terça-feira, 15 de junho de 2010

Nuvem Movente


Um homem acorda no meio da madrugada. Acorda como se fosse arrancado de um poço profundo e escuro, pois de fato emerge de um sonho angustiante, quase um pesadelo. É um sonho que se repete, sempre dentro de uma atmosfera sombria e opressiva cujas variações se enraízam em cidades monstruosas. Embora sempre identificável – a deste sonho era São Paulo, Recife é a mais frequente – a cidade é uma força destruidora, um labirinto onde cada rua, cada esquina ou passagem se desdobra em vias sem saída. Não há para onde ir, nenhum mapa ou guia confiável.

O homem sabe para onde quer ir: quer voltar para sua casa, quer encontrar um caminho de volta ou fuga das ruas atemorizantes que se sucedem numa cadeia interminável. São ruas que não conduzem a lugar nenhum, salvo essa corrida ofegante e desesperada dentro da cidade hostil e eriçada de perigos. A cada esquina ele esbarra nos deserdados da vida que dele se acercam como uma horda faminta, sedenta de destruição. Quer apenas voltar para casa, repor os pés em solo conhecido. Quer encontrar um estranho confiável, alguém que lhe indique dentro do mapa confuso e atordoante a via de fuga da rua sem lei para a casa perdida, a cidade apagada do mapa onde antes, numa vida remota, traçou linhas de reconhecimento e solidariedade com o semelhante que é agora pura e brutal ameaça à sua sobrevivência. Na cidade fantasmagórica do seu sonho, o outro, o habitante sem raízes e humanidade, brota de cada esquina como uma força votada à sua destruição. Até a avenida, os espaços abertos espraiando-se pela cidade noturna, até isso avança sobre ele como potência aniquiladora.

Enfim acorda dentro do quarto escuro, dentro da noite solitária, apenas cortada pelo ruído dos aviões e dos carros que rolam no asfalto. Então respira aliviado, ciente de que tudo foi apenas a repetição de um sonho ou pesadelo recorrente. Provando a si próprio que está reposto na realidade palpável e banal, como uma âncora na qual sua solidão respira, uma ilha repacificada, lê o e-mail de um amigo que parece encontrar na fotografia a âncora que encontra na realidade acordada, na vigília noturna. Pensa então que a fotografia é na vida do seu amigo órfão de certezas o que a lógica foi no universo sem certezas de Bertrand Russell. A vida humana, pondera, é apenas uma nuvem movente. É o que se diz contemplando a nuvem fixada na fotografia enviada pelo amigo fotógrafo, uma das muitas nuvens que ele congela na câmera e depois transporta para a escuridão do laboratório onde se entrega a pacientes experimentos de cor, sombra, tonalidade, volume... O homem volta a contemplar no silêncio da madrugada a nuvem congelada na fotografia e enfim repousa durante alguns vagos minutos. Depois escreve uma resposta para seu amigo fotógrafo.

D.:

Sei do seu amor, do seu culto pela fotografia. Por isso não me surpreende tanto o fato de você agora devotar tanto do seu tempo e de sua necessidade criativa a ela. Acho isso bem mais belo do que as experiências correntes e possíveis nas nossas vidas. Como individualista e solitário, sempre acreditei que precisamos buscar algum sentido para nossa vida dentro do que somos, dentro da vida que apenas tem sentido a partir da nossa perspectiva. Se já acreditava nisso, a idade e a experiência apenas concorreram para reforçar essa minha convicção. Tolo é quem espera um sentido vindo de fora, vindo do outro, tão deslizante e compacto no seu egoísmo agora elevado a graus inconcebíveis.

O mundo tornou-se um grande espelho onde egos insignificantes, mas no geral arrogantes, se miram e exigem que o espelho reflita sua grandeza ilusória. Gostei muito de escrever uma crônica ficcional, de tom expressionista, ou coisa que o valha, no meu blog. Chama-se “O delírio de onipotência do narciso consumista”. É uma das poucas coisas que gostei verdadeiramente de fazer, pois expressa muito do que vejo e detesto na cultura contemporânea, nos modos correntes de convívio que já não tenho paciência nem interesse em tolerar. O que procurei sempre, dentro do individualismo acima mencionado, foi realizar no convívio com as pessoas um sentido de reciprocidade e compaixão (isto é, padecer com, sofrer, mas também gozar, com o outro). Duvido cada vez mais da possibilidade de realizar esse sentido de vida convivida. Drummond escreveu certa vez que viver é conviver. No entanto, penso que o sentido que encontrou para a própria vida foi criado a partir dele próprio, dentro da sua subjetividade intransigente. Um dia, quando visitei Antonio Candido em São Paulo, ele me deu o exemplo do quanto Drummond era um homem difícil, quase inacessível ao convívio espontâneo e caloroso. No entanto, ele escreveu isso que acabo de lhe escrever: viver é conviver.

Volto ao que mais importa, e deveria ter sido o centro desta crônica. Volto à sua foto, uma entre as milhares que você deve ter feito e refeito no seu laboratório ou coisa que o valha. Por que você não viu o filme sobre a vida e a obra de Georgia O´Keeffe? Acho que há nele uma mina de beleza exposta ao olhar plástico de uma pessoa como você. Há cenas, takes, enquadramentos, que valem por um quadro, uma paisagem congelada na memória. Continue devotado às suas nuvens, D., pois nossa vida é apenas uma nuvem movente e vale pela forma que para ela inventamos recortada na vasta paisagem do céu indiferente à nossa passagem por esse mundo tão incerto e fugaz.

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