segunda-feira, 5 de julho de 2010

Solidão e Solitários


Já antes louvei, em algum volume do meu diário, um livro que amo reler: Solitude, de Anthony Storr. É a mais equilibrada, sensata e penetrante apreciação psicológica que conheço relativa à experiência da solidão. Sendo eu próprio um solitário, sei bem quanta incompreensão grosseira esta condição suscita mesmo em comentários de amigos íntimos. Tendem de imediato a crer que o solitário é um incapaz de manter vínculos estreitos e constantes com alguém. Presumem ainda que é vítima de algum trauma irreparável, ou alguém psiquicamente inabilitado para os comprometimentos e responsabilidades da vida casada – da vida convivida em geral. Ora, Storr demonstra com argumentos e fatos irrefutáveis o quanto há de solitários amáveis, generosos e apreciadores do bom convívio humano. Em suma, seriam gente como toda gente, gente saudável ou doentia como o comum da espécie.

Que me lembre, pois faz já algum tempo não o releio nem dele fiz anotações, Storr pinta um quadro tão positivo do solitário e da condição solitária que acaba silenciando, ou pelo menos obscurecendo, um veneno perigoso que segrega. Refiro-me ao veneno do egoísmo mantido em estado de prontidão, um egoísmo talvez mais sensível do que o observável nos que se entregam ao gosto ou necessidade de convívio corrente. Percebo-o em mim, antes de tudo. Percebo-o ainda em amigos solitários, seja por escolha, seja por imposição ou castigo das circunstâncias. É patente, em ambas as categorias, o peso primacial desempenhado pelo egoísmo. Um dos seus sintomas mais nítidos radica na impaciência diante do semelhante, diante das azucrinações rotineiras no convívio humano.

Tende ainda o solitário, talvez de forma excessiva, ao zelo pela própria independência, mesmo quando é um dependente crônico do outro. Este outro é de ordinário uma mulher. Embora dependente, resiste ele ao comprometimento que implique vidas conjugadas, casamento, coisas assim. Corre disso como o diabo corre da cruz. Desdobrando essas idiossincrasias, o solitário é com frequência hipocondríaco. Mais que doente, é um cultor da doença, na qual se entranha decerto como sintoma da excessiva fixação em si próprio, na vida insular que habita e defende de toda a sorte de invasão.

Outro traço notável é sua intolerância para com as crianças, ainda mais se ele próprio é prisioneiro de fixações infantis. Em contrapartida, o solitário dotado de tais características pode ser um grande sedutor, tendendo a exercer evidente fascínio sobre as pessoas com as quais convive, especialmente as mulheres. Não é sem razão que o solitário desse tipo é bem amado por elas, mesmo quando no fundo encerra, a sete chaves, um gosto incontido e divertido pela misoginia.

Mas por que não falar mal também de mim próprio, do solitário que deliberadamente quis ser e sou? No que se refere ao egoísmo, tenho perfeita consciência de que o exercício prolongado da solidão o exacerbou. Antes era e desejava ser um homem mais solidário. Por isso coerentemente participava da vida dos que viviam próximos a mim: parentes, amigos, colegas de trabalho, até estranhos. Fiz coisas que bem sei não mais me disporia hoje a fazer. Como acredito ter certo dom para ouvir e orientar pessoas confusas, durante muitos anos fui confidente espontâneo e sempre disponível de gente atormentada por problemas. Algo que concorreu para alterar essa minha disposição foi a consciência do quanto essas pessoas que me solicitavam eram egoístas ou narcisistas. Procuravam-me, acima de tudo, por ser lisonjeiro dispor de ouvidos receptivos e sensíveis onde vertiam narrativas intermináveis sobre o próprio umbigo. A evidência disso é constatável no fato de que essas pessoas sumiam completamente de minha vida quando estavam bem. Procuravam-me sempre quando crivadas de problemas, quando carentes de consolação narcisista.

Sem depreciar a possibilidade de que muitas buscassem no jogo de confidências alguma via de esclarecimento e catarse compreensível, não duvido de que eram no geral dirigidas pelo próprio egoísmo, pela carência de gratificação narcisista. Também constatei, depois de alguma experiência, que eram indiferentes a minhas carências e necessidades. Como toda pessoa carente de ajuda, como todo dependente narcisista, viam em mim apenas o espelho em que se refletiam. Esta foi a razão decisiva para que eu fosse discretamente arriando a tenda, desfazendo o divã ambulante e gratuito e por fim recolhendo-me mais livremente a minha ilha simbólica. Hoje, de fato já há muito tempo, frequento bem poucas pessoas e já não me solicitam de ordinário movidas pelas expectativas antes predominantes. Ah, ninguém imagina o quanto dei ouvidos e gastei meu tempo ouvindo problemas insolúveis, quando não imaginários.

As pessoas sofrem muito. Aprendi algo disso graças ao convívio solidário e interessado que com muitas entretive. Vale aqui evocar as palavras do padre e confessor citado no livro Le Bonheur,désespérément (A Felicidade, desesperadamente), de André Comte-Sponville. Vai aqui o registro baseado apenas na minha memória. Atendendo à curiosidade de André Malraux, que lhe perguntou o que mais o impressionara na sua longa experiência de confessor, respondeu assinalando que as pessoas são mais infelizes do que aparentam e, ademais, não existem grandes pessoas. À parte esta observação, que tomo como verdadeira, aprendi que pouco poderia fazer para suprimir a dor das pessoas que me solicitavam como confidente, para não dizer simplesmente abrandá-la. Antes de tudo, aprendi talvez tardiamente que apenas elas podem fazê-lo. Não obstante minhas ações e intenções, a vida é irredutivelmente delas. Portanto, somente elas podem vivê-la e consertá-la, ou agravar o que já encerra de dor e infelicidade.

Em suma, recolhi minha tenda ou divã ambulante. Ao fazê-lo, tornei-me menos sensível à dor e à infelicidade alheias. Esta, acredito, é uma das consequências inevitáveis da solidão, da vida tendente a fechar-se à volta de si própria. Mesmo aqueles capazes de manter sentimentos e praticar ações altruístas, mesmo esses se vão até inconscientemente distanciando dos dramas rotineiros sofridos pelo semelhante, por aquele que no geral procuramos manter a cautelosa distância. Adicionalmente, fiz-me também menos tolerante, menos paciente diante dos entraves rotineiros da vida, notadamente a brasileira, no geral desatada de ordenamentos e processos sociais mais democráticos ou civilizados.

02 de outubro 2008.

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