domingo, 6 de junho de 2010

Mário de Andrade e alguns contemporâneos


Mário, G. Freyre, Graciliano...

Durante anos fui leitor apaixonado e acrítico de Mário de Andrade. Somente bem mais tarde me dei conta de que a paixão, fundada em altas motivações intelectuais e humanas, praticamente anulara em mim a percepção crítica de algumas insuficiências flagrantes no caráter e na prática intelectual de Mário. Poderia hoje com segurança assinalar alguns exemplos. Foi lendo com maior escrutínio crítico a obra de escritores como Gilberto Freyre e Graciliano Ramos que me apercebi do silêncio aparentemente inexplicável com que Mário tratou a ambos. Poderia ainda acrescentar, ocorre-me agora, Monteiro Lobato, além da corrente introspectiva e metafísica das décadas de 1930 e 1940 , na qual sobrelevam nomes como Lúcio Cardoso, Cornélio Pena e Clarice Lispector.

Como explicar que um crítico e leitor tão generoso e onívoro tenha ignorado de público ou considerado muito parcialmente a obra de contemporâneos tão importantes? No que se refere a Monteiro Lobato, é claro que o affair Anita Malfatti, inscrito nas origens remotas do movimento que Mário desde cedo liderou identificando-se confessadamente com seus ideais mais profundos, desempenhou papel decisivo. É compreensível que a luta por hegemonia estética e intelectual tenha dividido ambos em campos convencionalmente opostos. Digo convencionalmente opostos por ter hoje nítida consciência de que Lobato não era um pré-modernista, para ficar numa distinção superficial consagrada pela historiografia oficial do modernismo. É portanto compreensível que se tenham enfrentado nestes termos; não é porém aceitável o fato de Mário não haver nunca reconhecido de público os méritos literários e intelectuais do seu adversário, que de resto supera boa parte da corte medíocre que cercou o autor de Macunaíma. Mais que isso, os méritos do grande agente modernizador do Brasil que foi Monteiro Lobato. A omissão é ainda mais intrigante se consideramos o quanto a prática pública de ambos convergia.

A omissão de Gilberto Freyre na obra de Mário é uma injustiça ainda mais grave, indigna de um intelectual que pelejou por ser isento de paixões mesquinhas no trato das questões culturais. Decerto afetado pela antipatia recíproca que desde cedo os separou, é também compreensível, dentro destes limites, a reserva e frieza com que tratou o pernambucano. Quando porém Casa-Grande & Senzala vem a público, já não há como objetivamente silenciar sobre a grandeza do feito de Gilberto Freyre. Se a isso acrescentarmos o fato de que compartilhavam ideais nacionalistas convergentes, como explicar que Mário jamais tenha escrito e publicado sequer uma nota crítica reconhecendo os méritos extraordinários da obra marco de Freyre?

Ocorre-me neste passo evocar dois fatos provindos de fontes insuspeitas para evidenciar a parcialidade crítica de Mário e sua vulnerabilidade à ação ressentida contrária a tudo que de público pregou em nome do seu humanismo cristão. O primeiro está contido em Ramais e Caminho, ensaio de biografia intelectual assinado por Telê Ancona Lopez, zeladora fiel da obra e do acervo de Mário. A pesquisa em que o livro se apóia deixa claro não somente o fato de que Mário leu cuidadosa e anotadamente Casa-Grande & Senzala, mas que também distinguiu a obra como uma das fontes do seu projeto cultural em defesa dos valores nacionalistas.

O segundo fato provém de uma longa conversa com Antonio Candido e Gilda de Melo e Souza, que em 1995 franquearam-me o privilégio de uma demorada visita à sua casa. Conversamos livremente sobre muitos assuntos. Por motivos óbvios, os dominantes foram Mário de Andrade e Gilberto Freyre. Confesso que me retirei levando comigo algumas grandes revelações e surpresas ouvidas do nosso grande crítico. Registrei um tanto extensamente a visita e a conversa no diário que então escrevia em São Paulo, onde provisoriamente residi, pela última vez, no primeiro semestre de 1995. Dada a oportunidade do assunto, aqui registro de memória o que importa para os argumentos desta entrada.

Ouvi de Antonio Candido a revelação de que Casa-Grande & Senzala era o livro que gostaria de ter escrito. Embora tenha feito severas restrições a Gilberto Freyre e a seu comportamento ideológico, sobretudo nos anos tardios deste, restrições que substancialmente endosso, foi de isenção exemplar no reconhecimento dos méritos da obra na medida em que independem da biografia do autor. Pena que de público tenha sido omisso por tanto tempo, o que novamente prova que o juízo e a ação de nenhum intelectual se manifestam integralmente a salvo do ressentimento e até das paixões mesquinhas.

