domingo, 12 de agosto de 2012
Deus me livre de ser mulher -Epílogo
A generosa atenção crítica que algumas amigas concederam à minha série de crônicas sobre as relações de gênero, digamos assim sumariamente, induziu-me a acrescentar este epílogo. Antes de tudo, tenho muito apreço pela opinião das minhas amigas. Aliás, é curioso observar como de ordinário apenas a mulher manifesta interesse especial por essa ordem de problema. Não sei de nenhum homem que conceda atenção refletida às questões de gênero, às relações amorosas etc, salvo por dever profissional ou acadêmico. Nos limites de minha experiência, os homens consideram as questões que discuti ao longo da minha série de crônicas em termos de fofoca, humor, queixa ressentida ou certo travo de misoginia que se dissolvem na epiderme dessas questões. É uma pena, pois afetam obviamente tanto a mulher quanto o homem, como procurei ressaltar numa das crônicas.
Tento agora explicar melhor parte do que erraticamente fui respigando nas minhas crônicas. Como já observei, esses meus escritos não têm maior ambição. Brotam de alguma intuição, algo que afeta minha experiência, ilumina bruscamente a andadura rotineira da minha vida, e de repente me sinto movido a plasmar a intuição em palavra, reter na duração da escrita algo do que intento salvar do fluxo contínuo das sensações e experiências. Por isso escrevo meio à deriva do momento. Retenho o facho de luz que anuncia a treva. Além disso, dada minha indisciplina intelectual, minha vexatória falta de método e ordenamento da matéria abordada, vou enfiando assunto por via associativa, pegando aqui, largando adiante, seguindo as curvas e tropeções do itinerário errático de um escritor bêbado. Logo, sei que há muitos furos nos meus argumentos, muita coisa silenciada ou esquecida nas entrelinhas do discurso. Daí minha necessidade de retomar o texto no seu conjunto para de certo modo comentá-lo visando melhor esclarecê-lo.
Começando pelo título, somente uma leitura muito apressada pode autorizar a interpretação de desapreço pela mulher. A expressão, tal como correntemente usada (Deus me livre de ser mulher) traduz antes de tudo um alívio de desapreço. Noutras palavras: que bom não ser mulher. Na minha crônica, porém, fica claro, por tudo que nela escrevo, que o sentido conferido ao título é irônico e provocativo. Minha intenção ao adotá-lo foi provocar a atenção da leitora para no desdobramento da crônica propor questões críticas, questionar experiências comuns à mulher e ao homem introduzindo na relação entre ambos diferenças de ordem social e natural que, no meu entender, afetam negativamente bem mais a mulher do que o homem.
Talvez a maior prova do quanto me alio à perspectiva da mulher consista na alusão aprovativa que faço a Eric Hobsbawm, quando se refere ao século 20 como o século da mulher. Não é exatamente isso o que diz. Portanto, traduzo em termos pessoais e mais simples. Também a crítica que faço à nossa tradição patriarcal, ainda tão viva no Brasil e notadamente no Nordeste, não dá margem a ambiguidade sobre meu ponto de vista. O paralelo que traço em tom de crônica de memórias entre mim e minha irmã deixa patente a subordinação social da mulher, o preço altíssimo que pagava para viver reclusa num estado de segurança que eu equivocadamente invejava.
Retomando a clave memorialística ou autobiográfica, atribuo minha sensibilidade à condição oprimida da mulher no mundo da minha infância e juventude a certas características singulares do meu pai que julgo haver herdado. Opostos incompatíveis, ele e minha mãe reverteram na minha experiência normas dominantes da nossa tradição patriarcal. Enquanto ela era voluntariosa e autoritária, não raro indo ao extremo da violência imposta aos filhos, meu pai era, como diz a expressão corrente, um doce de pessoa. Papai foi o homem mais delicado e amoroso que conheci. Não é pouco dizer isso num mundo povoado por machões, por cabras-machos que identificam na delicadeza de atitudes e sentimentos uma ofensa, ou fraqueza feminina. Além de herdar muitos desses traços, nosso convívio na minha infância com certeza os reforçou no meu modo de ser. Afinal, ele andava de mãos dadas comigo, me punha para dormir, cercava-nos, a mim e a meus irmãos, com uma delicadeza única, ademais acentuada pela perda da minha mãe, que nos abandonou fugindo para São Paulo na companhia do amante. Pois é, isso foi no tempo em que a mulher que ousava ir a esse extremo não se separava, fugia apagando as pegadas da fuga, pois doravante cavava sua própria desonra e a da família rejeitada.
Ferido por esse trauma, o maior da minha vida, tive que sofrer, entre outras consequências, os efeitos devastadores que causou dentro da minha família. Confuso diante da catástrofe, na adolescência os sintomas das dores e perdas agravaram-se ao ponto de me compelirem a procurar explicações, meios de compreender e assimilar o desastre em tudo que concorresse para iluminar a longa noite solitariamente atravessada. Num dado momento, descobri a psicologia, depois Freud e a psicanálise. Também Flaubert cuja obra-prima, Madame Bovary, foi minha fonte maior de compreensão da vida de minha mãe que eu completamente ignorava. Tudo através de leitura, da experiência refletida, das vias tortas do autodidatismo que está na raiz do que fui aprendendo pela vida.
