terça-feira, 5 de outubro de 2010
Universalismo versus Relativismo
O affair Sakineh repõe mais uma vez no cerne dos contatos entre culturas a controversa questão universalismo versus relativismo. Antes de entrar na questão especificamente referente a Sakineh, ressalto um fato óbvio: o desapreço ou a pura e simples rejeição no presente de qualquer teoria de fundamentação universalista. Sérgio Paulo Rouanet é um dos poucos herdeiros da tradição racionalista que têm corajosamente argumentado e polemizado em defesa da razão e do universalismo. Basta que se pense nestes dois livros em muitos sentidos admiráveis: As Razões do Iluminismo e Mal-estar na Modernidade.
Seria difícil fornecer razões suficientes para a rejeição do universal no clima intelectual e ideológico hoje corrente. Uma delas parece-me evidentemente consistir no fracasso colossal de ideais utópicos inspirados na tradição do pensamento de esquerda. Embora o marxismo, por exemplo, tendesse a adotar feições nitidamente nacionalistas na periferia do capitalismo onde mais fortemente se difundiu, seu alvo último era universalista: a luta de classes sobreposta às contradições típicas do nacionalismo versus imperialismo, a comunidade utópica universal sobreposta ao enxame de particularismos que domina a cena pós-moderna.
Outra razão decorreria de uma contradição gerada pelo acelerado processo de globalização econômica e cultural. Invadidos pela maré montante da globalização, que tende a dissolver as tradicionais fronteiras que antes demarcavam as diferentes nacionalidades, assistimos a uma acentuação contraditória da defesa de valores e símbolos nacionais. Digo-a contraditória porque ela anda ombro a ombro com a absorção de símbolos que a negam. No mundo da comunicação virtual, vinculando todos os extremos imagináveis, persistem ideologias e movimentos espontâneos que espelham de modo atordoante o convívio íntimo, não raro inconsciente, do global com o local, do estranho ou longínquo com o familiar e o próximo.
O affaiar Sakineh ilustra exemplarmente a atmosfera cultural acima grosseiramente esboçada. De repente a cultura ocidental, confusamente movida por valores hedonistas e permissivos, é assaltada por valores típicos de uma ética comunitária que impiedosamente anulam qualquer veleidade de autonomia da mulher no plano da ética religiosa e sexual. Que atitude adotar diante do problema ou mesmo aporia (direi entre parênteses beco sem saída, para ser mais claro) que se abre diante da nossa perplexidade?
Para o relativista cultural, se ele quer ser coerente, parece-me que a atitude é simples. Ele simplesmente cruza os braços, pois adota uma teoria baseada no reconhecimento da singularidade irredutível de cada cultura. Noutras palavras, se cada cultura é única e portanto intraduzível numa outra, tudo que nos resta é coerentemente respeitar os valores próprios a cada cultura. Mais claramente: não há tradução ética no Ocidente, central e periférico, para o que está ocorrendo no Irã com Sakineh.
Meu argumento se desdobra precisamente na linha avessa ao relativismo. Ele se fundamenta no reconhecimento necessário de valores éticos universais. É o único meio passível de autorizar algum tipo de argumentação crítica contra o que, da minha perspectiva, constitui a expressão de uma ética pré-moderna e comunitária que precisamos lutar para que seja superada. É por acreditar no sentido de um valor moderno de procedência ocidental, com perdão do truísmo, que me oponho à punição imposta a Sakineh.
Sei que já disse o suficiente para que relativistas, pós-colonianistas e outras tribos do particularismo irredutível caiam sobre mim. Podem de pronto acusar-me de aderir, sob a pele de uma justiça imbricada no universal, à ideologia da superioridade ocidental, à justificação do imperialismo que sempre se valeu de ideais universalistas para espoliar uma infinidade de culturas periféricas às quais impôs seu poder inclemente. A história é farta de exemplos que o presente pode ampliar ao gosto do leitor ávido por reivindicar a autonomia e singularidade de cada cultura. Trocando em miúdos, esta me parece a conclusão lógica dos relativistas, ninguém tem o direito de meter o bedelho na cultura iraniana. Ela é regida por valores próprios, que decorrem de uma história e de uma formação cultural intraduzível nos termos dos valores individualistas do ocidente cujas consequências estão aí à vista de quem as queira ver: o consumismo infrene, o narcisismo que reduz o outro a puro reflexo do que espelha, o hedonismo dissolvente da unidade e dignidade éticas que antes imprimiam solidez e harmonia à família e às relações humanas fundadas na tradição e na organicidade de uma ética comunitária.
O enredo acima, oposto à babel da cultura ocidental, é sem dúvida tentador. Por isso é compreensível que tantos, inteiramente perdidos no cerne de uma cultura que parece mover-se desprovida de norte e referenciais confiáveis convertam-se a seitas irracionalistas e malandras ideadas por charlatães que vendem qualquer coisa aos mendigos da luz consoladora da religião, aos órfãos da utopia e da esperança capazes assim de renunciar à última moeda da sobrevivência material para cair nas garras de vendilhões e mistificadores da alma e da salvação que querem apenas salvar sua rapinagem num mundo em que o fetiche da mercadoria tornou-se transparência deslavada e cínica. E todavia nem um cego carente de luz mistificadora, nenhum espoliado por falsos profetas ousa remover a névoa do engodo suspensa à luz do dia das farsas que pululam nas emissoras de rádio, na TV e outdoors da cidade, na fachada das igrejas que não passam de mercadinhos da fé.
