sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Bergman - Depois do Ensaio


Há pessoas sem poço, pessoas que vivem como se a vida fosse uma superfície lisa e plana ou um espelho sem profundidade. Melhor dizendo, vivem como se fossem ocas por dentro ou fechassem todas as passagens que acaso dariam acesso a seus abismos. Essas pessoas desprezam os filmes de Bergman assim como desprezam a literatura de Clarice Lispector ou os abismos metafísicos subjacentes à obra de um Strindberg ou um Lúcio Cardoso.

Depois do Ensaio é um filme que mataria de tédio esse tipo de gente. Pois, além de escavar os poços obscuros dos três personagens que se confrontam – Henrik (Erland Josephson), Anna (Lena Olin) e Rakel (Ingrid Thulin) – concentra toda a ação nos limites de um palco vazio. Aliás, conviria frisar que a ação do filme, ou da peça filmada, não deve ser confundida com o que o público correntemente entende por filme de ação. Há um abismo intransponível entre Bergman, qualquer dos seus filmes, à exceção provável seria Fanny e Alexander, e esse tipo de público, que constitui a maioria esmagadora.

Depois do Ensaio foi filmado logo depois que Bergman realizou seu filme mais popular e mais acessível ao grande público, o já mencionado Fanny e Alexander. Vale ressaltar que os traços dominantes da sua filmografia também permeiam este filme: a herança puritana e a culpa, o amor e seus emaranhados conflitos, o desejo e a morte, as obsessões metafísicas... Enfim, os poços obscuros da nossa condição tão falível, os abismos nos quais nos perdemos e salvamos também desenham muitas das linhas narrativas de Fanny e Alexander. O que diferencia este filme é a forma narrativa, a forma usada por Bergman para recriar na tela a sua infância, a família realçada pelo fascínio e o choque identificáveis em toda narrativa de família.

Cada história de família é singular. No entanto, há muito de comum a todas elas, contrariamente à frase famosa escrita por Tolstoi como parágrafo de abertura de Anna Karenina. Traduzindo livremente: As famílias felizes são todas parecidas; as infelizes são singulares no seu modo de infelicidade. É sem dúvida uma abertura de forte apelo literário, mas pouco condizente com a realidade aferível das histórias de famílias, sejam elas felizes ou infelizes.

A ação de Depois do Ensaio, compreendida no sentido estético e amplo do termo, circunscreve-se ao espaço literal de um palco onde contracenam os personagens acima referidos: Henrik, Anna e Rakel. As unidades de ação, espaço e tempo são portanto precisas. O filme começa quando Henrik, solitário e cansado, está sozinho no palco depois de ensaiar O Sonho, de August Strindberg, o grande dramaturgo sueco tantas vezes levado ao palco por Bergman. Henrik confessa ter por hábito ficar sozinho e descansar no palco depois de ensaiar. Precisa disso como condição psíquica inerente à sua atividade criadora. Mas eis que Anna perturba sua solidão a pretexto de procurar um bracelete perdido ou esquecido durante o ensaio. A partir desse ponto os dois personagens são tensionados à volta de situações humanas correntes na obra de Bergman: o vínculo erótico entranhado na arte dramática, o poder mesclado de aversão e desejo que a figura paterna e o diretor, variante da primeira, exercem sobre a mulher jovem e bela, os sentimentos de amor e ódio entre mãe e filha.

Anna é uma jovem e bela atriz. Ela integra o elenco da peça de Strindberg dirigida por Henrik. É em torno da peça que ensaiam, O Sonho, que se tece o diálogo relativo à arte dramática, o mundo que Bergman verdadeiramente habitou, o único que tinha real sentido para ele. Rakel, mãe de Anna, foi também atriz e também representou sob a direção de Henrik. Morreu de alcoolismo. Ela é introduzida na narrativa através da memória dele e assim assistimos a uma regressão da ação no tempo. Enquanto Rakel, bêbada e carente de amor, contracena com Henrik, Anna, ainda menina, assiste silenciosa ao desdobramento da trama sentada no sofá.

Como acima já sugeri, Depois do Ensaio diz muito sobre a arte dramática, notadamente sobre a complexa relação que envolve o diretor e suas atrizes. Representar, imprimir sentido dramático à vida, recriando-a para além do fluxo errático compreendido no seu movimento rotineiro e inconsciente, é exercer controle racional sobre as paixões. Esse é um dos pontos fortes da tensão que confronta Henrik e Rakel. Para ele, o diretor precisa exercer o controle racional da experiência estética. É por isso que detesta as forças “espontâneas, imprudentes e imprecisas”, como afirma num momento de exasperada discussão com Rakel. Esta simboliza a força irracional e confusa que precisa ser plasmada esteticamente para que da desordem e do caos brote a arte lastreada nos seus elementos de ordem e organização significativa. O que deve prevalecer na atividade que se desdobra no palco, como enfaticamente ressalta Henrik, são a disciplina, a clareza, a luz e o silêncio. Para Rakel, no entanto, tudo isso é inconsistente e improvável. Contrariamente à teoria da pureza, da estética de fundo racional exposta com intensidade e exaspero por Henrik, ela acredita que o teatro é tumulto e energia emocional.

