sábado, 26 de fevereiro de 2011

O Caráter Nacional Brasileiro


O Caráter Nacional Brasileiro. História de uma ideologia. 2a. ed. revista, refundida e ampliada. São Paulo: Pioneira, 1969.

Relutante entre iniciar ou concluir meus comentários a partir da epígrafe do livro ("Existe é homem humano", Guimarães Rosa) acabei por adotar uma solução de compromisso que consiste em começar pelo comentário de alguns usos e funções da epígrafe no âmbito da produção intelectual acadêmica. Um dos usos mais correntes a que se presta a epígrafe é o da ostentação de cultura. Mais que uma exibição de credenciais, muitas vezes infundadas, vale tal ostentação tanto para impressionar leitores pouco críticos quanto para validar relações de legitimação de saber no círculo dos pares. Como veremos, não é este o caso da epígrafe adotada por Dante Moreira Leite. Recortada com fino senso de propriedade crítica, condensa ela efetivamente o sentido fundamental da obra. Se a importâcia da epígrafe consiste no seu poder de concentrar em algumas palavras o significado essencial de uma obra, ou a tese central nela contida, não hesito em repetir que o autor procedeu com rara ciência de síntese crítica.
Em suma, desdobrando agora alguns dos significados implícitos na epígrafe, o objetivo perseguido por Dante Moreira Leite é submeter a noção "caráter nacional", que no seu entender não passa de uma ideologia, como já o indica o subtítulo da obra, a uma crítica inspirada no universalismo iluminista. Essa concepção epistemológica percorre o conjunto da argumentação proposta pelo autor mas é sobretudo evidente no capítulo 6, cujo título é "Método de análise das ideologias".

Valendo-se nos cinco capítulos precedentes de instrumentos críticos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia e à História das Idéias, compõe o autor o cenário teórico-conceitual sobre o qual articula seu projeto de crítica ideológica aplicado a um expressivo conjunto de obras destacadas do corpus da cultura brasileira. Bastaria dizer, visando sugerir a abrangência temporal e temática do objeto, que parte da Carta de Pero Vaz de Caminha, documento fundante da nossa tradição letrada, para vir ancorar na produção crítico-nacionalista e universitária dos anos 50 e 60.

Ilustrando um pouco o caráter processual da obra, parte Dante Moreira Leite de uma crítica do que designa como sendo "As raízes do caráter nacional". Dá aqui relevo a categorias de uso corrente na Antropologia: o estranho e o conhecido, de características similares às que Walter Benjamin identifica nas figuras do viajante e do artesão sedentário no ensaio "O Narrador"; etnocentrismo e autoritarismo; nacionalismo; racismo; caráter nacional. Operando com muita perspicácia crítica, não se limita a uma mera contraposição de termos tais como o estranho versus o conhecido. Indo além da aparência imediata, demonstra como à relação de oposição se sobrepõe uma rede de ambiguidades segundo a qual o estrangeiro, que num momento inspira reação de desconfiança ou medo, noutro inspira fascínio e um rico registro de desejos e realidades virtuais. Doutro lado, se o conhecido supõe sentimentos básicos de segurança e familiaridade condensados na experiência de sentir-se parte integrante de um grupo portador de valores e práticas compartilhados pelos membros que o compõem, é também verdade que aqui se insinuam a ambiguidade e a ambivalência sugeridas nos provérbios "ninguém é profeta em sua terra" e "santo de casa não faz milagre".

Aplicando tratamento crítico semelhante aos conceitos de xenofilia e xenofobia, patriotrismo, chauvinismo e autoritarismo, passa o autor à consideração do nacionalismo e do caráter nacional. Refutando William Graham Sumner, afirma que o nacionalismo é forjado pelas elites ilustradas, que por sua vez o transmitem às massas (ver p. 17). A passagem do etnocentrismo ao nacionalismo, fenômeno típico do século XIX, não é contínua ou espontânea. Se o indivíduo tende a vincular-se afetivamente ao meio social imediato (vizinhança, aldeia, cidade onde vive ou viveu experiências significativas), a vinculação com a nação se realiza num grau abstrato. Sendo assim, supõe que o nacionalismo é inculcado através dos meios educacionais e comunicativos acionados pelo Estado moderno. Acrescenta que, embora seja costumeira a distinção entre nacionalismo defensivo e ofensivo, o fato é que o nacionalismo traduz sempre uma atitude de superioridade perante outros grupos ou nações. (cf. p. 18).

