domingo, 5 de maio de 2013
Como lemos, como nos lemos, como nos leem
Precisamos sempre explicar tudo. Sei que me repito citando Machado de Assis. O que me desculpa a repetição é o fato de sabê-la oportuna. Somente as pessoas muito primárias acreditam que as palavras e a totalidade dos signos que regem a comunicação humana são transparentes e unívocas, assim como somente os hermeneutas herméticos acreditam que a linguagem é um solo minado soterrando sentidos sempre indeterminados. Baixando a bola, o fato é que a linguagem e portanto a comunicação humana não são nunca transparentes. Isso evidentemente não impede o comum das pessoas de aspirarem a mitos como a alma gêmea, a comunhão e transparência propiciadas pelo amor, a comunidade ideológica ou religiosa etc.
O amor não é nunca transparente. O que nele os afortunados encontram, e talvez apenas nele, é um estado de comunhão sensível ou carnal, uma iluminação intelectualmente inexplicável. Daí dizê-lo, nesses estados ou momentos miraculosos, daí dizê-lo inefável. Ou ainda: estados de epifania, de iluminação espiritual irrompendo dentro da banalidade da vida. Mas lembremos o verso de Manuel Bandeira: “Os corpos se entendem, mas as almas não”. Uma evidência banal: sei de muita gente, inclusive eu, que viveu no amor o estado acima descrito, estado de êxtase e epifania, com parceiros em tudo diferentes e desiguais. Como conceber uma comunhão de almas, ou simples afinidade espiritual, entre amantes tão desavindos? Logo, é na carne que se entendem, é na misteriosa mina dos sentidos (carnais, friso) que lavram o gozo e o êxtase, não nas abstrações transcendentes da alma.
Se a comunhão e o entendimento transparentes são alcançáveis através do amor, então isso se dá talvez numa ordem distinta de amor: na ordem do amor amizade, do amor baseado na comunidade espiritual e mística. Seria talvez o caso de lembrarmos o amor de Abelardo e Heloísa, ou ainda a amizade de Montaigne e Étienne de La Boétie. Como Montaigne escreveu numa frase célebre, até transposta para uma canção de Chico Buarque: “porque era ele; porque era eu”. O rebaixamento da experiência amorosa a expressões boçais tão correntes no nosso tempo bem que pode dar margem a que se leia a amizade de Montaigne e La Boétie num registro vulgarmente homossexual. Bem posso imaginar alguém insinuando que ambos teriam inventado a parada gay na França do século xvi. Aliás, este modo de ler, o anacrônico, é outro modo de ler errado. Consiste em ler no passado sentidos que somente têm sentido no presente. Mas isso é outra história.
Não bastasse a inerente indeterminação de sentido das palavras, portanto também das nossas experiências fundamentais expressas na linguagem, agravamos nossos erros de leitura, nossas interpretações arbitrárias, projetando no texto e na vida uma angulação subjetiva que não raro distorce sentidos objetivamente expostos no texto e no âmbito da experiência. A leitura subjetiva, que facilmente se converte em subjetivismo, deforma o sentido objetivamente dado do escrito. Ela pode ser qualificada de muitos modos: subjetivismo de classe, de raça, de gênero, de religião, idade, nação etc. Mas o mais grave subjetivismo é o decorrente da ignorância.Em suma, o sentido lido pelo leitor tem a medida da sua ignorância.
Lembrando um exemplo pessoal, evoco uma personagem irrelevante que ficou um bom tempo na moda, o que prova a irrelevância cultural e ética dominantes na nossa cultura. Refiro-me a Geisy Arruda, que aliás foi até estrela do carnaval de Recife. Escrevi dois artigos sobre ela apenas com a intenção de pegar carona na sua celebridade supondo que ela poderia arrancar-me do meu infeliz anonimato. Tolo engano meu: Geisy entrou na moda enquanto eu afundei num anonimato ainda mais obscuro e amargo.
Mas o que ia observar a propósito de Geisy, já isento do tom de ironia talvez notado por meu improvável leitor ou leitora, é que fui grosseiramente incompreendido no que escrevi, assim como no que declarei num programa de televisão. Foram inúteis todos os meus esforços no sentido de me fazer claro, no sentido de fazer com que as pessoas me compreendessem. Por fim, já desanimado diante de tanta incompreensão, concluí que tudo que me restava era o refúgio do silêncio. A isso acrescentaria a memória remota de um seminário de literatura a que assisti quando era ainda estudante de letras. Discutia-se a interpretação do texto literário quando uma professora narrou uma anedota exemplar. Propôs a seus alunos a leitura de um belo e curto poema de Manuel Bandeira: Consoada. Nele o poeta usa uma metáfora para aludir à morte: a Indesejada das gentes. A professora perguntou a um aluno o que o poeta queria significar com esta metáfora. Resposta: a sogra do poeta. E pensar que Manuel Bandeira, como eu, nem sequer foi casado. Melhor cair no passo de olho no microvestido de Geisy Arruda.
Esta crônica ilustra, à revelia de minha intenção, o estado de decadência cultural em que mergulhamos. Comecei com Machado de Assis e Manuel Bandeira, passei por Montaigne e Étienne de La Boétie e acabei em Geisy Arruda. Difícil imaginar melhor exemplo de degradação do sentido e da cultura no presente.
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