sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013
Carnaval e Piano
Como tantas coisas boas da vida, O Piano foi fruto de uma sucessão de acasos encenados em sucessivos carnavais. O primeiro reuniu-me a Flávio Brayner e Sérgio Gusmão na esquina do Café Cordel. Já não lembro o ano exato. Foi aí por volta do ano 2000. Fiquemos com a data redonda, tão marcante como símbolo de século e milênio. Sérgio, que era já amigo de Brayner, chegou carregando uma porção de instrumentos de percussão atados à volta de sua figura corpulenta: pandeiros, zabumba, chocalho, tamborim... Feitas as apresentações, queixamo-nos do ar meio parado do carnaval naquele momento. Seriam seis ou sete da noite. De repente, começou a cair uma chuvinha fina, chuva inglesa, dessas que não chovem mas molham e persistem. Então, por mero acaso, comecei a cantar Chove Chuva, de Jorge Ben. Sérgio foi desafivelando os instrumentos, que começou a percutir, e pouco a pouco foi juntando gente. Foi nessa noite acidental que tudo começou.
Lá pelas tantas tínhamos já sustentado uma folia entusiasta e quente à frente do Café Cordel cheio de cadeiras espalhadas pela calçada. Fizemos ali um grande e espontâneo carnaval. Sérgio era o coração e a força agregadora daquela linda festa. Como há muito vive como profissional da música, conhece uma infinidade de gente que faz o carnaval, sobretudo tocando no carnaval. Essa gente passava pela rua e logo, atraída por Sérgio, entrava na folia e com seus instrumentos imprimia energia, beleza e variedade à festa. Num certo momento, como um sopro de transfiguração mágica do carnaval, formamos espontaneamente uma imensa roda de ciranda. Enquanto Sérgio e eu, no centro da roda, (ele na percussão e eu cantando Cirandeiro, de Edu Lobo e Capinam) puxávamos a ciranda, logo seguida de outros ritmos, uma multidão linda e festiva movia-se como uma onda azul espraiando-se na noite.
Nesse momento, Flávio Brayner ocupou papel secundário. Afinal, não havia piano, seu centro e força de irradiação festiva. A ideia da folia incluindo o piano, que por fim batizou o bloco, veio alguns anos mais tarde no carnaval de Casa Forte. Pouco sei dessa parte da história, pois dela não participei. Sei apenas que a ideia e o comando do processo veio de ambos, Brayner e Sérgio. Quando voltei a agregar-me ao grupo, já sob a batuta do piano, foi novamente no carnaval do Recife.
O Piano tem hino – ou bossa-frevo, se assim posso dizer – e um belo estandarte. Este é obra da pintora Teresa Costa Rego. O hino é de autoria de Flávio Brayner, Janete e Sérgio Gusmão. Também eu, logo ao fim do carnaval do ano passado, compus um frevo em louvor do Piano. Chama-se Frevo do Piano. Pensava ensaiá-lo neste ano com Flávio e Sérgio para em seguida incluí-lo no nosso repertório. A doença, no entanto, privou-me de mais um carnaval, talvez o último. Digo último por viver, talvez solitariamente, uma insatisfação crescente com o fato de concentrarmos nosso carnaval na Rua da Guia. Não bastasse tanto, nossa sede ou salão improvisado é o Restaurante Panquecas, em tudo inconveniente para uma festa como a nossa. É uma casa que se alonga do fundo à fachada como um corredor quente e sem janelas, além das instalações precárias. Não bastasse tanto, a Rua da Guia está no foco de um carnaval cada vez mais ruidoso, cada vez mais incompatível com o Piano que, perdoem a presunção, procura realizar um carnaval de inspiração democrática no sentido festivamente mais alto do termo. Em meio a tanto excesso e ruído, com lances de barbárie respingando os acordes refinados do nosso som, é cada vez mais difícil cantar Tom Jobim, Chico Buarque, Antonio Maria, os grandes frevos e marchas tradicionais em meio a tanta pancadaria.
Acho que o Piano pode sem presunção orgulhar-se de fazer um carnaval que mescla democraticamente o melhor da nossa rica diversidade musical. Outra expressão notável do seu espírito democrático consiste no fato de que nossos microfones estiveram sempre abertos à participação dos que livremente entram na nossa festa. Essa licença democrática é marca tão patente do Piano que já por várias vezes nosso maestro, Flávio Brayner, irritou-se, com razão, diante dos excessos de bêbados desafinados que acabam entrando na festa e no coro para bagunçar nosso carnaval.
Esta crônica, alinhavada na manhã da quarta-feira de cinzas, vale um pouco como compensação para minha grande frustração decorrente da impossibilidade de mais uma vez, mais um carnaval, cantar e suar e abraçar feliz os muitos amigos que anualmente encontro no Piano: Bella, Gio, Neide, Janete, Nara, Ana Dubeux e Cyril, Erlyck e Lucila, Geneide e Priscila, Karina, Eliane, Conceição, Dora, André e Deborah, Dirceu, Celso, Alexandrina e Jorge Jatobá, Eliene e Sílvia Gusmão, Sílvia e Yoni, Vera e Ana, Mané e Elbe, Maria, Luiza e Lais, Lucivânio, Pedro Gabriel, Clarissa, Márcio, Stella Abranches, Stella Maris, Fernanda, Teresa Costa Rego e Teresa... quantos mais, meu Deus? Desculpem a lista tão parcial e até o próximo carnaval, ou até o Juízo Final.
Quarta-feira de Cinzas do carnaval de 2010.
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