segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Tatuagem na Nuca
Tatuagem na Nuca
Severo Machado
Odeio tatuagem. Odeio essa gente que se mutila com tatuagem, piercing e outras formas mecânicas de mutilação. Se querem ser mutiladas - vou falar apenas do corpo feminino, pois é o que me interessa – que usem meios humanos de mutilação. Quero dizer, entreguem-se a um Marquês de Sade, ou a qualquer desses machos que gostam de maltratar mulher na cama.
Zoca Porrada, policial típico do Brasil, gosta é de mutilar bandido nas celas da delegacia. Diz ele que não gosta. Apenas cumpre seu dever, que é zelar pela segurança de gente como eu. Zoca nunca ouviu falar de gente como Freud e faz muito bem. Como todo ser humano típico saudável na inconsciência da vida que vive isenta de um ponto de interrogação, Zoca simplesmente age e vive. Pensar, diria ele se pensasse, é algo que deixa a serviço de intelectuais parasitas e acadêmicos delicados.
Perdi de vista a tatuagem. Entrei na delegacia, ouvi os gritos do bandido sendo castigado por Zoca e eis que perdi de vista a tatuagem. Felizmente, voltando à rua, vi uma gostosa desfilando uma tatuagem horripilante que escorria pelos braços e se alongava até às costas. Somente a nudez sabe onde acabava. Andava como se fosse o centro do mundo. Talvez por isso mutile o corpo de forma tão boçal. É o único meio que encontra para chamar a atenção dos desatentos. Como disse, odeio tatuagem.
Antonio Senile, lírico incorrigível, sonha uma amante com uma tatuagem microscópica e luminosa bem no centro do olho. Uma tatuagem que fosse um raio de sol irradiando luz no centro do olho que ele beijaria como um devoto no altar da beleza. Como observei, Senile é um lírico incorrigível. O diabo é que é meu amigo, meu único amigo. E de um amigo, sobretudo se é único, a gente tolera coisas que nunca imaginou tolerar. Também Luciano Oliveira é meu amigo. Mas este é um trator esmagando o roseiral do jardim lírico de Senile. Lirismo e tatuagem? Somente na imaginação de Senile. O que a tatuagem me inspira é ódio.
Mas eis que um dia ela entrou na piscina onde faço hidroterapia.Dizem minhas más línguas (são muitas, pois tenho o dom de inspirar inimizade e ódio) que vou à hidro para curar reumatismo. Envelhecem-me e envilecem-me mais que o calendário e as forças ativas do meu corpo. Que fazer? Ela entrou na piscina e de imediato senti que entrara, embora estivesse de costas para ela. Senti que era ela e que não era uma mulher qualquer porque uma vibração súbita correu-me o corpo da raiz do cabelo à ponta do pé. Deus dorme e o demônio anda à solta, é o primeiro e excitante pensamento que me ocorre quando sinto o choque dessa vibração. Traduzindo na linguagem do comércio miúdo: aí tem coisa... Completando as reticências: aí vem mulher morena, rabuda e gostosa. Sei que o leitor vai torcer a cara, se antes não deletar meu blog. Ou delatar. Se for um pouco paciente, resmungará: cronista sem imaginação. Repete sempre esse mote. Mas o mal, acreditem, não está no cronista, ou na sua falta de imaginação. O mal (bem, para mim) está na minha monomania, na minha fixação erótica em mulher morena, rabuda e gostosa. Pronto, voltei a me repetir.
Postou-se a meu lado na piscina e logo começou a agitar a água instruída pela fisioterapeuta sobre a sequência dos exercícios. Por que logo a meu lado, se a piscina é tão grande? Só pode ser maquinação do diabo, que me atormenta sempre que uma mulher dessas cruza meu caminho. Como sou tímido, aprendi a ser ousado, isto é, vou entrando sem bater à porta ou pedir licença. Seu nome? Bruna. Nome de puta. Quero dizer: na minha imaginação perversa. Basta-me ouvir o sopro desse nome e logo vejo a Bruna do site Garota Nacional. Ligava para o celular dela e logo marcava um encontro no motel. E agora tenho outra Bruna a meu lado, agitando a água da piscina enquanto seu corpo agita minha imaginação atormentada pela força da carne. Depois de cinco minutos já sabia que era agente de turismo e, repisando o previsível, adorava viajar. Parecia uma Geisy Arruda morena com todas as peças nos devidos lugares.
De repente outro choque: prendeu os cabelos numa touca plástica e então vi a tatuagem. Minha reação imediata foi de aversão e ódio. Mas logo emendei o soneto, como diria Antonio Senile. A tatuagem era uma maçã tão meticulosamente desenhada, tão bem cravada na nuca de linhas perfeitas que logo senti um outro choque, mas agora de natureza completamente oposta: descobri que adorava aquela tatuagem. Então disse algo que somente um tímido irreparável ousaria dizer: posso morder sua maçã? Não pode porque é do meu marido. E daí? Não sou nem um pouquinho possessivo. Ela riu o riso de consentimento das mulheres que tratam seu corpo como uma propriedade comunal. Taí um caso em que sou comunista até a última maçã.
Saímos da piscina para uma pizzaria dessas que mais parecem um refeitório de reformatório. Ideia dela, frequentadora desses ambientes que jamais recomendaria a meu pior inimigo. Pensando na tatuagem e na maçã de Bruna, reconheci que faria qualquer coisa para mordê-la, até jantar numa pizzaria daquele tipo. Enquanto ela devorava avidamente o prato da casa, limitei-me a mastigar um nada, pois minha fome era morder a maçã da sua nuca. Parou de mastigar apenas para dizer que o marido era muito ciumento. Por que todas as mulheres que gostam de trair tanto insistem em dizer que seus maridos são ciumentos? E daí, meu amor? Eu não sou. Ganhei outro riso manchado de pizza com molho de tomate nos lábios carnudos.
Até o leitor sem nenhuma imaginação, como Antonio Senile, pode bem adivinhar qual foi nossa próxima e última parada. Como jamais confundo invasão de privacidade com evasão de privacidade, deixo que o leitor imagine o que aconteceu no motel. O que acrescento, já vestindo as calças, é que continuo odiando tatuagem. Acrescento a tempo que também odeio maçã. Mas por uma mulher como Bruna eu faria qualquer sacrifício. Será que é mesmo casada?
Recife, 6 de janeiro de 2011.
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Não apedreje a mulher que trai, eu estou atrás. No dizer de George Bressans:
ResponderExcluirCar pour combler les voeux, calmer la fièvre ardente du pauvre solitaire et qui
n'est pas de bois,
Nul n'est comparable à l'épouse inconstante, femme de chefs de gare' c'est vous
la fleur des pois... Ne jetez pas la pière à la femme adultère, je suis derrière.
Estava ouvindo a música quando lia sua crônica. E pensei uma frase de império, coincidência ou sorte?
Jampa: Como sempre, muito grato pela leitura e comentário. Infelizmente, este veio quase integralmente em francês, língua que o cafajeste Severo Machado nem pega nem chuta. Ademais, já que é ele o autor da crônica, é ele quem deve atirar a primeira pedra. Se bem o conheço, ele apedrejará você, o Mulatinho namorado de Bruna e todos os garçons da pizzaria.
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