Mas o que desejo observar a propósito de Mário é o fato de que, ainda segundo Antonio Candido, lá pelos idos em que Gilberto sofreu tenaz perseguição do interventor do Estado Novo em Pernambuco, Agamenon Magalhães, Sérgio Buarque de Holanda tomou a iniciativa louvável de mobilizar publicamente a opinião intelectual paulista em defesa do escritor pernambucano. Teve então a idéia de circular um abaixo-assinado recolhendo assinaturas ilustres como ato de denúncia contra o arbítrio do interventor. Mário de Andrade recusou-se a assinar o documento, recusou-se a assumir qualquer posição pública em defesa de Freyre.

Quanto a Graciliano Ramos o juízo do tempo o confirma como a expressão máxima da corrente literária hegemônica a partir dos anos trinta: o Romance Social do Nordeste. É certo que à época era bem maior o prestígio de José Lins do Rego, prestígio confirmado e reforçado pela apreciação crítica de Mário que chegou ao extremo de nele identificar o maior romancista brasileiro. Isso está explicitamente anotado num artigo que dedicou à obra de Lins do Rego, como qualquer interessado poderia comprovar lendo O Empalhador de Passarinho. Que eu saiba, Mário nunca escreveu qualquer artigo sobre Graciliano Ramos. É um outro fato de difícil explicação. Seus contemporâneos de mais alto valor crítico (como Carpeaux, Álvaro Lins, Antonio Candido, para ficar na menção dos mais notáveis) foram unânimes em reconhecer o valor da obra de Graciliano. O juízo do tempo, como acima ressaltei, veio apenas confirmar a melhor apreciação literária brasileira. Hoje pode-se com segurança afirmar que o prestígio de Lins do Rego encolheu um pouco. O de um outro concorrente de peso, Jorge Amado, encolheu ainda mais, pelo menos aos olhos da crítica especializada. Eu mesmo há muito me desinteressei pela obra do baiano, que hoje releria muito seletivamente.

Dado o fato de que a orientação crítico-ideológica fundamental de Mário estava associada a esta corrente hegemônica da literatura brasileira, não há como explicar por aí sua resistência ou silêncio perante a obra de Graciliano. Embora dissentindo da orientação dos nordestinos quando estes tendiam a sobrepor a ideologia regionalista e política aos valores prioritariamente estéticos da obra, Mário alinhou-se substancialmente a esta tendência, tanto que foi talvez o crítico mais entusiasta da obra de Lins do Rego. Ora, dentre todos os nordestinos Graciliano foi o mais coerentemente literário no sentido de que sempre se recusou a subordinar a obra a interesses ideológicos. Qualquer leitor corrente da nossa literatura sabe que foi único entre seus pares na prioridade que sempre conferiu aos valores estéticos da obra, único no rigor ideológico e formal com que construiu sua obra sem qualquer concessão às pressões políticas do tempo. Seria um motivo adicional para Mário reconhecer-lhe a superioridade perante os outros, já que este era um dos critérios inegociáveis da crítica militante que exerceu no período. Como então explicar o fato de que nunca dedicou qualquer estudo ou artigo à apreciação do romancista alagoano?
Era por identificar-se com as tendências e valores expressos na corrente do romance nordestino, assim como na literatura compreendida em geral como uma complexa articulação de valores estéticos e pragmatismo social, que Mário fazia reservas ao romance socialmente desinteressado. Isso explicaria, presumo, suas restrições – às vezes asperamente injustas, como foi o caso da sua apreciação de Lúcio Cardoso – ao romance de corte psicológico e metafísico. Que eu saiba, não registrou de público, com o entusiasmo devido, a extraordinária estréia de Clarice Lispector. Outros contemporâneos, igualmente sensíveis aos valores ideológicos da obra, souberam identificar em Perto do Coração Selvagem um sopro surpreendente e renovador da ficção brasileira. Foi o caso de Sérgio Milliet – acho que também Álvaro Lins, não lembro agora com certeza – e sobretudo o então jovem crítico Antonio Candido, que soube perceber os méritos extraordinários da estreante. Mário, entretanto, passou ao largo de Clarice e de um outro importante romancista de orientação artística similar: Lúcio Cardoso.

Durante muito tempo, como principiei assinalando nesta entrada já extensa, não me apercebi destas insuficiências de Mário, algumas comprovadamente indignas do grande homem e escritor que foi. Não as percebia devido a minhas limitações intelectuais. Mas pondero haver um outro fator concorrente, talvez mais decisivo. É que li Mário com grande paixão desde que tomei contato com sua obra. Admito que a influência que exerceu sobre mim foi imensa, provavelmente maior que a exercida por qualquer outro escritor. Hoje conscientemente dou prioridade a vários outros, tanto brasileiros quanto estrangeiros. A importância e influência da obra e da vida de Mário persistem em mim, claro, pois é em muitos sentidos um escritor definitivo na nossa cultura e literatura. Mas posso hoje medi-lo com uma isenção e uma consciência crítica que sem dúvida pesam no sentido de encurtar sua medida. Noutras palavras, acredito ler hoje mais a medida real e falível, como de resto a de qualquer indivíduo criador, do que a ideal nutrida por um leitor inexperiente, menos cultivado intelectualmente e demasiado apaixonado pelas virtudes humanas do escritor. Por isso já escrevi, e repito, que Mário de Andrade é um dos raros escritores que gostaria de ter conhecido. Segundo minha experiência, antes lida do que vivida, a maioria dos escritores importa pela obra que realiza, não a vida que viveram. Aliás, esta é com frequência decepcionante do ponto de vista ético e amplamente humano. Por isso há muito aprendi que o que verdadeiramente importa é a obra. É ela quem salva o melhor da nossa humanidade, a começar pela dos próprios que a inventam.