A história do teatro, assim como a da arte em geral, produziu inúmeras estéticas. Procedendo a uma redução grosseira, penso que todas poderiam ser alinhadas em dois grupos fundamentais: o das estéticas racionais e o da irracionais. Talvez surpreenda a muitos apreciadores do cinema de Bergman o fato de incluí-lo no primeiro grupo, o das estéticas racionais, quando consideram o confuso tumulto das paixões que atormentam o universo de suas personagens, sobretudo as mulheres. Depois do Ensaio constitui um dos melhores pontos de referência, no conjunto da filmografia de Bergman, para que melhor se compreenda essa questão exposta a tanta controvérsia.
Recife, 28 de setembro de 2010.

4 comentários:

  1. Meu caro e querido Fernando,

    Como sabe, sou um dos que, no geral, não gostam do cinema de Bergman.
    Acho que o cinema, sendo fundamentalmente imagens, a transposição para a tela de estados d´alma bergmanianos produzem de um modo geral apenas tédio!
    Nem por isso me considero um homem raso; tenho meus abismos, mas acho que o melhor meio para lidar com eles é mesmo o livro - entenda: a matéria escrita.
    Veja como são frustrantes adaptações de autores como Dostoiévsky e Lúcio Cardoso, cuja "Casa" foi "Assassinada" numa adpatação muito ruinzinha acho que de Sarraceni.
    Um reparo: "Fanny e Alexander", o maior sucesso de Bergman, não é o único de seus filmes que adotam uma forma narrativa mais palatável para o grande público. Lembro, como exemplo, "O Ovo da Serpente", sobre o clima berlinense contra o qual erigiu-se o mal absoluto do nazismo, que acho impressionante. (Mas, pensando bem, "O Ovo" não é um filme tipicamente bergmaniano...)
    Por fim, professor, não me humilhe tanto. A primeira frase do seu texto, "Há pessoas sem poço", é antológica. Estou me roendo de inveja por não tê-la formulado antes...

    Abração,

    Luciano Oliveira

    ResponderExcluir
  2. Luciano:
    Acredite que pensei em você quando escrevi a primeira frase do artigo acima postado: "Há pessoas sem poço..." Pensei em você por saber da sua antipatia por grande parte dos filmes de Bergman (Depois do Ensaio, tenho certeza, seria um deles se você acaso se desse ao trabalho de o ver. Pensei em você por saber que você não merece a frase citada. Mas que fazer diante de uma frase de efeito, que sempre simplifica ou ignora as infinitas variáveis implicadas no juízo? Ajustando o relógio: sei que você tem poço, embora evite os de Bergman, que o entediam.
    Quanto ao mais, discordo quando você afirma que cinema é fundamentalmente imagem. Você sabe que o próprio cinema mudo, com seus gênios mímicos tão expressivos como Chaplin e Buster keaton, não podia prescindir da palavra. Cinema é imagem e verbo, Prof., imagem e palavra, entre outras coisas. Cinema é a arte mais impura que existe, pois saqueia meios expressivos de todas as outras artes: da literatura, do teatro, da música, das artes plásticas... Mesmo filmes planos e banais, sem nenhuma profundidade, dependem diretamente do suporte expressivo da palavra. Ninguém precisa ser literato ou cultor obsessivo da palavra para curvar-se à força deste fato estético. Encurtando a história, gosto de lembrar a boutade de Millôr: uma imagem diz mais do que mil palavras. Agora tente dizer isso sem usar palavras... Em suma, é muito assunto para pouco comentário, Luciano. Muito grato,
    Fernando.

    ResponderExcluir
  3. O Sétimo Selo apesar de "abusar" de alegorias não é um filme monótono. E acho O Ovo da Serpente e Fanny e Alexander são filmes com muita profundidade crítica. Não existe a dicotomia infelizmente para um filme estimular chaves de interpretação da realidade ele precisa ser monótono, sem ritmo, confuso. Tempos Modernos de Chaplin mostra como as gags de um clown podem criticar as nossas alienações numa sociedade super tecnológica. Cinema aspirinas e urubus foi criticado por ser monótono. Não achei. Não tem um ritmo acelerado, mas todas as cenas remetem a outras e não vazios de prestação de informação para entendermos o choque amistoso de personalidades entre o alemão e o brasileiro coronelista. Sei quando um filme é monótono quando o acompanho racionalmente, mas olho para o relógio pensando quantos minutos faltam para acabar e o que tenho para fazer depois do cinema e amanhã cedo. Nos filmes significativos o roteirista, diretor, atores e editores conseguem com que eu mergulhe numa "província infinita de significados". Esqueço do meu Eu cotidiano e mergulho num Eu narrativo, como seria o meu destino se eu tomasse decisões iguais ou contrárias dos personagens. Só que faço isso sem perceber, sem excessos de racionalidade, sendo enredado pelo redemoinho da história. Redemoinho onde vive o Saci Pererê.

    ResponderExcluir
  4. Dirceu: comentando livremente seu comentário, O Sétimo Selo é um dos meus preferidos dentre os muitos filmes de Bergman. Falando ainda dos meus preferidos, Morangos Silvestres vem em primeiro lugar.

    ResponderExcluir