quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Olhos Negros



Olhos Negros (Oci Ciornei, Dark Eyes, 1987) é um filme livremente baseado em três contos de Tchecov: The lady with the pet dog, Anna on the neck e The name-day party. O diretor Nikita Mikhalkov, também co-roteirista, transpõe a trama e os personagens destes contos para a Itália do início do século, no esplendor da belle époque, onde engenhosamente funde-os com personagens de extração italiana.

O filme começa a bordo de um cruzeiro turístico. Aí casualmente se encontram o garçom Romano (Marcello Mastroianni) e o comerciante russo Pavel (Vsevolod Larionov). Sentados no restaurante ainda vazio, o primeiro conta sua história ao segundo, que viaja pela Itália em lua de mel. A esposa o aguarda no convés do navio. A construção da narrativa é admiravelmente arquitetada, pois ao cabo saberemos que a esposa de Pavel é a russa que Romano amou ao ponto de tramar uma história que o levou à Rússia como suposto representante de uma fábrica de vidros.

Começando pelo começo, Romano é um arquiteto fracassado e parasita. Graças a seu casamento com Elisa (Silvana Mangano), filha de um banqueiro, vive numa mansão onde desfruta dos requintes de uma rica família italiana. Sua vida foi dissipada na ociosidade e em amores volúveis, pois não passa de um mulherengo insaciável que vive às custas da mulher rica. Homem desprovido de projeto, uso o termo no sentido mais genérico possível, Romano é um Macunaíma ítalo-russo às voltas com as mais engraçadas e sedutoras estripolias.

A pretexto de curar uma doença imaginária, mais uma das suas sucessivas malandragens, interna-se numa estação de águas (spa), onde conhece Anna (Elena Sofonova), a russa com o cachorrinho. Apaixonam-se e ao se entregarem ao amor vivem todas aquelas delícias e luminosos estados de intimidade e beleza que quem assim lindamente amou bem sabe o que é. Um dia Anna desaparece sem explicação. A explicação deixa-a numa carta... em russo. Que fazer, se Romano nada sabe de russo, se ninguém à sua volta sabe russo? Por fim, procura uma professora universitária, que traduz a carta. Só então fica sabendo que Anna, segundo suas próprias palavras, sumiu por fraqueza, por medo do amor intenso que com ele vivia. Romano ouve comovido a leitura da carta e então se decide a procurá-la na Rússia. Parece enfim que o amor terá o poder de infundir-lhe energia para lutar na vida por algo: o amor de Anna. Trama com Manlio, marido de Tina (interpretada pela linda Marthe Keller), a instalação de uma fábrica de vidros. Sua peregrinação através dos labirintos da burocracia czarista rende cenas de sátira primorosa à altura das melhores páginas de Gogol e Tchecov sobre o assunto.

Quando enfim a encontra, trocadas as juras de amor previsíveis, promete-lhe ir à Itália para se tornar um homem livre e afinal regressar à Rússia para viver com ela. Quando todavia reencontra Elisa, ocupada em fazer as malas e vender a mansão, pois os prenúncios de falência antes anunciados se confirmam, Romano recai na pusilanimidade de Macunaíma. Elisa encontrara a carta em russo escrita por Anna. Pergunta-lhe no momento decisivo da trama de quem é aquela carta perfumada cujo conteúdo evidentemente lhe é inacessível. Mais precisamente, pergunta-lhe se tem uma mulher na Rússia. Romano hesita e por fim nega Anna e seu amor diante de Elisa. Esta se recompõe e rasga a carta como quem diz: está tudo resolvido e assim novamente reinará a paz conjugal.

Consumada a falência da família rica que lhe garantia sustento privilegiado e dispensadas as explicações desnecessárias ao andamento do entrecho, eis Romano reduzido à condição de garçom. É nesse ponto, como de início assinalei, que o filme começa e agora é retomado. O filme acaba no momento em que Pavel vai ao encontro da esposa, a Anna da história, para levá-la ao restaurante onde encontrarão Romano.
Para além da personagem sedutora que é Romano, as mulheres não resistem a tipos assim, ressalta no filme uma questão de fundo ético que também pontua o universo ficcional de Macunaíma. Retomo este até porque identifiquei em Romano seu correspondente ítalo-russo. A questão de fundo ético se põe, por exemplo, na relação amorosa entre ele e Anna. Embora ela fuja do amor punindo-se por sua covardia, o verdadeiro covarde é Romano, homem privado da espessura ética necessária à experiência amorosa vivida no grau de autenticidade e entrega suposta numa personagem do feitio de Anna. O contraste ético é ainda mais nítido entre Romano e Pavel. Isso fica bem claro no final do filme quando este se indigna diante do descaso com que Romano arremata sua história de amor com Anna. Romano justifica-se alegando que estamos no século 20, quando ninguém mais se importa com ninguém. É aí que Pavel o contesta de forma veemente contrapondo-lhe seu amor paciente e tenaz por Anna, apesar de anos de recusa afinal abrandados por um casamento sem amor, firmado em bases de companheirismo afetivo.

Estou tão descontente com esse relato insosso e parcial do enredo do filme que por pouco não desisto desta resenha insípida. Acentuando uma verdade estética elementar, não importa na obra de arte o conteúdo, mas sim a forma como ele é transposto para o universo das convenções estéticas. Portanto, o enredo que acabo de toscamente resumir não dá ao leitor a mais vaga ideia da beleza extraordinária deste filme. Nikita Mikhalkov logrou recriar com fina sensibilidade fílmica o universo ficcional apaixonante dos contos de Tchecov mesclando habilmente tons líricos e satíricos cujos efeitos afetam o espectador de forma comovente. Há cenas de intensidade lírica e satírica –no spa, por exemplo, assim como na mansão de Elisa e durante as apaixonantes aventuras de Romano na Rússia – que me fizeram evocar o grande Fellini de Amarcord.

Aos méritos do diretor e co-roteirista somam-se a bela fotografia do filme e o elenco marcante do qual sobressai o talento excepcional de Marcello Mastroianni. Sua interpretação de Romano, esse Macunaíma italiano, é de fato soberba. Ele contracena com verve e histrionismo insuperáveis com os atores russos nas cenas ambientadas em Sisoiev, a cidade onde reencontra Anna. A cena campestre, de insólita beleza repassada pela nostalgia profunda da canção “Nanna Ninna”, comove o espectador de forma indizível. Romano evoca a imagem remota da mãe, da infância, e assim com ele mergulhamos numa atmosfera de sonho e sortilégio que somente a mais pura arte nos propicia. Como traduzir esses momentos de pura epifania numa resenha tão insuficiente? Melhor encerrar recomendando ao leitor que esqueça a resenha e veja o filme, o que vale como uma forma discreta de admitir a irrelevância da pequena crítica em face da grande obra de arte.

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