de regionalismos linguísticos, o choque fecundo entre as raízes primitivistas da nossa tradição e a modernidade expressa em ícones e códigos da nossa sociedade urbano-industrial.

Sei que comparo acima grosseiramente obras de estatuto epistemológico distinto. Se é verdade que Casa-Grande & Senzala destoa e mesmo colide com a obra de sociologia convencional, é também verdade que sua liberdade compositiva não autoriza confundi-la com uma obra literária, embora alguns críticos maldosos ou intelectualmente estreitos assim a tenham qualificado supondo com isso desmerecê-la. Obra ambígua no método e na andadura compositiva, é obra de ciência social e ao mesmo tempo literária no estilo, na ordenação expressiva do material e na lógica da argumentação na qual se fundem história social e autobiografia, documento histórico reinventado na forma de memória literária. Macunaíma, de outro lado, pode também ser compreendida como obra ambígua no sentido de que, sendo primariamente uma narrativa ficcional, supõe ou dissimula no tecido da composição uma massa heterogênea de documentos histórico-sociais criteriosamente acumulados pelo seu autor.
Se se reflete sobre a gênese destas duas obras, também aí sobressaem convergências significativas. Gilberto Freyre mais de uma vez declarou que na raiz da sua obra-prima pulsava a necessidade de esclarecer e definir sua identidade de brasileiro através da captação da nossa identidade coletiva constituída sobre fundamentos histórico-culturais. Mário de Andrade, de outra parte, persegue de modo obsessivo, na pesquisa intelectual infatigável tanto quanto na obra efetivamente realizada, sua identidade de brasileiro na identidade coletiva da nacionalidade.

Encerro esse paralelo genérico, e sabidamente insatisfatório, citando Antonio Candido. Inscreve ele no pórtico de “Literatura e Cultura de 1900 a 1945” uma tese que permeia o conjunto deste agudo ensaio de síntese de quase meio século da cultura brasileira. Sumariamente aqui traduzida, consiste tal tese no movimento dialético entre localismo e cosmopolitismo pontuando o desenvolvimento da vida espiritual brasileira em geral, assim como, em particular, a sua literatura (Literatura e Sociedade. 2a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, pp. 109-111). Quando o primeiro pólo, localismo, dá o tom ao relacionamento dialético configurado na tese, as características nacionalistas comandam a cena cultural; no caso inverso, a aderência mimética e conformista aos padrões europeus assinala os momentos de exacerbação cosmopolita. Há entretanto momentos em que os dois pólos alcançam um ponto de equilíbrio harmonizando assim as influências europeias com valores propriamente brasileiros. Citando o próprio autor,
“Pode-se chamar dialético a este processo porque ele tem realmente consistido numa integração progressiva de experiência literária e espiritual por meio da tensão entre o dado local (que se apresenta como substância da expressão) e os moldes herdados da tradição européia (que se apresentam como formas da expressão)”.
Frisa então que o melhor das nossas realizações intelectuais e artísticas tem sido uma combinação afortunada – como se pode observar na obra de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Drummond, assim como nas de Gilberto Freyre e Mário de Andrade – desse equilíbrio ideal verificável entre o pólo do particular e o do universal. Se consideramos o conjunto da produção intelectual brasileira do século vinte, não restritamente a produção literária, penso que Mário de Andrade e Gilberto Freyre constituem a mais acabada expressão desse equilíbrio ideal entre o particular e o universal, entre a linha da tradição e a da modernidade.
Nota: Este artigo foi publicado em dois periódicos: Cadernos de Estudos Sociais, vol. 16, no. 2, Recife, julho/dez. 2000 e Quadrant, nos. 19-20, Montpellier, 2002-2003.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Pasárgada e o Espírito de Província




O leitor acaso atento à precária e desequilibrada produção cultural que flui à margem do eixo hegemônico Rio-São Paulo sem dúvida acolherá com entusiasmo o espírito polivalente que enforma a recém-lançada revista Pasárgada. Como foi já observado no editorial da revista, tem sido invariavelmente incerto o destino dos periódicos culturais no Brasil, sejam eles sustentados ou não por organismos oficiais. Este fato sugeriria aos mais pessimistas a necessidade de se encarar Pasárgada como raridade também no sentido quantitativo.

Mas o que aqui desejo enfatizar é a dimensão qualitativa da publicação. E tal dimensão poderia ser resumida no espírito polivalente acima indicado. Grosseiramente explicitado, esse espírito se traduz no modo como certos articulistas acentuam vínculos entre a cultura brasileira, a nordestina em particular, e o movimento intelectual europeu; entre a correção factual e a mais que discutível reivindicação de prioridades e excelências; entre a citação iluminadora, fundada no justo cotejo dos textos, e a referência pedante, ciosa de exibir provas de elevada ilustração; entre a celebração dos valores da província, tantos deles vazios, e a necessária revisão crítica tingida de irreverência e iconoclastia.

