segunda-feira, 12 de julho de 2010

Memória e Nostalgia


Sempre me intrigou o fato de tantas pessoas retornarem nostalgicamente às memórias da infância quando entram na maturidade ou na velhice. Se recorrentemente meditei sobre este assunto, a ele retorno influenciado pela releitura de Nordeste, de Gilberto Freyre. De resto, talvez não exista autor brasileiro mais sugestivo e rico no que se refere a este assunto. Se o fato me intriga, é simplesmente porque nunca fui picado por essa doença tão sedutora. Acho saudável atravessar a maturidade como o tenho feito isento da tentação de remirar as paisagens da infância transfigurando-as com o colorido imaginário da nostalgia. Não tenho dúvida de que a infância e a juventude nostalgicamente revisitadas constituem, antes de tudo, um sintoma de mal-estar no presente. Nunca vi ninguém feliz, ou em bons termos com a vida presente, gastando tempo e imaginação compensatória com o que presumimos serem memórias da infância ou juventude. Portanto, o fato de hoje observar e ouvir tantos companheiros de geração chorando a perda de ilusórias fortunas do passado representa um sintoma adicional da nossa incapacidade de aceitar o peso e os limites da idade avançada. Se antes talvez nunca acolhemos resignadamente a velhice, hoje nos tornamos simplesmente incapacitados para sequer encará-la de frente com o realismo desilusório que ela decerto exigiria. Nossa adesão irrestrita e festivamente enganosa à cultura do narcisismo deixou-nos de mãos atadas diante da fatalidade que é a lenta, progressiva e insegura imersão na realidade da velhice.
Críticos mais severos de Gilberto Freyre observam, com razão, a componente nostálgica de sua obra. É isso de resto uma verdade tão flagrante que não vejo bem como alguém pretenderia negá-la. O que no entanto nego é a redução explicativa deste fenômeno a fatores puramente sociológicos. Noutras palavras, esses críticos assinalam o vinco classista da nostalgia de Gilberto Freyre. Se dentro desses limites endosso a crítica, deixo de fazê-lo se se pretende estender o argumento para a explicação da nostalgia em geral. Uma das evidências da insuficiência dessa explicação redutora consiste no fato de que é fácil observar como pessoas que nunca detiveram privilégios de classe no passado tendem na maturidade a idealizar a infância ou a juventude que viveram. O que sei e procuro ressaltar é a atitude saudável adotada pelos que procuram, ainda quando descontentes, viver no presente. A evidência disponível, já um tanto explicitada neste diário, não me franqueia aceitar satisfeito o presente, muito menos feliz. Aliás, felicidade, contrariamente ao que tantos imaginam, é apenas um estado, e bem transitório.

16 de setembro de 2008

Voltando à entrada precedente, é comigo próprio que me intrigo quando procuro compreender o caráter significativo dos elos que me vinculam ao passado. Quando adolescente, estudando em Recife, curti dolorosa nostalgia do campo, do mundo obscuro e remoto que ficou em Igarapeba. Nos primeiros meses, menino demasiado sensível e infeliz dentro dos limites apertados do presente, chorava com saudade dos campos onde galopava, do rio sujo onde me banhava durante horas inventando jogos, espionando excitado o corpo das mulheres, jogando futebol incansavelmente. Igarapeba era um mundinho onde todos se conheciam e as rotinas se reproduziam sem variação. Num mundo regido por forças tão paradas e iguais, o que reinava nas vidas e sensações daquele punhado de gente era o tédio e a estreiteza dos horizontes simbólicos e reais. Mas eu, menino infeliz e privado de mãe, atado a uma família em desgoverno, eu idealizava Igarapeba e sentia meu coração apertar-se todos os dias quando ouvia o trem rolando sobre os trilhos, apitando em direção ao mundo para onde queria regressar. No dia em que deixei Igarapeba, lembro-me ainda com admirável nitidez desta cena, sentei-me no trem oprimido por uma medrosa sensação de futuro incerto e assustador. Tinha então dez anos e até então vivera fora de Igarapeba apenas uma vez: um ano morando e estudando com a minha família em Catende. Perto de Igarapeba, Catende era uma metrópole. Quando inauguraram o cine Diamante, o fato parecia um acontecimento cultural grandioso. E eu, perdido na vida, me embriagava dentro do reino de fantasia que Hollywood exportava para o mundo.
Voltando a minhas memórias de menino crescendo em Recife, minha nostalgia por Igarapeba prolongou-se por bastante tempo. A grande coisa, minha noção mais nítida de felicidade, era sentir-me livre da escola para tomar o trem e ir correndo desfrutar minhas férias em Igarapeba. Lá chegava como um herói civilizador, transportando para a aridez da vila as novidades bebidas nos cinemas, os enredos e personagens que eu reencenava na rua principal mobilizando a garotada como se fôssemos combatentes de filme de cowboy ou espadachins. Quando afinal integrei-me ao ambiente cultural de Recife, a nostalgia do campo, a saudade de minha pobre e triste vila, tudo isso foi irremissivelmente murchando. Por fim, Igarapeba tornou-se um fundo de poço, uma paisagem da qual inteiramente me libertei. Voltei a ela uma única vez, por volta de 1986, para atender a um pedido irrecusável de papai. Temendo que o último sobrevivente de sua geração, Cícero Costa, morresse sem que antes o visse pela última vez, papai manifestou o desejo de o visitar. Além disso, Cilene muitas vezes manifestou o desejo de conhecer Igarapeba, o lugar onde vivi quase toda a minha infância. A viagem, de apenas um dia, foi portanto um modo de atender a dois desejos irrecusáveis. Lembro-me bem dela por guardar ainda fotos onde posso ver a imagem do meu pai congelada no tempo, também a de meus 30 e muitos anos, sobretudo a imagem sempre amada de Cilene.
Voltando ao cerne da questão, acredito haver idealizado Igarapeba, haver sofrido saudade de Igarapeba, antes de tudo como um sintoma da minha inadaptação desamparada no ambiente de Recife, que de imediato me pareceu um mundo imenso, cheio de possibilidades de vida, mas antes de tudo ameaçador. Tão logo ajustei-me a um novo metro de vida, a uma outra ordem de experiência, passei então a pensar Igarapeba e senti-la como uma realidade distante e crescentemente alheia, quando não oposta, às linhas que confusamente fui traçando para a minha vida de adolescente. Por fim, cheguei ao ponto em que dela me senti integralmente desligado. Igarapeba tornou-se então apenas uma fotografia na parede da memória e felizmente já não doía como dói no poema de Drummond. A propósito, ele alude, no Dossiê Drummond, à memória que na velhice, já passados os 80 anos, prende-o ainda a Itabira. São memórias assim, sentimentos assim enraizados nos lugares da infância, que me intrigam. Pois o fato é que rompi todos esses vínculos idealizados com a minha infância e adolescência. Há muito deixei de sentir saudade, de moer no silêncio da memória a nostalgia de um passado que, tenho plena convicção, não foi feliz, não foi nenhuma Pasárgada iluminando na bruma do tempo dissipado a vida pedestre que nos recusamos a ver como tal. Se eu idealizei Igarapeba, se a transfigurei na memória transpondo-a para elevações inexistentes, por que na velhice tantos não se abrigariam nesses mesmos refúgios de consolação?

Um comentário:

  1. Fernando.
    Concordo com ressalvas. Não Gilberto Freyre, mas Freud ajuda a entender. O ser humano é
    uma obra aberta. Epa, isso já é Umberto Eco.
    Depois continuo.

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