domingo, 10 de abril de 2011
Criação
Criação (Creation) é um filme que recria com admirável força dramática os tormentos morais e psíquicos de um gênio. Este termo está mais do que barateado no mundo de linguagem corrompida e falsas etiquetas em que vivemos. No caso de Charles Darwin, porém, o termo se justifica plenamente. Mesmo um leigo como o que escreve este artigo, um leigo que ouse ver o mundo com olhos limpos e livres, tem alguma consciência do significado revolucionário de A Origem das Espécies (The Origin of Species). Publicada em 1859, foi sem exagero uma revolução na história da ciência e do pensamento humano. Há na história alguns pensadores que de fato revolucionaram o mundo modificando assim de forma irreversível nossa percepção da realidade. Darwin é um desses poucos.
No entanto, como o filme bem nos revela, ele se consumiu num surdo tormento durante cerca de 20 anos dividido entre suas convicções científicas e o temor de perpetrar um crime ao dar forma e publicidade a uma teoria que sua própria consciência cristã encarava como uma afronta a Deus e à verdade revelada pela Bíblia. Homem típico do seu tempo, não obstante seu gênio, Darwin (Paul Bettany) descendia de uma família de posses e forte tradição cristã. Esse sólido enraizamento cristão da família se expressa em Emma (Jennifer Connelly), prima em primeiro grau e esposa de Darwin. A filha predileta Annie (Martha West) desempenha decisiva função dramática no filme. Além de desencadear a dor pungente da perda sofrida por Darwin quando morre prematuramente, Annie funciona na narrativa como a “consciência científica” de Darwin contraposta aos temores cristãos que o atormentam e paralisam encarnados em Emma e no Reverendo Annis (Jeremy Bentham).
É este, em suma, o nó dramático do filme: o conflito entre a convicção científica, aprisionada num baú que Darwin somente depois de uma luta prolongada ousa abrir para, baseado na pesquisa e matéria ali acumuladas, dar forma definitiva à sua obra revolucionária e a trava da consciência cristã, acrescida da poderosa pressão moral e religiosa ambiente. Além da função simbólica que Annie desempenha em favor da ciência e da consciência que por fim liberam o gênio de Darwin, pesam nesse lado da balança os apoios combativos de Joseph Hooker (Benedict Cumberbatch) e Thomas Huxley (Toby Jones).
O espectador tocado pela curiosidade que o filme aciona pode com grande proveito valer-se da leitura de uma excelente biografia de Darwin traduzida e publicada no Brasil em 1995: Darwin: a vida de um evolucionista atormentado, escrita por Adrian Desmond e James Moore. Os autores estabeleceram um plano de composição e divisão de trabalho que lhes facultou apresentar um retrato abrangentemente rico e complexo de Darwin. Enquanto Desmond, segundo declaração de Moore extraída de uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo, explorou o contexto histórico e os aspectos da história da ciência pertinentes à composição da biografia, Moore ateve-se aos problemas de ordem religiosa e à visão de mundo de Darwin.
A tradição romântica vincou de forma indelével a perspectiva através da qual enquadramos nossa compreensão do indivíduo. Esse fato ressalta de forma mais nítida no gênero biográfico. Através dele representamos nossa noção da vida individual, notadamente a dos homens excepcionais. A concepção romântica tende a individualizar, num sentido idealizador, a vida do biografado. Antonio Candido, com sua argúcia crítica habitual, acentua essa deformação corrente ao corrigir certa visão romântica de Machado de Assis num ensaio de título modesto em face das intuições profundas que contém: “Esquema de Machado de Assis”. A associação é pertinente porque me foi sugerida pelo filme sobre Darwin, também sobre a biografia de Desmond e Moore e a ela me conduz de volta. Quero dizer, desbastado das tintas idealizadoramente românticas, Darwin foi um homem do seu tempo. Seu modo de ser e viver reflete com vincos profundos a mentalidade vitoriana que configurava a Inglaterra em que viveu.
Atormentado pela convicção científica de uma teoria que representaria um golpe tremendo sobre a religiosidade dominante no seu ambiente social, quando as questões de natureza religiosa eram questões públicas, sofreu tormentos prolongados, não raro paralisantes, até decidir-se a imprimir forma definitiva à Origem das Espécies. Como a maioria dos seres humanos, ele temia a opinião alheia, no filme expressa por agentes intimamente ligados à sua vida. O freio mais poderoso e temido era a própria Emma, profundamente fiel a suas convicções cristãs.