Apesar do que comportava de superficial, atitude da qual nunca se libertaram diluidores e propagandistas irrelevantes como Joaquim Inojosa, o espírito imediato do modernismo derivante da Semana de Arte Moderna foi eminentemente irreverente e iconoclasta. Esse espírito sobrevive, como sabemos, à evolução mais reflexiva e pesquisadora do movimento na investida primitivista dos antropófagos no fim da década de 1920. Não obstante sua curta vigência, ele foi e continua sendo objeto de grosseiras incompreensões. É grosseira incompreensão, por exemplo, identificá-lo como sendo o espírito predominante do modernismo paulista, como o fizeram José Lins do Rego e Gilberto Freyre no livro do último intitulado Região e Tradição.
Movidos pelo propósito de reacender velhas disputas bairristas, não resistem os celebrantes das excelências regionalistas à tentação de torcer e retorcer fatos da historiografia literária e cultural brasileiras movidos pelo vão, duplo senso, propósito de afirmar prioridades. É curioso como nisso se aproximam as atitudes dos vanguardistas em geral e dos provincianos idem. Movidos os primeiros pela busca obsessiva, mas sempre inalcançável, do marco zero e os segundos pelo ressentimento diante dos centros hegemônicos que justa ou injustamente os removem para o fundo da cena, persistem ambos nessa luta sem fim em torno de prioridades e excelências. Isso decerto explicaria, ainda que por alto, a recorrência de embates tantas vezes fúteis entre oswaldianos “marco zero” e mariandradinos “nacionalistas”, entre “vanguardistas” paulistas e “revolucionários-tradicionalistas” nordestinos a modos de casa-grande ou de senzala. Que assim sobrevivam eternamente desentendidos. Isso, confesso, é o que eu faria, se essa briga sem fim entre eles se esgotasse. Infelizmente, não é o caso. Como brigam na arena pública onde por definição se desenvolve a história cultural, parte do que torcem e retorcem, excluído o que se dissolve em anedotário e vaga contingência, corre o risco de converter-se em história.

Como não é minha intenção trocar em miúdos o que acima discutivelmente expus sem diretamente fundamentar minha apreciação num confronto direto com os textos que compõem o número inaugural de Pasárgada, decidi-me pela escolha de um artigo que me parece conter muitas das insuficiências que venho intentando criticar. Trata-se de “O Significado do Modernismo no Brasil”, de César Leal. Francamente inspirado pelo espírito de província que na figura intelectual de Gilberto Freyre concentrou suas melhores e piores características, o articulista, que dizem ser poeta e teórico respeitado no ambiente intelectual do Recife, reescreve a seu gosto e desgosto fatos e interpretações concernentes à história do modernismo. E nisso tanto se esmera que chega a produzir verdadeiros primores de leitura subjetivista, senão meramente grosseira desinformação.

Vamos portanto aos fatos. Dele e meus. Ou melhor, dele e da historiografia correntemente acessível ao estudioso movido por propósitos analíticos quanto possível isentos. Celebrando virtudes de Manuel Bandeira, como justa e injustamente o fazem outros articulistas, César Leal afirma que Manuel Bandeira orientou intelectualmente Mário de Andrade. Grande poeta, sim; grande estudioso da literatura também, mas não convém abusar do espírito de província. Sabe-se da grande amizade que os uniu desde o início dos anos vinte e do quanto mutuamente se respeitavam no plano da criação poética. Daí à afirmação de César Leal a passada é longa. Bastaria uma leitura atenta, descuidada de fúteis reivindicações provincianas, das cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para que se verificasse a inconsistência da afirmação. Se Mário não foi orientado por Bandeira nem mesmo em matéria de teoria e técnica poéticas, terreno no qual o último era inegavelmente notável, muito menos o foi em outros domínios de realização intelectual nos quais se distinguiu como artista e estudioso muitas vezes pioneiro.

Mas César Leal vai ainda mais longe ao afirmar que Mário e Oswald de Andrade eram portadores de verdadeira indigência intelectual. O juízo é de tal natureza subjetiva, para servir-me aqui de delicado eufemismo, que parece dispensar argumentação. Nem mesmo a Oswald de Andrade, que era reconhecidamente um improvisador, não obstante tantas vezes genial, movido mais pelo gosto das intuições desordenadas que pelo estudo consistente e metódico, nem mesmo a ele pode-se com justiça chamar de artista intelectualmente indigente.

