segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Nelson Rodrigues e a unanimidade
Uma das fontes inequívocas da celebridade de Nelson Rodrigues deriva do seu talento para criar frases de efeito, frases impregnadas de uma força inventiva que prendem num choque o leitor e se gravam na sua memória. Esse é um dos efeitos de recepção mais poderosos que seduzem o leitor da sua obra. Poderia citar uma infinidade de frases suas que entraram para o repertório de qualquer leitor de cultura média e midiática. As frases de Nelson Rodrigues são moldadas numa retórica inconfundível, pois jogam provocativamente com o paradoxo e a hipérbole, dispositivos retóricos típicos dos escritores exagerados e delirantes, caricaturais e satíricos. Acrescentaria o tom cabotino, a astúcia descarada com que manipulava e vestia os próprios ataques e críticas de que era vítima. Foi assim que fez bandeira do seu reacionarismo, da sua fama de perverso e maldito. Para os propósitos do meu artigo, no entanto, cito de imediato a frase que mais importa: “Toda unanimidade é burra”. Não é irônico que a posteridade puna o autor investindo contra ele a verdade de sua frase?
Pois, convenhamos, é isso que Nelson Rodrigues é ou se tornou: uma unanimidade. Ele que a vida inteira viveu provocando polêmica, atacando e sendo atacado, virando a mesa das ideias convencionais, fossem elas de direita ou de esquerda, populares ou impopulares, acabou empalhado numa das suas boutades mais ferinas. Hoje qualquer idiota, qualquer desses imbecis que babam na gravata (e aqui pululam, sabe o leitor informado, ecos de suas boutades agressivas e certeiras) escreve sobre ele apenas para irrestritamente louvá-lo. Flor narcisista hostil à indiferença ou ao coro unânime dos idiotas, Nelson certamente ficaria perplexo ao constatar que a posteridade diluiu ou apagou todos os traços complexos da sua personalidade provocativa.
Onde divisar o reacionário impenitente e autoirônico nessa figura anódina da unanimidade? Suas frases mais ousadas e desconcertantes, não importando no caso o que contivessem de verdade ou erro, dissolveram-se em lugares comuns inofensivos. Quem hoje não repete com tolo espírito provocativo que toda mulher gosta de apanhar? Salvo as neuróticas, claro, correção que fez em tom ainda mais provocativo, acentuando assim o tom corrosivo da boutade. Que esquerdista de idas eras, que antes o demonizava, não se apressa hoje a celebrar sua obra, seu destemor politicamente incorreto, empurrando assim para o fundo do esquecimento todo o ódio, não raro justificado, que inspirava às forças progressistas que durante a ditadura amargavam repressão, censura e medo?
Por essas e outras, prefiro celebrar o centenário de Nelson Rodrigues em tom divergente. Para começar, sinto-me à vontade para qualificar meus elogios, acentuando assim, na contracorrente, alguns dos seus erros e insuficiências que o espírito de unanimidade tende a empurrar para debaixo do tapete. Afinal, nunca o demonizei, nem quando fui de esquerda e companheiro de viagem de muitos comunistas. A grandeza e a permanência da obra de Nelson prescindem desses artifícios maniqueístas ou simplesmente levianos tão correntes na história da nossa desmemória nacional.
Sinto-me à vontade para criticá-lo, como dizia, simplesmente porque nunca o demonizei, nunca incorri na intolerância cômoda de negá-lo, como tantos dos seus inimigos ideológicos, com as armas da ignorância. Pois acreditem os jovens de hoje, que conhecem apenas o Nelson Rodrigues da unanimidade, que ele foi duramente combatido, não raro com bons bocados de razão, que foi confundido com o pior espírito reacionário da intelectualidade brasileira. De resto, ele, afeito ao combate e à negação, provocava esse tipo de intolerância convertendo-o em matéria de crônica provocativa. Bastaria lembrar personagens hilariantemente satíricas como a estudante de psicologia da PUC, o padre de passeata, D. Hélder olhando para o céu apenas para prevenir-se da chuva etc, Alceu Amoroso Lima impiedosamente ridicularizado no seu suposto catolicismo carola e hipócrita. A seara é fértil e o leitor deslumbrado pela obra e a personalidade de Nelson, o que não é o meu caso, pode à vontade preencher as muitas brechas da minha ignorância.
A unanimidade que cerca a obra de Nelson Rodrigues, e isso não é de hoje, representa, entre outras coisas negativas, a nossa inconsciência social e ideológica, a leviandade com que vivemos e esquecemos, a inconsistência de nossas supostas convicções que hoje converte em vaca sagrada o inimigo ontem demonizado, que hoje canta loas ao gênio que era ontem um autor pornográfico e um reacionário desprezível. Já me cansei de ler em qualquer crônica ou artigo de louvor a Nelson a exaltação do seu gênio, o primor irretocável de tudo que escreveu, desde a peça teatral mais injustiçada à crônica de futebol mais banal. Aliás, ontem mesmo li num blog um artigo exaltando o dom profético de Nelson como cronista de futebol.
