sexta-feira, 8 de abril de 2011

Alcoolfobia


Alcoolfobia
Severo Machado

Odeio Nietzsche que odiava bebida alcoólica. Nietzsche odiava o álcool com a mesma intensidade com que odiava o cristianismo. Com uma diferença, porém: este era sintoma de sua ambivalência, já que foi poderosamente influenciado por ele. O álcool ele o odiava de forma coerente, pois nunca se meteu com esse tipo de má companhia. Se há uma má companhia que longamente frequentei, além das mulheres que tenho o dom de tornar piores do que são, é a má companhia do álcool. Há muito sei que ele é incompatível com meu organismo. Quando com ele me meto em bares, festas e outros ambientes pouco recomendáveis, no dia seguinte pago a conta com multas e juros extorsivos. O álcool sempre me deixa de ressaca, não importando sua qualidade. Pior: detona minha rinite alérgica, me castiga o corpo e me abate com o peso da sonolência e da dor de cabeça.

Por que então com ele me meto, se comprovadamente me faz mal infalível e previsível? Antes de tudo, ele tem o poder mágico de tornar as pessoas interessantes, como apropriadamente observou certo alcoólatra inglês. Como não as suporto a cru e sóbrio, preciso beber para torná-las o que não são ou tornar-me eu o que elas gostariam de ser ou que eu fosse. Além disso, ele é o mais eficaz corretivo da timidez que conheço. Sei que falam de mim, sei que zombam de mim quando baixo a guarda e confesso esta fraqueza: sou tímido incorrigível. Não me acreditam simplesmente porque dou em cima das mulheres antes que cruzem as pernas, também porque sou grosseiro e não raro brutal. Como há muito desisti do divã de Lúcio Astrolábio, que me extorquiu uma montanha de salários sem me fornecer o mais vago sinal de cura, preciso ocasionalmente fazer das minhas crônicas um divã sem guichê.

E assim vou eu bebendo. Houve um tempo em que bebia mais que o razoável ignorando todo tipo de sinal vermelho. Fazia mal antes a mim do que ao próximo, mas era a via mais curta para a cama das mulheres que cruzava na noite, no bar, na festa e até no bordel, pois sou do tempo em que o bordel era uma instituição espacialmente estabelecida para salvaguardar a estabilidade e permanência da família. Depois que todo mundo passou a fazer em todo o mundo o que antes era privativo do bordel e do quarto da empregada, a família não se desagregou, mas sofreu mutações tão radicais que algumas passaram a confundir-se com um bordel.

Melhor voltar ao copo já quase vazio. O que preciso é esvaziá-lo de vez. Quero dizer, preciso aprender a odiá-lo com a mesma intensidade coerente de Nietzsche. Aliás, é difícil imaginar filósofo mais incoerente do que ele. Quando estou sozinho comigo, pouco me custa esvaziar o copo ou simplesmente prescindir de enchê-lo. Não que eu me considere boa companhia para mim próprio. O que de mim me salva e comigo me reconcilia é a poderosa força narcísica que nos governa. Sendo assim, racionalizo o que sou de pior, abraço minhas mais baixas baixezas e acabo sempre vendo no espelho o melhor ser humano que conheço.

O problema é conviver, embora Drummond tenha escrito que viver é conviver. Aí vai outra incoerência típica desse povo que pensa, que pensa mais do que vive, como é o caso dos intelectuais. Drummond gostava tanto de conviver que se refugiou na poesia, sua via de fuga do suicídio, ou pelo menos da incapacidade crônica de tolerar as formas rotineiras de convívio. Como não sou poeta e de resto odeio a poesia, salvo quando empregada para levar mulher para a cama, reconheço minha necessidade do outro sem sacrificar a coerência em benefício de um verso ou frase citável. O problema é que em mim a necessidade se traduz em via de colisão, em timidez mascarada nas vestes da grosseria e da brutalidade sem cálculo. Recorrendo ao menor dos males, prefiro quase sempre encher o copo e logo esvaziá-lo. Quem estiver por perto que se cuide.

E assim vou eu bebendo e me sofrendo. No dia seguinte estou inutilizado. Dói-me a cabeça, dói-me o corpo lasso, dói-me a dor que arrebenta em espirros, secreção irritante, a incapacidade de governar minha vida rotineira. E tudo por causa do álcool do qual dependo para tornar o outro interessante e me dar coragem para dar em cima das mulheres. A ressaca me engrossa o sangue contra o álcool fazendo-me jurar juras que logo desacredito diante da primeira garrafa que me aparece. Afrouxo meu ódio contra Nietzsche como se essa artimanha imprimisse eficácia a meu ódio contra o álcool fazendo-me assim negá-lo para sempre. Mas logo sobrevém outra bebedeira logo seguida de outra ressaca acachapante e novas juras de ódio e suspensão da dependência.

De algum tempo para cá, somei ao ódio crescente ao álcool uns bambos exercícios da vontade sempre vulnerável ao prazer, ao mínimo esforço, ao caminho mais curto entre o desejo e seu objeto, entre o bêbado e a garrafa. O diabo é que a tentação salta sobre mim em cada canto da casa, em cada esquina de rua, em cada TV ligada. Como no Brasil há TV ligada até nos sanitários, igrejas e bibliotecas, como escapar dos publicitários implacáveis na sanha de me corromper, de me tornar um alcoólatra? Pior é que não me vendem a cerveja suadinha escorrendo volúpia e prazer. Vendem-me a gostosa suadinha que a imaginação libidinosa confunde com a lata ou garrafa.
Sei que dirão que a culpa é minha, a culpa é de todo alcoólatra que não tem caráter nem energia para resistir à tentação. Afinal, como sempre dizem depois da orgia, “beba com moderação”. Fazem da hipocrisia mercadológica o mesmo que um puritano faria num bordel. Como beber com moderação quando tudo me convida, quando tudo me provoca a beber imoderadamente? Pensando bem, vou parar de odiar Nietzsche para concentrar meu ódio nos publicitários e na maldade do semelhante, causa real das minhas bebedeiras incuráveis.
Olinda, Bar do Batata, 2 de abril 2011.

2 comentários:

  1. Walker Limaabril 12, 2011

    Em 1880, Nietzsche publicou "O Andarilho e a sua Sombra" tempos depois, decorridos quase três anos, surgiu de um desconforto( não se encontrava bem instalado e no meio de um inverno) o nobre Zaratustra. Combateu a metafísica como nenhum outro filósofo. Em "Ecce Homo" juntou Zaratustra a Dionísio, para afinal opor Dionísio não a Sócrates, mas ao Crucificado. Resultou que da crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista. Muitos consideraram sua obra como anormal e desqualificada pela loucura. Para Nietzsche onde existe loucura há um grão de gênio e sabedoria. O Niilismo...Diante disso é melhor tomar uns tragos e alegrar o coração.

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  2. Muito bem. Parece que esta mazela atinge também ao professor. Vamos tomar um porre?

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