Mais adiante, recorrendo ao velho artifício retórico do elogio contra o outro, César Leal declara que, comparado ao modernismo “o movimento concretista apresentou muito maior solidez”. O argumento é mais do que discutível, embora não me detenha aqui para discuti-lo. Por isso vou ao fim do mesmo parágrafo onde ele adiciona às virtudes dos concretistas o fato de não terem entrado em luta com os nordestinos e de elevarem João Cabral à categoria de “uma de suas divindades tutelares”. A expressão soa um tanto pomposa, mas talvez traduza algo do orfismo para o qual tenderam alguns oficiantes do “marco zero” da estética teológica. Se se pode deduzir um valor estético do fato de não se entrar em luta contra os nordestinos, César Leal deveria lembrar que Mário de Andrade, para ficar restrito ao exemplo que mais importa, nunca entrou em luta contra nossa nordestinidade, ou contra os nordestinos.
Limito-me à menção de dois exemplos. Embora tantas vezes injustamente considerado por José Lins do Rego, que neste campo polêmico conduziu-se sempre como um discípulo provincianamente deslumbrado de Gilberto Freyre, Mário criticou a obra do nordestino em tom de alto apreço e reconhecimento das suas melhores qualidades de romancista. Tanto isso é verdadeiro que chegou a afirmar, aí por volta de 1940, que Lins do Rego era o mais importante romancista brasileiro contemporâneo. Poucas vezes Mário de Andrade esteve tão errado. Talvez porque lhe faltasse um pouco mais de espírito de província.

Segundo exemplo: qualquer leitor corrente da nossa historiografia literária sabe do profundo amor que Mário de Andrade devotava à cultura nordestina. Isso é tão evidente, tanto matéria factual, que me parece desnecessário expor aqui provas do que afirmo.

Passemos a Blaise Cendrars. Acho duvidoso que Cendrars seja a fonte mais recomendável para uma apreciação crítica do modernismo, a não ser que o propósito do articulista seja o de depreciar o último. Se é este o caso, o Prof. César Leal não precisaria ir tão longe. Sem sair do ambiente intelectual do Recife, ele teria à mão apreciações assinadas por Gilberto Freyre e discípulos maiores e menores tão pouco isentas e tanto inspiradas por interesses estreitamente bairristas quanto os que informam o artigo de César Leal.

Sem pretender negar a influência de Blaise Cendrars sobre os modernistas, e vice-versa, que foi considerável, parece-me evidente que ele não é um observador significante do modernismo brasileiro, menos ainda da nossa realidade cultural mais ampla. Como César Leal se declara familiarizado com a grande poesia ocidental de Baudelaire, senão de Dante, a João Cabral, ele decerto não ignora que a experiência brasileira de Cendrars, limitada demais, não pode ser tomada como referência para uma apreciação consistente do modernismo.

Embora fosse um homem de vivência cosmopolita e fascinante vagabundo das estradas, Cendrars observou o Brasil, como o fizeram e ainda o fazem intelectuais europeus em geral, fixado no que este lhe sugeria de pitoresco e exótico. Sua ignorância da nossa cultura chegava ao ponto de sequer grafar corretamente nomes de intelectuais paulistas com os quais conviveu e aos quais dedicou um dos seus livros mais celebrados.

Como intento provar o que afirmo, e talvez impressionar o leitor que louva articulistas familiarizados com a grande tradição poética ocidental em cinco ou seis línguas de alta cultura, cito aqui uma edição bilíngue (francês-inglês) cuja tradução para o inglês se deve a Monique Chefdor: Complete Postcards from the Americas. O volume reúne Documentaires, Feiulles de Route e Sud-Américaines. O segundo, Feiulles de Route, foi dedicado aos amigos paulistas de Cendrars cujos nomes estão assim grafados: Mário Andrade, Serge Millet, Jasto de Almeida, Conto de Barros, Rubens de Mosaes, Luiz Aranhas, Graza Aranha, Guillermo de Almeida, Américo Faco. A dedicatória é extensiva a outros intelectuais, mas limito-me a reproduzir apenas os nomes erradamente grafados. Talvez convenha frisar para o leitor mais cético que reproduzo a própria dedicatória manuscrita de Cendrars cujo fac-simile a
obra acima citada estampa na página 116.
Outra prova da grosseira ignorância de Cendrars é fornecida pelo próprio César Leal quando assim o cita: “Mário de Andrade morreu em 1938, eu acho”. Se o propósito do articulista era desmerecer Mário de Andrade, provando com isso o quanto este era irrelevante para o poeta suíço-francês que hesitantemente o mata no ano de 1938, o que ele de fato prova é o quanto Cendrars estava pouco qualificado para ajuizar acerca do modernismo e seu desdobramento histórico.