Fazendo justiça à história documentada, também a Nelson, cuja glória prescinde de distorções do tipo das que acima assinalei, ponhamos os pontos em alguns is. Antes de tudo, o Nelson glorificado pela posteridade é o Nelson jornalista, o autor das crônicas e contos cujo estilo inconfundível e até repetitivo acima grosseiramente esbocei. Aludo ao Nelson politicamente incorreto, ao provocador dotado de raro talento para a frase de efeito. Investindo sua retórica afiada pelo paradoxo desabusado e o descaso diante de qualquer senso de propriedade e medida, Nelson desafiou todas as unanimidades, sobretudo as progressistas, ou assim consideradas no auge da sua militância de jornalista polêmico. Fulminava não apenas as esquerdas em geral, mas também o poder jovem e a liberação dos costumes que pipocaram nos turbulentos anos 1960.
Confesso admirar retrospectivamente a coragem com que investiu contra todas essas modas, tendências e poderes. Como todavia somos o país da desmemória, da futilidade que com uma mão hoje inverte o que a outra ontem denunciava, convém lembrar que foi muitas vezes inescrupuloso e desonesto. O Nelson que habilmente diluiu seu reacionarismo em folclore, seu apoio à ditadura militar em timbre de personalidade, escreveu crônicas de louvor aos ditadores nacionais no auge dos anos de chumbo. Dizem que, no caso, adulou os ditadores para salvar o filho, Nelson Rodrigues Filho, dos cárceres da ditadura. Aliás, esta foi uma das ironias trágicas de sua vida. Ele, um dos raros intelectuais de poder que emprestaram apoio público e constante à ditadura, acabou castigado pelo destino, ou outro nome acaso menos inconveniente, que converteu seu filho amado em militante da luta armada contra o regime militar. Também perseguiu impiedosamente nas suas crônicas as poucas vozes liberais e católicas que ousavam e tinham a coragem de criticar os excessos da ditadura num momento em que todas as nossas liberdades civis estavam amordaçadas. O leitor que se der ao trabalho de folhear um livro como O óbvio ululante (Uma das suas frases, aliás, que viraram chavão), facilmente verificará que Alceu Amoroso Lima e Dom Hélder Câmara eram as vítimas preferenciais dos seus ataques.
Muitos dos ataques e polêmicas desencadeadas por Nelson Rodrigues contra figuras públicas eram inspiradas por motivações mesquinhas. Nem sempre ele as explicita. Mas Nelson era tão descarado no seu narcisismo sem freios, na sua personalidade de menino perverso, que muitas vezes nem se peja de expor essas motivações mesquinhas. Derivavam, não raro, de alguma crítica contra ele ou sua obra. Como tantas vacas sagradas da nossa cultura (pensem em Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Paulo Francis, Glauber Rocha, Caetano Veloso etc), não tolerava que lhe negassem o gênio ou lhe rebaixassem a grandeza. Deixa clara, por exemplo, a razão ou uma das razões de sua perseguição implacável a Dom Hélder, reduzido a imagens caricaturais de fato deliciosas, mas cruéis e, no contexto em que foram veiculadas, no mínimo inoportunas. O mesmo se repete com relação a Alceu Amoroso Lima, Drummond, Guimarães Rosa e Chico Buarque. O leitor curioso pode ainda consultar o capítulo de um livro hoje raro que Paulo Francis dedica a ele e Gianfrancesco Guarnieri. Refiro-me a “Impressões de Nelson Rodrigues e Guarnieri”, incluído no livro Opinião Pessoal.
Assim como importa distinguir a obra e a biografia a propósito da passagem do centenário de Nelson Rodrigues, importa igualmente sublinhar o processo inverso, isto é, lembrar de passagem a glória momentânea de alguns autores revolucionários ou de esquerda cuja distinção literária foi fruto exclusivo de fatores biográficos, mais precisamente ideológicos. Aludo a escritores e artistas cuja importância estética esgotou-se tão logo foram superadas as circunstâncias históricas de que dependia o valor de suas obras. Não citarei nomes. O leitor esclarecido pode facilmente indicar vários dentre os que tenho em mente. O fato é que, tão logo se esvaziaram como símbolos de arte politicamente revolucionária, de resistência à ditadura e outros fatores de duração contingente e extrínsecos à qualidade autonomamente estética da obra, todos mergulharam no poço da obscuridade merecida.
Não é evidentemente o caso de Nelson Rodrigues. Por isso embirro com esse clima de unanimidade diluidor da própria força e complexidade da sua obra. O Nelson reacionário, cabotino e tudo mais que de negativo se possa lembrar acerca do homem, este passou, ou algum dia passará. O que fica é a obra, volto a chover no molhado. O que importa reter e justamente louvar é o cronista e o contista excepcionais e acima de tudo o dramaturgo. Sei que não há como rigorosamente dissociar uma coisa da outra, a biografia da obra, já que a personalidade poderosa e marcante do autor projetou-se indelevelmente na obra. O que não engulo, e isso justifica meu artigo polêmico, é essa unanimidade póstuma onde os inconscientes e idiotas o aprisionam. Por isso concluo o artigo repetindo a frase que anula toda essa consagração ofensiva vomitada pelos idiotas sem opinião: “Toda unanimidade é burra”.
Recife, 25 de agosto de 2012.
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