terça-feira, 1 de março de 2011
Iluminismo e Caráter Nacional
Dante Moreira Leite. O Caráter Nacional Brasileiro. 4a.ed. definitiva, com introdução de Alfredo Bosi. Sao Paulo: Pioneira,1983.
Talvez um dos critérios decisivos para a aferição da permanência de uma obra de ciência, palavra aqui empregada à margem de qualificações estreitamente positivistas e iluministas, consista na sua capacidade de sobreviver às teses e juizos contingentes que acaso abrigue no corpo de formulações e argumentos com que se nos apresente. Se esta é uma afirmação sustentável, será então justo assinalar em O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, uma das mais importantes obras dentro da sua especialidade no conjunto da bibliografia brasileira de ciências sociais. Pois se é certo que contém ela teses e juízos sem dúvida corrigidos pelo processo de transformação objetiva da sociedade, além de obras subsequentes favorecidas na sua formulação pela explicitação de experiências e recursos intelectuais de que Dante Moreira Leite se via privado, ainda assim ela resiste a novas leituras e releituras com a vibração e densidade que dela fazem um dos mais agudos trabalhos de análise ideológica da cultura brasileira.
Explicitando um pouco do que nela me parece haver de falível, importaria acima de tudo frisar as fontes iluministas em que o autor se inspira para refutar o conteúdo ideológico das obras que estuda afirmando, em contrapartida, convicções "científicas" ao cabo tão merecedoras de qualificação ideológica quanto o conjunto da produção que se empenha em desacreditar. O argumento aqui exposto, estou certo, mereceria desenvolvimentos que uma mera resenha infelizmente não autoriza. Daí ficar eu devendo ao leitor provas, ou pelo menos argumentos mais consistentes, e passar à exposição das linhas gerais da obra.
Moreira Leite consagra largas seções da obra à exposição crítica dos conceitos básicos que enformam a composição e a sua análise da categoria caráter nacional brasileiro. Tais conceitos, elaborados e continuamente revistos ao longo de mais ou menos um século de investigações nos domínios da antropologia, sociologia e psicologia, incluída a experimental, são os de racismo, cultura, nacionalismo, personalidade básica, teoria, ideologia e, claro, caráter social e nacional. Nesta parte da obra, que se estende pelos seis primeiros capítulos compreendendo 146 páginas, ele cobre com claro e atento método expositivo o desenvolvimento científico dos conceitos acima, além de outros a eles conexos, nas obras de Marx, Freud, Franz Boas, Hans Kohn, Otto Klineberg, Erich Fromm, Margaret Mead, Ruth Benedict e muitos outros.
A parte entretanto decisiva corre do Capítulo 7 em diante, onde ele aplica os conceitos básicos antes expostos à obra dos autores brasileiros relacionada à construção do caráter brasileiro nas ciências sociais. Também aqui desenha-se investigação ambiciosa de amplo espectro. Partindo do texto que inaugura nossa fértil tradição ufanista, ao mesmo tempo em que oficialmente celebra a ocupação portuguesa nos trópicos, i.e. A Carta de Pero Vaz de Caminha, Moreira Leite avança até o nacionalismo brasileiro dos anos 50, formulado sobretudo pelos ideólogos do ISEB.
Como o propósito maior desta resenha é considerar o modo como analiticamente tratou a obra dos modernistas e de Gilberto Freyre naquilo que concerne à questão central da obra, observo com estranheza e desapontamento a omissão de Mário de Andrade, notadamente o Mário autor de Macunaíma, de Oswald de Andrade e das correntes direitista e conservadora do movimento. É certo que a obra contém um capítulo especialmente dedicado à análise do Retrato do Brasil, de Paulo Prado, e mais adiante, num outro capítulo, ampla seção atinente a Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. De qualquer modo, caberia tratá-los como representativos do modernismo brasileiro apenas na medida em que se atribuísse significação abrangente a este movimento que foi primariamente artístico e literário. Nao esqueço aqui, vale frisar, o quanto a nossa tradição literária esteve mesclada às questões de natureza social livremente consideradas. Por outro lado, o fato de Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros modernistas na obra omitidos estarem antes de tudo vinculados à produção de natureza literária não seria argumento que por si só justificasse o critério seletivo adotado por Moreira Leite, visto que em capítulos precedentes ele deu notável atenção a poetas e prosadores da literatura brasileira.
