sexta-feira, 1 de abril de 2011
Carrington e o Amor Romântico
Começo citando uma definição do famoso grupo de Bloomsbury vazada em termos de humor primoroso: “ They were couples who lived in squares with triangular relationships”. Li-a antes num livro de Michael Holroyd, biógrafo de Lytton Strachey e George Bernard Shaw, com variações que merecem registro: “...all the couples were triangles and lived in squares”. Infelizmente a definição é intraduzível, pois sua engenhosidade e witticism, falta-me termo adequado em português, é fruto precisamente de um jogo de palavras sem correspondente na nossa língua.
O parágrafo acima está longe de qualquer laivo de pedantismo. Comecei por ele por acreditar que condensa muito do que o espectador apreciará num filme como Carrington. Dirigido e escrito por Christopher Hampton, um dos meus roteiristas favoritos, o filme é livremente baseado na biografia de Lytton Strachey escrita por Michael Holroyd. Além de ser um dos membros mais típicos do grupo conhecido como Bloomsbury, por envolver um grupo de intelectuais sofisticados que se reuniam em algumas casas deste bairro onde se situam o Museu Britânico e a Universidade de Londres, Lytton Strachey (Jonathan Pryce) viveu com Carrington (Emma Thompson) uma longa relação amorosa cuja excentricidade ilustra à perfeição alguns dos valores fundamentais adotados pelo grupo. A casa para a qual convergiam os membros do grupo era a da família das irmãs Virginia Woolf e Vanessa. Depois que esta casou com Clive Bell, doravante identificando-se como Vanessa Bell (Janet Mcteer) o grupo passou a frequentar prioritariamente dois endereços: Gordon Square, onde vivia o casal Clive e Vanessa Bell, e Fitzroy Square cujo número 29, antes ocupado por Shaw, tornou-se a residência de Virginia e seu irmão Adrian Stephen.
Dora Carrington conheceu Lytton na casa de campo de Vanessa e Clive Bell. Adotando atitudes deliberadamente masculinas, cabelos cortados de modo sexualmente ambíguo, Lytton confundiu-a à primeira vista com um rapaz e sentiu-se prontamente atraído por ela. As cenas que narram esse encontro inicial transitam do cômico para o embaraçoso desdobrando-se por vias imprevisíveis. Encurtando a história, pois não é minha intenção aborrecer o leitor comprimindo o enredo do filme neste artigo, Carrington, que detestava seu primeiro nome, e Lytton se envolvem numa história amorosa de características e desfecho absolutamente singulares.
O roteiro obedece a um princípio de divisão em sessões temáticas baseadas nos personagens mais importantes da trama: Lytton e Carrington, evidentemente; Mark Gertler (Rufus Sewell), pintor então famoso cujo envolvimento tumultuoso e malogrado com Carrington acabou em ruptura; Rex Partridge (rebatizado Ralph por Lytton e interpretado por Steven Waddington) componente de um dos triângulos fundamentais da vida promíscua de Lytton e Carrington; Gerald Brenan (Samuel West), um dos amantes de Carrington; Ham Spray, a casa onde Carrington e Lytton viveram até a morte deste e o consequente sucídio dela. O título da sessão final é simplesmente Lytton.
O filme é fascinante em muitos sentidos. Destacaria, por exemplo, a forma como recria a atmosfera de convívio das pessoas associadas ao grupo Bloomsbury. Algumas cenas são filmadas em Garsington, casa de campo de Ottoline Morrell (Penelope Wilton) e Philip Morrell, que aparece na sequência em que Lytton comparece ao tribunal que o intimou a depor por defender publicamente uma política pacifista contra a Primeira Guerra. O grande símbolo intelectual desta facção foi Bertrand Russell, por isso apropriadamente citado no filme, que foi condenado à prisão. Ottoline, figura excêntrica e lendária, foi a grande amante de Russell, a que teve o poder de desatar as amarras racionalistas do matemático que acabou se tornando o sátiro supremo da pouco libertina intelectualidade inglesa.
Já que aludi a Russell enfiando na alusão dois termos porejantes de sensualidade, um dos pontos fortes do filme é precisamente a vida sexual promíscua de Carrington e Lytton para muitos ainda hoje chocante, apesar da fachada permissiva de muitos moralistas que aparecem na televisão praticando a mercantilização dos costumes. Intentando ser breve na exposição deste assunto, volto ao parágrafo inicial deste artigo detendo-me nas relações triangulares compreendidas na definição do grupo de Bloomsbury. O filme compreende muitas relações triangulares, para não falar de outras que não saberia como adequadamente designar. A primeira compreende o trio Carrington-Lytton e Mark Gertler; a segunda, Carrington-Lytton e Ralph Partridge; a terceira, Carrington-Ralph e Gerald Brenan; a quarta, Carrington-Ralph e Frances, que mais tarde casou com Ralph; a quinta, Carrington-Lytton e Beacus (Jeremy Northam). Algumas dessas relações seriam quadrangulares, se compreendêssemos a relação amorosa entre Carrington e Lytton como uma relação sexual isenta de relação genital. Dentro desse mesmo critério, outras ainda seriam triangulares. Penso, no caso, nas várias relações homossexuais de Lytton mencionadas ou mesmo explícitas no filme.