O caráter nacional, por sua vez, decorre do Pré-Romantismo alemão, aqui destacando-se a figura intelectual de Herder cujas idéias vão confessadamente influenciar o nacionalismo militante de Mário de Andrade. Como se observa nas expressões gerais do nacionalismo cultural e do caráter nacional, Herder enfatiza o desenvolvimento orgânico das nações, que se exprime numa língua própria. Daí o relevo conferido à originalidade de cada povo condensada nas tradições populares. Como afirma o próprio Dante Moreira Leite,
"Essas teses de Herder, como de modo geral as inovações românticas, eram fundamentalmente ambíguas: de um lado, conduziam à valorização da arte e das tradições populares e, nesse sentido, representavam um enriquecimento da sensibilidade e da inteligência; de outro, conduziam também à valorização do passado e a uma fuga diante da vida moderna. Sob outro aspecto, poderiam conduzir à valorização da individualidade e da nacionalidade, o que era maneira de fugir à monotonia do racionalismo e do formalismo no pensamento e na Arte, na medida em que o sentimento e a intuição pessoal encontrariam meios de expressão; no outro extremo, isso conduzia à incomunicabilidade interindividiual e a uma separação entre culturas supostamente heterogêneas". (p. 30)
A consideração sumária dos conceitos acima justifica-se na medida em que o autor entende que a categoria caráter nacional, objeto central do seu ensaio, finca raízes no solo comum de onde brotaram tais conceitos. Dado que esta resenha, assim como o próprio livro de Dante Moreira Leite, intende concentrar a análise no caso brasileiro, não irei além das referências já expostas. Importaria entretanto acrescentar que o autor concebe o nacionalismo como uma mera justificativa ideológica empunhada por grupos que através dele visam legitimar conflitos pré-existentes localizados nas esferas seja da política, da religião, da economia ou da cultura. (ver p. 25).

Apoiado nos avanços feitos pela Antropologia, a Psicologia Social e a Sociologia, critica Dante Moreira Leite as teses racistas produzidas no contexto cientificista que caracterizou a segunda metade do século passado. Refuta, por exemplo, qualquer relação de causalidade entre raça e características psicológicas, que na verdade se explicam a partir da cultura. Salienta ainda como o desenvolvimento desses saberes, baseados na observação empírica, levou os especialistas em Ciências Humanas a superar o conceito de caráter nacional, que entretanto persiste em estudos de historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. Embora frise bem este ponto (cf. p. 41), os capítulos seguintes tratam precisamente do modo como antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais prosseguiram desenvolvendo estudos sobre caráter nacional e personalidade básica apoiados em descrições de natureza empírica. Logo, contrariamente ao que sustenta o autor, os estudos sobre caráter nacional não ficaram de modo algum confinados ao domínio dos historiadores, ensaístas e filósofos da cultura. A diferença efetiva que aqui se observa deriva do procedimento adotado (análise intuitiva, no caso destes, contra descrição empírica, no caso daqueles).

Como acima observei, antes de grossseiramente sumariar o conteúdo básico dos cinco primeiros capítulos da obra, é no capítulo 6 que o autor melhor justifica no plano teórico o significado da epígrafe "Existe é homem humano". Partindo da distinção entre teoria e ideologia, acentua que aquela pode ser compreendida em nível bem geral com fundamento no saber objetivo que não seria, por isso, confundível com o nível ideológico ou a racionalização. De outro lado, há entretanto quem afirme que todo saber sobre o homem é inevitavelmente ideológico, isto é, não se realiza independentemente da perspectiva e valores do sujeito cognoscente. Dante Moreira Leite ilustra o primeiro ponto lembrando que as teorias racistas do século XIX não passavam de uma justificação ideológica de interesses colonialistas das nações européias mais avançadas. Tal fato seria demonstrado pelo desenvolvimento de um saber objetivo (não-ideológico, portanto) decorrente dos avanços observáveis na Antropologia Cultural e na Psicologia Diferencial. A ideologia racista seria assim superada por uma "teoria objetiva da cultura, e pela explicação de diferenças de inteligência através de recursos econômicos e educacionais. Também neste caso seria possível demonstrar que a teoria culturalista apresenta um esquema objetivo e universal, pois afirma que as teorias racistas seriam apenas formas complexas do etnocentrismo". (p. 131)