O fato é que o modernismo, compreendido na sua conceituação mais ampla, concorreu de forma decisiva para a consolidação de uma atmosfera ideológica e um estado de espírito radicalmente renovador e otimista com relação às possibilidades culturais e civilizacionais do Brasil. Isso é perceptível notadamente a partir do momento, precisamente associado à famosa viagem que os modernistas empreendem às paisagens históricas de Minas Gerais, em que se empenham numa verdadeira descoberta do Brasil. Essa descoberta traduziu-se em obras concretas de autoria de Mário e Oswald de Andrade nas quais é nítida a revisão criativa e positiva da cultura brasileira. Como já observei, o ponto culminante desse processo é a publicação de Macunaíma. Além de publicada no mesmo ano de Retrato do Brasil, encerra muitos elementos de afinidade e convergência com a obra de Paulo Prado, fato que passa ao largo das páginas que Moreira Leite dedica à sua interpretação pessimista do historiador paulista.
Também Oswald de Andrade merece algumas breves considerações nesse contexto. A omissão de sua obra, tão desigual e tecida ao sopro de suas intuições por vezes geniais, é também de se lamentar, se lembramos a importância da poesia que realiza nos anos 1920 recriando os cronistas coloniais que registram e celebram traços da cultura e da paisagem brasileira. Essa matéria interessa de forma direta à composição e objetivos do livro de Moreira Leite. Também o movimento antropofágico, de desconcertante radicalidade estética e ideológica, constitui variante fundamental para uma apreciação mais diferenciada e rica do largo e fascinante enredo sobre o nacionalismo e o caráter nacional que Moreira Leite descreve e analisa na sua obra.
Mas passo ao que mais importa neste breve comentário: o capítulo consagrado a Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Embora critique severamente Casa Grande & Senzala, Moreira Leite parte do reconhecimento da sua extraordinária importância na história intelectual brasileira. Observando características comuns a esta obra e a Os Sertões, de Euclides da Cunha, acentua, como já o fizeram outros críticos, os ingredientes de composição literária que as inscrevem em categoria híbrida atribuindo-lhes uma imperecibilidade inalcançada por empreendimentos semelhantes assinalados por ambições ostensivamente científicas.
Outra característica comum que importa aqui ressaltar é o "princípio redentor" inspirador das duas obras-primas. Enquanto Euclides da Cunha intenta redimir o sertanejo, intento cuja súmula estaria contido na célebre frase "o sertanejo é, antes de tudo, um forte", Gilberto Freyre o faz com relação ao negro num momento em que nossas elites encaravam com sombrio pessimismo a mistura racial de que resultara a população brasileira.
Moreira Leite assinala a inconsistência do plano interpretativo geral ao qual, de acordo com Freyre, Casa Grande & Senzala serviria como ensaio introdutório. A este seguiriam Sobrados e Mocambos, Ordem e Progresso e finalmente Jazigos e Covas Rasas. O que entretanto de fato se observa no ambicioso projeto a que Freyre se propôs sob o título geral "História da Sociedade Patriarcal no Brasil" é a repetição e a banalização das teses contidas em Casa Grande & Senzala nas obras compreendidas pela sequência prevista.
O que mais ressalta da análise desenvolvida por Moreira Leite é sua crítica severa aos métodos com que Freyre opera visando fundamentar juízos e conclusões abrangentes, tais como os que concernem à democracia racial brasileira, à nobreza da aristocracia rural pernambucana, à superioridade do escravismo brasileiro comparado ao de outras partes do mundo, à alegria do escravo, ao erotismo decorrente da mistura racial..., e o atual descrédito a que foram reduzidas suas construções ideológicas depois das lutas por direitos civis e da definitiva superação das formas tradicionais de colonialismo e opressão racial.
Com relação ao primeiro ponto, referente aos métodos e à teoria aplicados por Freyre, Moreira Leite conclui que o que nas obras dele se afirma é "o primado do subjetivismo e, portanto, de um inevitável relativismo". (p. 272) Indiferente a métodos e técnicas de verificação correntemente adotados na investigação sociológica contemporânea, Freyre serve-se do que ele próprio classifica como impressionismo sociológico para avançar conclusões cuja ousadia exigiria comprovação factual.
Quanto ao segundo ponto, pertinente a suas construções ideológicas nos domínios da investigação sócio-antropológica, Moreira Leite afirma: "Hoje, com a independência dos povos africanos e com a luta dos negros norte-americanos pelos seus direitos civis, a posição de Gilberto Freyre parece inevitavelmente datada e anacrônica. Finalmente, as posições políticas de Gilberto Freyre - tanto no Brasil como com relação ao colonialismo português na África - contribuíram para identificá-lo com os grupos mais conservadores dos países de língua portuguesa e para afastá-lo dos intelectuais mais criadores. Disso resulta que Gilberto Freyre é hoje, pelo menos no Brasil, um intelectual de direita, aceito pelos grupos no poder, mas não pelos jovens intelectuais." (p.27l)
Para Moreira Leite o processo de superação do pensamento ideológico começa a partir dos anos 50. Embora procure indicar os pontos de ruptura deste processo, ele acentua a sua complexidade sugerindo os dinamismos de um processo que conduz alguns ideólogos à revisão de suas teses, um exemplo seria Monteiro Lobato, ou à permanência de muitas das suas contribuições, não obstante enraizadas no solo onde brotou a ideologia do caráter nacional brasileiro.