Condensada a rede de relações eróticas no parágrafo precedente, cabe agora introduzir o que me parece ser o aspecto mais original do filme. Como explicar que um amor tão excepcional quanto o de Carrington e Lytton tenha perdurado até a morte? À parte o enredo acima esquematicamente descrito, que pode sugerir ao leitor moralmente estreito um filme de sacanagem, Carrington e Lytton tinham uma qualidade rara nas histórias amorosas do seu e do nosso tempo: a que os tornava capazes de aceitar o outro amado tal como é. Esta expressão está demasiado corrompida pelos arroubos românticos de amantes que inconscientemente a repisam de pés e corações juntos: amo você como você é. Isso dura até o momento em que o outro ousa revelar-se tal como é.
Há no filme uma cena na qual Carrington comenta com Lytton os transtornos que lhe causam o amor exigente e possessivo de Gerald Brenan. Depois de justamente ressaltar o mal que os idealistas de qualquer natureza causam ao mundo, Lytton faz uma crítica devastadora e certeira ao amor romântico. Observa, noutras palavras, que as pessoas que se amam passionalmente não devem viver juntas. Se o fazem, ou o amor acaba, corroído pela rotina e outros venenos letais da realidade, ou um amante enlouquece o outro. Penso que aí radica o cerne do filme. O amor que Carrington e Lytton compartilham é singular e a tudo sobrevive, até à frustração dolorosa sofrida por Carrington - que ama e devotadamente aceita amar e servir a um homem incapaz de lhe dar amor sexual, filhos e tudo mais que uma mulher apaixonada deseja – porque ambos se aceitam e se querem como são, ambos acolhem a medida imperfeita do amor humano.
Carrington amou devotadamente Lytton e desejou com ele viver dimensões impossíveis do amor passional, mas era uma mulher de personalidade notável. Ainda jovem, tinha consciência do malogro do casamento, do que há de sórdido e hipócrita no amor casado e corroído pelas engrenagens insidiosas da instituição e da rotina. Há cartas dela, ainda jovem, reveladoras dessa consciência arguta e corajosa. Tinha noção bem crítica do que era o casamento dos seus pais e nunca quis para si própria uma vida de amor convencionalmente casado. O filme, por outro lado, é em muitos momentos revelador da consciência que ambos tinham dos limites e imperfeições do amor. Isso decerto explica o bom senso e o pragmatismo com que negociam e contornam conflitos amorosos previsivelmente comuns na experiência erótica tão promíscua que viveram. Aposto como os moralistas sentimentais se arrepiam diante das cenas em que desatam conflitos decorrentes das demandas e turbulências geradas pelos amantes com quem se envolvem valendo-se de recursos como o egoísmo esclarecido e a franca negociação dos interesses que os românticos encaram como sórdidos e incompatíveis com o amor.
Sabemos que o ideal do amor romântico, de longeva existência cujas raízes modernas remontam a Rousseau e outros românticos da segunda metade do século 18, está vazando água por todos os canos e juntas. No entanto, a maioria das pessoas, sobretudo as mulheres, resiste às evidências gritantes da realidade. Vivendo numa etapa do capitalismo de consumo hedonista que funciona no sentido de promover a realização com frequência ilusória da felicidade compreendida num sentido ferozmente narcisista, continuamos atados à idealização romântica do amor. O clichê que melhor sintetiza esse delírio neurótico da felicidade perseguida através do amor romântico é a frase: encontrar minha alma gêmea. É preciso uma poderosa força de autoengano para acreditar nessa ficção que não resiste a um minuto de análise sensata. Aspirar à fusão com a alma gêmea é claramente aspirar a si próprio, ao amor narcisista que se consome na fantasia de reduzir o outro à nossa imagem e semelhança. Isso me parece assim clamorosamente evidente e todavia milhões de pessoas continuam vivendo embaladas por esse sentimentalismo barato, por essa compreensão absurda e desonesta dos sentimentos amorosos, da intimidade amorosa. Os amores se desmancham como sorvete exposto ao sol dos trópicos, os casamentos se dissolvem em traição, hostilidade e ressentimento, mas continuamos devorando a porcaria sentimental e hipócrita que nos vendem como mercadoria a serviço da felicidade. Basta pensar na produção em cadeia de revistas sentimentais e baratas, na engrenagem da ficção folhetinesca difundida em escala global pela mídia.
Ouça um bom conselho que lhe dou de graça: inútil refugiar-se no amor aos cachorros, gatos e outros objetos de projeção narcisista do amor nutrido pela engrenagem feroz desse sistema reificador das relações amorosas. É inútil porque a dor não passa, a dor produzida pelo amor romântico nutrido por fantasias como o encontro da alma gêmea não cessa de doer. Além disso, nosso destino humano é o outro. Não há aqui nenhuma alusão ao humanismo sentimental, que é de resto uma variante do sentimentalismo desonesto que corrói o amor romântico. Afirmo que nosso destino humano é o outro porque, gostemos ou não, é no convívio, na busca e no encontro e nos desencontros com o outro que realizamos nossa condição humana. Nesse sentido, acho que Carrington poderia ensinar-nos algumas lições preciosas acerca da sobrevivência do amor numa época de individualismo feroz, de narcisismo e consumismo infrenes absolutamente incompatíveis com os ideais de amor que nutriram os três últimos séculos da cultura ocidental.
Recife, 4 de fevereiro de 2011.
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Pôxa, para mim foi um soco no estômago! Ex do papiso.
ResponderExcluirEx-papisa: Sofri muitos socos no estômago para escrever o que você leu e também lhe doeu. Sabemos o quanto é difícil, para muitos impossível, renunciar às ilusões românticas do amor, feitas de mentiras e autoengano, mas acho que é o único meio que existe para a gente crescer e enfrentar a realidade do amor, da perda, do prazer e das dores do amor.
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