Se algo aprendi ousando lidar com meus traumas e perdas, foi a necessidade de buscar a verdade sobrepondo-a sempre às ilusões consoladoras que tanto nos seduzem, mas ao preço da prisão na fuga da realidade, no autoengano, na ignorância que nunca ajudou ninguém. Nesse sentido, tornei-me um racionalista intransigente. Devo isso, claro, não às luzes do acaso, mas à leitura de gente como Freud, já citado, Bertrand Russell e muitos outros filósofos, psicólogos, romancistas, poetas... Não duvido de que fui salvo pelas luzes da razão, do conhecimento que vira pelo avesso nossas noções estreitas da vida, as convenções estúpidas que imitamos feito cãezinhos amestrados.
Foi graças às lições condensadas no parágrafo precedente que corrigi minha compreensão enganada do amor, em particular do amor romântico. Sei que o que escrevi sobre o amor romântico incomoda as mulheres confessadamente românticas. Queria por isso frisar que minhas críticas não são intencionalmente escritas contra elas. Escrevi-as antes de tudo contra mim próprio, contra uma noção herdada do amor romântico que me levou a amar tangido pela inconsciência da ilusão, pela idealização insensata da mulher. Quando a perdi, a que marcou profundamente minha revisão do amor, perdi-a confundido pelo amor ferido que se mescla ao ódio, ao ressentimento, à rejeição, todo esse complexo de emoções característico das separações amorosas traumáticas.
Precisei remover toda a fumaça romântica da minha percepção amorosa para afinal concluir que não perdera a mulher real, mas um objeto que idealizara. Se odiei a mulher que traiu minhas fantasias (jurávamos um ao outro amor eterno com toda candura dos jovens enceguecidos pela paixão de Romeu e Julieta), não poderia culpá-la por não corresponder às expectativas da minha idealização. Por isso afirmei que o amor romântico pode ser uma projeção do nosso narcisismo. Longe de mim afirmar que seja apenas isso. É claro que há muitos modos de ser romântico. Eu próprio tenho e quero preservar muito de romântico, pois ninguém ama com a razão. Amor é antes de tudo sentimento, expressão de desejos que não raro fogem ao nosso governo e às interdições sensatas da razão. No embate entre razão e emoção, as vitórias da primeira são sempre parciais e expostas ao risco da regressão. Não tenho dúvida de que o exercício da razão no ser humano é antes de tudo uma conquista penosa. Entretanto, também não duvido da luz que irradia.
Como assinalei, existem muitos modos de ser romântico. Enfatizei nas crônicas aqueles que me parecem nocivos, pois nos impõem, sobretudo à mulher, perda e sofrimento excessivos. Acima de tudo, procurei me concentrar na crise inegável dessa forma de amor. Ainda que tivesse competência para analisá-la em toda sua complexidade, na sua pluralidade de ângulos, não caberia fazê-lo em crônicas escritas para um blog. Os interessados mais esclarecidos sabem onde encontrar a bibliografia adequada para melhor examinar e conhecer a crise que abala o amor romântico.
Também lamentaria se a leitora enxergasse nas minhas crônicas apenas uma crítica impermeável a qualquer possibilidade de alternativa ou saída. Deixei claro que importa proceder à crítica do amor romântico, às ilusões e expectativas que envolve, não para mergulhar no desespero ou na descrença relativa ao amor. O sentido da crítica consiste em propor medidas passíveis de modificarem nossos modos de amor, a necessidade de revisar nossa compreensão do que seja nas nossas vidas. Como escreveu Malcolm Lowry, “non se puede vivir sin amar”. Por outro lado, não se pode amar dentro do figurino romântico dominante. Melhor dizendo, é claro que se pode, muita gente o faz, mas o final é previsível e o preço desastroso.
Os casais que sobrevivem bem ao chão movediço das relações conjugais são precisamente aqueles capazes de modular o amor de acordo com a realidade dos sentimentos e desejos humanos. O que não me parece razoável, nem realista, é acreditar que o amor romântico pode sobreviver indefinidamente como um movimento passional inexaurível indiferente ao tempo, à rotina, à realidade adversa, a todas as forças que tramam para esgotá-lo ou induzi-lo a mudar de objeto. O amor que sobrevive casado e durável, fonte das gratificações humanas de que mais carecemos, é o amor amizade. Quem disse isso há séculos foi Montaigne, o filósofo mais sábio que conheço. Como frisei, a expressão é muito vaga e portanto substituível. Se preferirem, chamem-no amor companheiro, amor parceiro... O essencial é esclarecer que aludo ao amor, precioso e raro, que sobrevive à fase passional e propriamente romântica gestando no convívio, na intimidade, nas vicissitudes compartilhadas o único modo de duração amorosa factível.
Casar o amor romântico, atar romantismo e duração, romantismo e rotina conjugal, é aspirar à realização de um paradoxo refutado pela história amorosa de figuras românticas modelares como Rousseau, Byron, Vinícius de Moraes e Oswald de Andrade. Sem contar toda a grande, também a pequena, tradição literária e artística que rendeu obras como a já citada Madame Bovary e Anna Karenina. No mais, ninguém precisa conhecer estas obras e a tradição de que são parte. Basta olhar com lucidez dentro e fora da nossa experiência. Em suma, o amor que casa e sobrevive precisa de algum tipo de juízo, coisa que o amor romântico desembestado nunca conheceu e até despreza.
Recife, 8 de agosto de 2012.
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Fernando,
ResponderExcluirContinuo apreciando muito suas crônicas.Já fazia muito tempo que não as lia, mas quando leio alguma coisa escrita por você é como retornar no tempo e as nossas longas conversas. Sempre tem algo para aprender e levar para a vida. Essa da mulher e do amor romantico é muito inteligente e sevem para nos abir os olhos quando nos falta o dicernimento da ordem prática das coisas.
Um beijo pequeno.