terça-feira, 12 de outubro de 2010

Vargas Llosa e o Nobel




Vargas Llosa foi enfim agraciado com o Nobel de Literatura, o que é de justiça, ainda que tardia. Sabemos que o Nobel com frequência sobrepõe critérios políticos aos estéticos, que no meu entender deveriam ser prevalecentes. Isso fica evidente quando acaso corremos os olhos pela lista dos premiados, não poucos desconhecidos por grande parte do público universal da literatura. Além de conhecidos e apreciados numa esfera restrita, logo mergulham no esquecimento mal a repercussão momentânea decorrente do prêmio se dissolve na mídia e no mercado editorial. Bastaria a propósito observar os nomes destes premiados a partir de 2000: Gao Xingjian, Imre Kertész, Elfriede Jelinek, Orhan Pamuk, Herta Müller. Quem de fato os conhece no Brasil e em grande parte do mundo ocidental, incluídas suas extensões periféricas?

O leitor pode discutir os méritos estéticos da obra de Vargas Llosa, assim como os discutem alguns críticos que lhe depreciam a obra no que encerra de filiação ao realismo típico do romance novecentista. Ressaltando o quanto os condicionantes políticos e ideológicos perturbam apreciações dessa natureza, acrescentaria que Vargas Llosa é combatido antes de tudo devido à natureza ideológica do discurso com que desde a juventude intervém no debate público.

Até recentemente o intelectual procedente da América Latina se distinguia como intelectual público. Até mesmo Borges, o mais atípico e livresco rebento dessa tradição, teve sua obra e biografia momentaneamente subordinadas à força imperativa dessa circunstância político-cultural. Já que seu nome veio à baila, importa lembrar que morreu sem ganhar o Nobel, erro que o atual presidente da Academia Sueca é o primeiro a reconhecer. Vargas Llosa constitui um dos exemplos mais vivos e constantes do intelectual militante, tão constante, aliás, que teimosamente se destaca como um dos últimos sobreviventes dessa espécie em vias de extinção. Autor de obra e notoriedade precoces, literatura e apaixonada participação política se entrelaçam no desdobramento de sua biografia.

Por que Vargas Llosa é tão combatido no Brasil e sobretudo no Peru, seu país de origem? Antes de tudo, por se opor ao comunismo e a ditaduras de direita e esquerda tão comuns na história da América Latina. Na juventude aderiu ao marxismo e apoiou entusiasticamente a Revolução Cubana. Não obstante, ousou discordar desta quando os fatos passaram a comprovar o desvio ditatorial contraditório dos ideais libertários que antes justificavam sua adesão.

Como é também típico da história intelectual latino-americana, Vargas Llosa formou-se tendo como modelo a cultura parisiense. Espelhou-se antes de tudo em Sartre, o grande mandarim da inteligência de esquerda entre as décadas de 1950 e 1970. Quando eclodiu a histórica polêmica entre Sartre e Camus (documentada num livro de Vargas Llosa: Contra Vento e Maré), Vargas Llosa tomou o partido do primeiro. Anos mais tarde, depois de um percurso acidentado, que passa da adesão ao comunismo e à Revolução Cubana à crítica das utopias de esquerda e conversão combativa ao liberalismo, Vargas Llosa dá enfim razão a Camus.

É curioso o fato de que, escrevendo sobre Sartre no remoto ano de 1964, quando este provocou momentosa polêmica ao recusar o prêmio Nobel de Literatura, Vargas Llosa o aprecie em termos que anos mais tarde, também hoje, se encaixam perfeitamente na imagem controvertida que seus críticos traçam dele próprio. Vale a pena conferir: “Sartre não facilita a tarefa dos críticos, obriga-os a correr, a ir e vir, a experimentar cada vez novas algemas para prendê-lo. O que não perdoam nele é a sua condição de franco-atirador, sua independência de julgamento, sua atitude alerta, sua imprevisibilidade, seu inconformismo. Nem a direita nem a esquerda conseguiram ´oficializá-lo`: por isto o atacam com tanta virulência”. (Mário Vargas Llosa, Contra Vento e Maré, p. 55).

Salvo o fato de que a virulência cedeu no tom e no ímpeto, sintoma do abrandamento dos antagonismos ideológicos na cena intelectual do presente, a citação acima aplica-se perfeitamente ao percurso ideológico de Vargas Llosa. Ele e Octavio Paz foram dos primeiros, vale a pena lembrar aqui o exemplo de José Guilherme Merquior no contexto brasileiro, que se reconciliaram com a melhor tradição liberal para combater Cuba e os movimentos de esquerda e direita na América Latina. Assim procedendo, como seria previsível, pois a história ideológica está saturada de exemplos semelhantes, foram atacados por ambos os lados. Mas é sempre difícil, salvo para os intolerantes e dogmáticos indiferentes aos fatos impositivos da realidade, acomodá-los num extremo ou noutro. Afinal, ambos aderiram ao liberalismo não para justificar regimes opressivos de direita, não para se acomodarem às iniquidades da nossa história social e política, mas para denunciarem a desigualdade e a injustiça produzidas tanto à esquerda quanto à direita.