O filme contém uma imagem que sintetiza com extraordinária economia plástica o sentido essencial da teoria de Darwin. Refiro-me à cena em que ele toca com o indicador do braço estendido o indicador da macaca Jenny, que morre num dos momentos mais comoventes do filme. Aliás, essa morte fixa um paralelo similar ao que em seguida exporei. A morte de Jenny compõe com a de Annie um paralelo essencial à compreensão do filme, assim como o dos indicadores que se tocam remete a um paralelo óbvio com A criação de Adão, de Michelangelo, suspensa no teto da Capela Sistina como um dos momentos supremos da história da arte.
Darwin fez o possível para dissociar sua teoria das disputas ideológicas a que poderia prestar-se. Segundo Adrian Desmond, ele era um paranoico cioso de preservar sua respeitabilidade de disputas públicas que com certeza a comprometeriam. Essa questão aparece de modo nítido no filme, embora seja explicitada antes por Emma do que por ele, que se recolhia ao silêncio e à doença constante e abatedora. Esta, de resto, constituía uma somatização dos conflitos psíquicos e morais que o atormentavam.
Apesar da sua tibieza, das linhas de fuga de que se valeu para escapar ao combate público, sua teoria repercutiu, como seria previsível, no clima ideológico da época. Quem mais se empenhou para que isso acontecesse foi Thomas Huxley, que aliás acabou conhecido como o buldogue de Darwin. Embora participe bem pouco da trama, devido às opções dramáticas bem claras feitas pelo diretor Jon Amiel e o roteirista John Collee, Thomas Huxley e Joseph Hooker fazem e falam o suficiente para que o espectador atento componha uma noção razoável das implicações religiosas e políticas da teoria da evolução.
Houve quem temesse, suponho que fosse esse um dos tormentos de Darwin, e tema ainda que a teoria da evolução represente um golpe mortal sobre o mito criacionista contido na Bíblia. O próprio Darwin adotou posição contemporizadora quando declarou não haver incompatibilidade entre a teoria da evolução e a crença religiosa no criacionismo bíblico. Do ponto de vista científico e racional, acredito que ele está errado. Isso, no entanto, não impediu nem impede que as pessoas continuem equilibrando os dois pratos da balança – ou opondo um ao outro, como é o caso dos racionalistas científicos militantes, bastaria pensar em Richard Dawkins, e na outra ponta os religiosos obscurantistas.
Pessoalmente, não encontro razões científicas que sustentem a crença na explicação bíblica da nossa origem. Mas importa no caso considerar não propriamente a verdade cientificamente aferível, até porque a religiosidade ancora em motivações de crença inconciliáveis com a objetividade fria da ciência, em motivações psicológicas profundas do ser humano. Trocando isso em alguns miúdos, pois há outros que sequer vislumbro nesse terreno minado sobre o qual deslizo sem maiores especificações analíticas, quanto de verdade suportamos sobre a nossa condição? Quanto de verdade objetivamente verificável suportamos sobre nossa mortalidade e a vida falível que antes dela precisamos suportar no mundo? Num verso famoso dos Quatro Quartetos, Eliot afirma, com razão, que nós, seres humanos, somos incapazes de suportar a verdade. Traduzo livremente, esclareço.
Observem o próprio drama psíquico e moral de Darwin. A ciência privou-o da capacidade de continuar acreditando na fé que nutriu sua existência, abalando seu amor pela mulher e os filhos, sua necessidade de aceitação e reconhecimento no ambiente social em que vivia e conquistou respeitabilidade e prestígio. Seu heroísmo, expressão final do gênio mais poderoso do que as imposições do meio, consistiu na capacidade de afinal vencer suas dúvidas e irresoluções, dar forma à sua obra-prima e com isso provocar uma das maiores revoluções científicas de toda a história humana.
A questão que continuará nos interrogando e atormentando é a seguinte: quanto você suporta de verdade? Quanto de realidade isenta de crença consoladora na transcendência, numa imortalidade que nos salvaria da consciência para muitos insuportável de que somos apenas pó e ao pó regrediremos? Posso responder pelo meu ateísmo, mas longe de mim a presunção de doutrinar o crente, muito menos impor-lhe minhas convicções.
Recife, 10 de março de 2011.
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