Não podendo, nos limites deste breve comentário, estender-me na consideração desse problema, acrescento, seguindo sempre o autor, que se a primeira alternativa teórica implica a superação da ideologia pelo desenvolvimento do saber científico, a segunda, dado seu relativismo intrínseco, submete qualquer teoria ao princípio da dúvida que no limite torna insustentável qualquer teoria. Esta perspectiva relativista mereceu em obra recente de Sérgio Paulo Rouanet, iluminista mais radical que Dante Moreira Leite, uma crítica devastadora. (Ver O mal-estar na modernidade)

Na parte final do já referido capítulo há uma prova adicional do Iluminismo de Dante Moreira Leite. Propondo uma periodização do caráter nacional brasileiro, define como quarta e última fase "O desenvolvimento econômico e a superação da ideologia do caráter nacional brasileiro". Tal processo de superação do caráter nacional, compreendido enquanto ideologia que permeia um largo período da nossa história cultural, corresponderia à década de cinquenta.

Apesar de Dante Moreira Leite estar sempre criteriosamente matizando suas afirmacões mais categóricas, o final deste capítulo, e sobretudo o Capítulo 18: "Superação das Ideologias", cabalmente comprovam o que eu antes observara a propósito do seu universalismo iluminista condensado na epígrafe do livro. Assim como num dado momento Daniel Bell profetizou, em nome do liberalismo, o fim das ideologias (ver The End of Ideology) e há pouco Fukuyama, reatualizando o ideário liberal, procedeu como espetaculoso coveiro da história (ver O Fim da História), Moreira Leite decreta na sua refinada interpretação marxista de matriz universalista, o truísmo é apenas aparente, o fim da ideologia do caráter nacional brasileiro.

A superação das ideologias consistiria na passagem das interpretações baseadas em fatores psicológicos ou raciais para a explicação de base econômica. Moreira Leite ilustra o fenômeno no Capítulo 18 esboçando a trajetória ideológica de Monteiro Lobato. Partindo de uma explicação inicialmente psicológica, o que caracterizaria a fase propriamente ideológica da periodização proposta pelo autor, chega Lobato por fim, quando se converte em militante fervoroso da industrialização brasileira, à compreensão das verdadeiras causas dos nossos impasses nacionais, que radicam na esfera da economia (conferir pp. 311-2).

Um outro exemplo, referente a Caio Prado Jr., reforça a adesão do autor ao Iluminismo de raiz marxista. Formulando um juízo que se tornou consensual nos domínios da crítica cultural contemporânea, identifica na obra de Caio Prado, notadamente em Formação do Brasil Contemporâneo, uma efetiva ruptura em termos de renovação interpretativa da história brasileira. Seguindo as pegadas de Caio Prado, que adota o marxismo como matriz teórica e identifica no sistema econômico implantado desde os primórdios da colonização a causa última das nossas condições de dependência e atraso, assim se exprime Dante Moreira Leite
"...Caio Prado Júnior representa um momento decisivo na superação do pensamento ideológico: as características da colônia não são determinadas por misteriosas forças impostas pelo clima ou trazidas pelas raças formadoras, mas resultam do tipo de colonização imposto pela economia européia". (pp. 315-6).
No plano da literatura, o universalismo de Dante Moreira Leite se traduz na firmeza com que refuta a dicotomia regional-universal que até a altura da fase de superação das ideologias teria regido o conjunto do processo literário brasileiro. Ao dissolver a dicotomia acima aludida, a grande literatura contemporânea, simbolizada em autores como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, constituiria não mais uma tradução da alma brasileira, ou uma ordem de realidade confinada nos limites da nossa particularidade cultural, mas sim "as situações fundamentais dos homens de outras épocas e lugares". (p. 322)

Como já ressaltei noutra parte, quando Dante Moreira Leite erra, não erra por simplismo ou juízo redutor. Confirmando esta observação, ao procurar propor no fecho do seu livro uma explicação definitiva para a superação das ideologias do caráter nacional, pondera ele algumas possibilidades de explicação para ao cabo cautelosamente contentar-se em avançar uma hipótese sujeita a ulterior comprovação. Eis como a formula:
"... a ideologia do caráter nacional brasileiro passsou a ter menos significação e começou a desaparecer no momento em que as condições objetivas da vida econômica de certo modo impuseram a necessidade de um novo nacionalismo. Em outras palavras, à medida que se acentua a industrialização brasileira, é a economia do país que passa a ser posta em jogo e a luta pela independência econômica substitui as explicações da inferioridade nacional". (p. 327).
Sustentando embora que a obra de Dante Moreira Leite é regida por princípios universalistas, doutro lado assinalando alguns erros de enfoque resultantes dessa perspectiva, importa repetir, agora de um modo diverso, que o conjunto da sua argumentação não é linear. Noutras palavras, longe de atribuir aos fenômenos que analisa, e ao modo como se processa a inserção desses fenômenos no âmbito da história e da cultura, formulações e respostas simples, continuamente acentua a complexidade, quando não os tons contraditórios, com que se traduzem na ordem concreta da realidade. Sendo assim, embora acredite que a epígrafe do livro condensa a interpretação de um estudioso de corte iluminista, ideologia hoje sitiada pelo que uma convenção simplificadora denomina de crise de paradigmas nas Ciências Humanas, não faria justiça a Dante Moreira Leite se deixasse de observar que realiza a crítica de inspiração iluminista no seu mais fecundo e elevado sentido: a crítica que duvida do seu objeto ao mesmo tempo em que se submete ela própria ao exercício implacável da dúvida.