Vargas Llosa esteve muitas vezes no Brasil e muito conhece da nossa tradição social e literária. Quando escreveu A Guerra do Fim do Mundo, ampla narrativa inspirada no grande clássico de Euclides da Cunha, fez demorada viagem de pesquisa através do sertão da Bahia. Antes disso leu muito sobre o Brasil, em particular sobre essa guerra que vincou de modo traumático o início da nossa história republicana e sobrevive na nossa memória social como uma das evidências mais brutais de extermínio de uma sofrida fração do nosso povo incendiado por um ideal utópico inspirador de resistência inédita na história dos nossos conflitos sociais. Seu romance é antes de tudo uma recriação ficcional do messianismo primitivo do sertanejo brasileiro e da intolerância ideológica que resulta em cegueira mútua: cegueira dos seguidores de Antônio Conselheiro, transfigurados pelo delírio utópico do beato; cegueira dos adeptos intolerantes da República, que erradamente figuraram a resistência de rebeldes miseráveis como se fosse um movimento de restauração da monarquia associado até ao capitalismo inglês.

Durante muito tempo Vargas Llosa afirmou que A Guerra do Fim do Mundo era o melhor romance que tinha escrito. Outros no entanto preferem Conversa na Catedral. Ele próprio, crítico literário refinado e grande manipulador das técnicas narrativas, reconhece o quanto escolhas dessa natureza são discutíveis. Uma coisa, porém, continuou sustentando: A Guerra do Fim do Mundo foi o romance que mais lhe deu trabalho e portanto lhe consumiu energia e imaginação recriadora dos eventos e documentos pesquisados.

O Paraíso na outra Esquina, belo título de romance, foi um projeto que Vargas Llosa nutriu durante muito tempo. Embora somente publicado em 2003, já por volta de 1985 a figura extraordinária de Flora Tristán, protagonista feminina da obra, já o fascinava. Avó do grande pintor Paul Gauguin, ambos dividem o conjunto dessa extensa narrativa que desdobra em linhas paralelas suas vidas desenhadas em capítulos justapostos. Parece-me pertinente afirmar que esse romance constitui outra variação ficcional das frustrações e desastres germinados pela imaginação e ideais utópicos dos personagens. Flora foi sem dúvida uma mulher extraordinária, admirável precursora dos movimentos feministas numa época cuja intolerância com relação a tais ideias o leitor pode facilmente desenhar. Quanto a seu neto, Gauguin, renunciou às vantagens e conveniências da vida burguesa em Paris ao migrar para o Taiti em busca de um sentido de vida liberto das convenções civilizadas em meio a povos e culturas remotas e aderentes ao mundo da natureza.

Outro dos romaces recentes de Vargas Llosa que merece registro num breve artigo de circunstância é Travessuras da Menina Má. Este é um romance de rica e envolvente ação. Narrando os encontros e desencontros amorosos de Ricardo e Lily, que se conhecem ainda adolescentes no Peru, o livro se estende através de décadas movimentadas e turbulentas num percurso que compreende a Paris revolucionária dos anos 1960 e a swinging Londres do mesmo período (não seria arbitrário concluir que uma substancial fração dessa parte da narrativa é projeção da própria biografia do autor); a cultura hippie associada à liberação do sexo e da droga; a Tóquio dos mafiosos e por fim a conturbada atmosfera de Madri durante a transição política dos anos 1980. A meio disso, as contínuas e desconcertantes mutações de Lily, a menina má, podem ser lidas como expressão literária de um mundo cultural regido pela mudança acelerada e atordoante. Daí se desprendem nossas incertezas tão dolorosas, as identidades confusas que vestimos e logo trocamos e logo perdemos ou simplesmente rejeitamos, pois Lily não tem sequer identidade nominal estável.

Por fim, acrescentaria meu apreço pelo crítico literário e pelo infatigável artesão das formas narrativas que Vargas Llosa tem espelhado em obras como A Orgia Perpétua (1979), La Verdad de las Mentiras (2002) e Letters to a Young Novelist (2002). Peço desculpas ao leitor por citar edições em línguas e datas divergentes das edições brasileiras correntes. É que recorri exclusivamente aos livros que tenho à mão. Repetindo o que já escrevi na primeira linha deste artigo, o Nobel faz enfim justiça, ainda que tardia, ao grande romancista, intelectual público e homem de pensamento e ação Mário Vargas Llosa.
Recife, 9 de outubro de 2010.

Um comentário:

  1. Olá, amigo! Vargas Llosa tem o direito de eleger o seu melhor livro. Fico com A Festa do Bode. Tolstoi achava A Morte de Ivan Ilitch seu melhor romance. Mas você observa que Llosa leu muito sobre o Brasil para escrever A Guerra do Fim do Mundo. Azar dele, que perdeu a eleição para Fujimori. Lula também não leu nada e está mais famoso que Lennon. On the rocks.

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