Sei que meu argumento em defesa do universalismo me expõe a críticas procedentes de todas as correntes teóricas imagináveis. Sei ainda que o próprio conceito de universalismo é vulnerável ou impreciso. Ele é produto da Europa hegemônica, com extensões norte-americanas, que portanto sempre conciliou ideais universalistas com colonialismo e imperialismo. Não sou ingênuo ou tendencioso ao ponto de ignorar esses fatos. Ainda assim, não importando o quanto limitado seja o alcance concreto dos ideais universalistas, não reluto em aderir a eles. Digamos, para simplificar esse ponto, que sejam antes um mito do que um fato, uma realidade efetiva. Pois afirmo que, mito por mito, prefiro antes o dos ideais universais do que qualquer mito particularista, como o do nacionalismo ou qualquer expressão do relativismo cultural.
O mito do universalismo, no meu entender, produz efeitos de realidade muito mais positivos. É claro que nunca alcançamos nem nunca alcançaremos a plena realização dos direitos humanos, a plena realização da dignidade humana universal. Mas a luta por esses ideais tende a produzir efeitos de realidade muito mais positivos. Quem hoje no Ocidente e suas extensões periféricas ousa defender publicamente o racismo, a inferioridade da mulher, a dominação de uma nação por outra, a supressão das liberdades civis, a unificação da religião com o Estado e semelhantes formas de opressão decorrentes de ideologias particularistas? Se nenhum grupo politicamente hegemônico ousa adotar essas ideologias perniciosas, deduzo que esse avanço civilizacional é fruto das lutas e conquistas decorrentes do mito universalista.
Mito por mito, antes um orientado para o bem do que para o mal, antes um mais amplo que restrito. A propósito, gosto sempre de lembrar uma anedota relatada por Ray Monk na sua extraordinária biografia de Wittgenstein. Certo dia um discípulo deste procurou-o ansioso por saber o que deveria fazer para melhorar o mundo. Resposta de Wittgenstein: Procure melhorar a si próprio, pois isso é tudo o que você pode fazer para melhorar o mundo. Transpondo esse sábio conselho da esfera individual para a social, do relativo para o universal, diria eu parafraseando o filósofo: procure cultivar e lutar por mitos culturais que concorram para melhorar a sociedade na qual vivemos. Diria mais: para melhorar o mundo universalmente compreendido em que vivemos. Assim você fará algo no sentido de melhorar o mundo.
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Olá...
ResponderExcluirSobre a argumentação relativista nos moldes que está exposto no texto, e que invocam um certo "deixa ser como eles querem pois a nós não pertence", creio que estas nunca poderão ser completamente sustentadas, por que independente das multiplicidades de culturas, tradições, etc, como é possível desvincular as pressuposições que a todos são comuns?
Eu parafrasearia Wittgenstein de uma maneira diferente: conheça a si próprio e não se contradiga, isto é o máximo que se pode fazer no sentido de melhorar o mundo.
Muito bom o seu texto....
Abraços............TC
Caro (a) TC:
ResponderExcluirReceio que meu argumento não tenha ficado muito claro. Não advogo no texto um relativismo que, nas suas palavras, deixariam tudo como eles (quem?) querem para ver como é que fica. Meu argumento sustenta claramente valores éticos de extensão universal, que no meu entender são a única perspectiva coerente para agirmos, tomarmos posições diante de culturas que agridem valores humanos de reconhecimento universal. O relativismo, dentro dos limites do meu argumento, é que implica uma atitude de omissão baseada na crença de que cada cultura é única e portanto intraduzível em qualquer outra. Um abraço,
Fernando.
Olá Fernando...
ResponderExcluirFoi isto mesmo que eu havia entendido (e concordado), apenas ressaltei que não acredito em uma tal noção de relativismo que voga por uma completa omissão de uma determinada cultura ante uma outra, isto por que dentre as variadas culturas é sempre possível encontrar pressupostos em comum. Não seria o próprio homem um pressuposto em comum? Não pode-se pensar nas culturas como manifestações a favor das respostas a razão do homem?
Concordo com o seu texto apenas fiz uma ressalva....
Abraços............Tiago (TC)
Tiago:
ResponderExcluirSuponho que agora nossos comentários ficam mais claros na linha da convergência que advogamos. Muito grato novamente,
Fernando.
Olá, Prof. Fernando!
ResponderExcluirSeu texto nos proporciona aprofundar nossa visão sobre o relativismo comparando-o ao conceito de universalismo. Ótimo texto!
Abraços!
Olá, Roberleidy: Muito grato pela leitura e comentário. Fico contente por saber que meu artigo foi de algum proveito para você. Abraços de volta.
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