A paixão a que aludo deriva em particular da humanidade generosa que Mário de Andrade imprimiu a tudo que criou e escreveu. Neste sentido, diria ainda que é um artista único. Apesar de hoje pôr o dedo em algumas das suas insuficiências mais evidentes, acima grosseiramente indicadas, continuo distinguindo-o como nosso escritor mais generoso, como um artista tocado por valores humanistas palpitantes na obra quanto na biografia. É esta associação que me parece excepcional na maioria dos artistas. Até onde minha experiência de leitor e minha experiência de convívio intelectual (esta bem mais modesta) me autorizam ajuizar sobre o assunto, afirmo hoje com serena convicção que me desinteressei largamente das possibilidades de convívio com intelectuais. A razão disso, como acima salientei e não me poupo de repetir, radica na consciência de que o melhor deles está contido na obra produzida, não na biografia, não no convívio convencional com seus pares ou com o semelhante em geral. Vistos e vividos de perto, os artistas denunciam no que são e fazem as mesmas imperfeições da nossa humanidade pouco atraente ou edificante, se a despimos das idealizações narcisistas com que a vemos e nos vemos.

Mário de Andrade é talvez o único exemplo de artista cuja vida no sentido acima proposto é passível de ombrear com os méritos da obra, senão mesmo superá-la. Esta verdade é aferível antes de tudo na leitura da sua correspondência e no depoimento muitas vezes comovente dos que tiveram o privilégio de merecer sua amizade e dedicação. Sua correspondência, documento único na cultura brasileira, está aí para quem queira verificar o quanto imprimiu de humanidade generosa a tudo que criou e sobretudo às amizades que soube conquistar e manter. É esta para mim a grandeza maior da obra de Mário de Andrade. A ela devo, quando ainda mais jovem e carente de um sopro de humanidade substitutiva na minha solidão amargada no meio em que vivi, uma inesquecível experiência de beleza e generosidade simbolicamente compartilhada.

31 de julho de 2004.

4 comentários:

  1. Luciano Oliveirajunho 06, 2010

    Espero, Fernando, que consiga, com minhas limitações que às vezes beiram a ojeriza a essas inovações tecnológicas, exprimir toda a admiração que senti ao ler seu belo texto sobre seu ídolo Mário - que, de resto, nunca compartilhei, pelo menos no plano literário. Não gosto de Macunaíma, um livro que considero artificial demais para o meu gosto. Quanto ao seu (dele) silêncio sobre Graciliano, objeto de minha quase devoção, que estupidez...

    Luciano Oliveira

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  2. Rapaz, sou um ignorante. Nunca li nada de Mário de Andrade, apesar de ser um leitor voraz.
    No momento estou com Crime e Castigo...

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  3. Luciano:
    Fico sinceramente feliz por ler seu comentário no meu blog, à parte o que contenha de concordância com meus pontos de vista. O texto acima,extrato de um diário que há anos desisti de continuar escrevendo,tem muito a ver com o que temos discutido no cotidiano da nossa amizade que tanto importa para mim e para muitas das leituras que faço e fazemos. A leitura do seu livro sobre Machado de Assis e Graciliano Ramos, cuja composição prazerosamente acompanhei,além dos desdobramentos associados ao destino do seu livro,estão presentes nesse extrato que afinal me decidi a postar no blog.
    Fernando.

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  4. Brasileiro:
    É um prazer voltar a ler notícias suas. Considerando abstratamente tudo o que não lemos nem sabemos, todos somos ignorantes, pois o que sabemos é apenas uma gota d´água dentro do oceano de ignorância em que bracejamos. Tudo que podemos fazer é corrigir nossas limitações - ou nossa ignorância, noutras palavras - procurando ler os autores que importam. Cada leitor escolhe ou deveria escolher os seus de acordo com suas prioridades irredutíveis. Diante disso, não sei se Mário seria um autor que você precisaria ler para saber o que precisa saber de acordo com sua singularidade de leitor. Tudo que sei lhe dizer é que para mim ele foi um autor essencial. Já não é mais, embora tenha deixado em mim marcas indeléveis, que de resto amo preservar. Um abraço,
    Fernando.

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