Assim como em Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota, obra que em muitos sentidos intenta impor-se como sua sucessora, sem no entanto em nenhum deles a superar, O Caráter Nacional Brasileiro distingue na obra de Caio Prado Jr., sobretudo em Formação do Brasil Contemporâneo, o marco do processo de ruptura que divide o pensamento ideológico do científico. Como escreve o autor,
"Em resumo, Formação do Brasil Contemporâneo assinala um novo momento na interpretação histórica do Brasil: já não se trata de explicar a situação do país através de um ou outro fator - a raça, o clima, a escravidão, as características psicológicas dos colonizadores - mas de interpretá-la em função do sentido da colonização (grifos do autor). Essa interpretação é fundamentalmente dinâmica, e a análise das tensões criadas pelo sistema permitirão a Caio Prado Júnior reinterpretar vários episódios de nossa história, não porque esta seja monótona repetição de si mesma, mas porque um momento resulta das condições criadas pelo momento anterior ou por novas condições do mercado externo, para o qual estava voltada a produção brasileira." (p. 316)
Mas o processo geral de superação tem suas bases no desenvolvimento social e econômico do Brasil que se faz acompanhar, no âmbito da organização da cultura, do desenvolvimento da universidade, leia-se especificamente a Universidade de São Paulo, com resultados fecundos nos domínios da pesquisa e da interpretação científicas. Exemplos frisantes deste desenvolvimento seriam as obras de Roger Bastide, Florestan Fernandes e Antonio Candido.
Moreira Leite trata ainda de forma indicativa do papel desempenhado pelos intelectuais associados ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) na produção de uma ideologia nacionalista e desenvolvimentista. Ele identifica no projeto proposto em Ideologia e Desenvolvimento Nacional, de Álvaro Vieira Pinto, a concepção romântica de nacionalismo que supõe a unidade nacional acima das divisões internas e atribui papel decisório ao povo. (ver p. 319)
Embora a observação acima remeta especificamente à obra referida, não me parece errado estendê-la à ideologia nacionalista em geral, visto que as duas características mencionadas são de importância central para a concepção romântica do nacionalismo.
Moreira Leite argumenta que a superação da ideologia do caráter nacional é também verificável no plano da produção literária. Se é genericamente acertado afirmar acerca da nossa história literária, como já o fizeram Alceu Amoroso Lima e Antonio Candido, o conflito, seja ou não dialético, entre o local e o universal, Moreira Leite levanta dúvidas quanto à permanência desse esquema. Contra ele apresenta os exemplos cristalizados nas obras de Drummond, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, todos convergindo para uma dimensão de universalidade superadora da tensão que tem caracterizado o desenvolvimento geral da nossa literatura.
Concluindo, Moreira Leite observa que a ideologia do caráter nacional surge em momentos de crise articulados a movimentos nacionalistas. As teorias racistas, por sua vez, tendem a conferir legitimidade a formas de luta de classes ou ao domínio de um grupo sobre outro. Enquanto a primeira acentua o elemento de unidade nacional, sobretudo quando confrontada com situações belicosas, guerras externas ou internas, as segundas estimulam a divisão.
O autor acrescenta ainda uma periodização na qual ressalta o quanto a produção da ideologia do caráter nacional brasileiro e as teorias de fundo racista são devedoras do pensamento europeu. Admite, porém, a dificuldade de explicar tanto a aceitação no Brasil dessas teorias procedentes da Europa quanto o processo de superação da fase ideológica. De qualquer modo, explicita sua hipótese que reproduzo:
"Poder-se-ia apresentar, como hipótese a ser verificada posteriormente, a sugestão de que a ideologia do caráter nacional brasileiro passou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo." (p. 327)
Embora isento da convicção categórica com que certos continuadores da tradição iluminista celebram a razão e a ciência opondo-as à ideologia, aqui compreendida como saber parcial e legitimador de interesses idem, a característica última da investigação a que Moreira Leite se propõe é substituir a análise ideológica do caráter nacional até então produzida, por uma teoria fundada em critérios de máxima objetividade cientificamente verificáveis.
Prolongando esta tradição iluminista, cujo mais recente e declarado representante no Brasil é Sérgio Paulo Rouanet, Moreira Leite firmemente acredita que, alcançado o processo de desenvolvimento do saber ilustrado em que a ciência superasse a ideologia, os valores particularistas implícitos nas concepções de caráter, raça e nação seriam ofuscados pela realização da universalidade. Como bem a propósito esclarece a epígrafe por ele extraída do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, "Existe é homem humano".
Recife, outubro de 1997.
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Que bom que escreveu isso.
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