A propósito de estudiosos e comentaristas estrangeiros da literatura brasileira, o artigo assinado por Mário Hélio, “Enganos e Omissões”, fornece exemplo ainda mais convincente do que tudo que venho observando acerca de Blaise Cendrars. Mencionando o historiador Harri Meier, a quem atribui a autoria de um resumo sobre a história da literatura brasileira incorporado à obra História das Literaturas Universais, o articulista denuncia erros grosseiros de informação cometidos pelo autor.
Gostaria apenas de sugerir que tipo de tratamento intelectuais e acadêmicos provenientes dos centros hegemônicos de cultura dariam a um estudioso brasileiro que incorresse em erros de natureza semelhante com relação às literaturas de que eles são parte. Aliás, nem precisariam disso tomar conhecimento. Antes que se dessem a tal trabalho, não faltariam intelectuais brasileiros ávidos por dar lições ao ignorante que a tais vexames se expusesse.

Não resisto à tentação de encerrar estas notas ligeiras sobre nosso deplorável estado de subserviência mental aludindo a uma prática de uso generalizado que a experiência fora do Brasil me permitiu mais amplamente observar. Qualquer brasileiro, não importa de que categoria intelectual, que fale um inglês ou francês razoável, a troco de tudo, ou de nada, espinafra o compatriota que nisso lhe seja inferior. O nome dessa prática corrente entre brasileiros é colonialismo mental. Observem, porém, que não é meu propósito extrair dos exemplos acima nenhuma justificação da ignorância baseado no princípio, que irrestritamente louvo, da independência mental.

Como o leitor pode deduzir, quando convém reivindicar valores e interesses de fundo nacionalista ou regionalista, ou ainda mesquinhamente local, acusamos como alienados os intelectuais que se inspiram em fontes norte-americanas ou europeias. Se é porém o caso de desmerecer um movimento brasileiro em favor de reivindicações provincianas ou grupais, toma-se como justificado recorrer a uma fonte europeia desprovida de efetiva familiaridade com nosso ambiente cultural.

César Leal conclui afirmando que a literatura brasileira pouco deve ao modernismo, embora tenha antes reconhecido que Carlos Drummond de Andrade, “o mais completo poeta da língua portuguesa no século”, é um produto espiritual do movimento que procurou do início ao fim desmerecer movido pelo espírito de província contra o qual venho argumentando. Na própria revista Pasárgada o leitor pode verificar que outro grande poeta, para muitos maior ainda que Drummond, confessou dever muitíssimo ao modernismo. Refiro-me, claro, a Manuel Bandeira. Embora os atos de modéstia por ele praticados, sobretudo o cansativo “sou poeta menor, perdoai”, fossem com frequência mero artifício retórico, aqui ele alcança uma medida de isenção e humildade diante do movimento estético coletivo que lastimavelmente não mereceu no artigo de César Leal tratamento semelhante. No mais, encarar a literatura brasileira como produto direto do intercâmbio internacional, como o faz o articulista, é desprezar o que foi precisamente uma das grandes conquistas do modernismo: o movimento de atualização intelectual e artística do Brasil. Noutras palavras, a causa assinalada por César Leal com o objetivo de depreciar o sentido de renovação e atualização do modernismo é nada mais que um efeito deste mesmo movimento.

Poderia também aqui alinhar provas em defesa da minha tese. É porém bem mais recomendável relembrar ao leitor a justamente celebrada conferência de Mário de Andrade, “O movimento modernista”. Embora apresentada no distante ano de 1942, prova factual de que Mário sobreviveu à ignorância hesitante com que Cendrars o matou em 1938, é ainda o mais importante documento de interpretação deste movimento que inspira ainda, setenta anos mais tarde, celebrações e ataques, preconceitos e reverências, que são de resto formas de preconceito. Pessoalmente, prefiro a atitude crítica na revista proposta, ou praticada, por Roberto Martins, Marcelo Coelho e Mário Hélio. Não obstante as atitudes que aqui declaradamente combato, servem ao menos para sugerir o quanto o legado do modernismo inscreveu-se na memória coletiva de um país tantas vezes justamente criticado por sua falta de memória coletiva. Não será isso uma prova de permanência e vitalidade do melhor espírito de um movimento que tantas vezes tropeçou no mito bandeirantista do “marco zero” nisso confundindo-se com o suposto antagonismo do “espírito de província”?
Colchester, Inglaterra, junho de 1992.
Nota: este artigo de corte polêmico foi publicado na revista Pasárgada, Ano II, nos. 2 e 3, setembro de 1993, pp. 4-6.

domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.