Apreciando agora a validade de sua tese em confronto com algumas das tendências mais recentes observáveis no horizonte da crítica da cultura, espero melhor explicitar o que no parágrafo precedente indiquei como erros de enfoque contidos na perspectiva norteadora da sua interpretação. Uma das tendências mais frisantes é a reavaliação crítica da obra de Gilberto Freyre. Mesmo no âmbito da USP, onde foi mais forte e consistente o movimento de oposição teórica à obra do sociólogo pernambucano, observam-se fatos que claramente sinalizam uma revisão positiva. O que Dante Moreira Leite assim como outros críticos mais "científicos" repeliam na obra de Freyre como sendo inconsistente interpretação impressionista, quando não mero discurso ideológico justificador do sistema de dominação de classe historicamente instituído na sociedade brasileira, merece agora dos estudiosos qualificações críticas mais diferenciadas.

No que se refere ao âmbito específico da historiografia, caberia salientar como, paralelamente à revisão crítica que se processa em torno às obras de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda, há uma certa retração da magnitude de Caio Prado Jr., unanimemente consagrado como nosso mais importante historiador marxista. Se ampliamos o campo de observação para a cena internacional, parecem também sintomáticos os percursos de Simon Schama, Peter Burke e Penelope Lively, historiadora convertida em celebrada ficcionista na Inglaterra. Para concluir, o fenômeno sem dúvida mais notável radica no amplo processo de revisão historiográfica denominado Nova História.

A dinâmica sob certos pontos de vista desnorteante da cena cultural contemporânea indica com clareza o que no debate acadêmico já se vai banalizando como expressão e sintoma de uma crise de paradigma nas Ciências Sociais. E essa crise é indissociável de um realinhamento geral do sistema ideológico e intelectual. Valores até há pouco ignorados ou hostilizados, como seria o caso de Gilberto Freyre, são agora considerados de um modo tal que o que fora antes visto como abuso subjetivista no plano epistemológico adquire estatuto de excelência interpretativa; o que no plano ideológico inspirava críticas acerbas, quando não puro e simples silêncio, agora é reintegrado ao horizonte crítico da cultura, como atestam o teatro de Nélson Rodrigues, o unânime reconhecimento do gênio de Jorge Luís Borges; a celebração de companheiros de viagem incômodos, como Ernesto Sábato; uma concepção de historiografia crítica liberta do compromisso de realizar a macro-história, ou ainda as grandes narrativas, como diria o epistemólogo pós-moderno François Lyotard, aderente aos feitos de uma suposta saga revolucionária inscrita na escala do tempo passado, desdobrada na linha do presente e por fim projetada na dimensão utópica do futuro.

Não obstante os erros contidos na interpretação proposta por Dante Moreira Leite, que decorrem fundamentalmente da perspectiva iluminista em que se situa, O caráter nacional brasileiro subsiste nos quadros da cultura brasileira como um dos nossos mais agudos ensaios de crítica ideológica, vertente à qual se seguiram nos anos setenta obras como Iseb - Fábrica de Ideologias, de Caio Navarro de Toledo, Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945), de Sérgio Miceli e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Além de valer pela excelência da concepção e tratamento estilístico conferido ao amplo material analisado dentro do espírito do nosso melhor ensaísmo de síntese, realiza Dante Moreira Leite uma fecunda interpretação de cunho interdisciplinar recolhendo com largo senso de propriedade crítica elementos emprestados à Antropologia, à Psicologia Social, à Sociologia, à Literatura e à História das Idéias. Disso resulta um impressivo painel no cerne do qual as insuficiências decorrentes da tese central em nada abalam a construção e o mérito da arquitetura geral da obra.
São Paulo, maio de 1995.

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