quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Natalino e as meninas



O Amor nos Trópicos – Natalino e as Meninas
Severo Machado
Tudo começou com Lolita. Não a original, a de Nabokov, mas a de Kubrick. O mundo inteiro se recompôs como num sopro de iluminação e atordoamento. Amei quase sempre mulheres da minha idade, algumas até mais velhas. O que me tocava e inspirava no convívio de meninas era a imaginação contagiante que irradiavam. Nada além disso. Mas então veio a descoberta de Lolita, a obsessão comovente e patética de Humbert Humbert. E a verdade do amor que desde então passou a reger minha vida é fruto talvez de uma pura transfiguração do acaso. Ou talvez não, talvez ela em mim latejasse distante e impronunciável. Talvez já me possuísse naquele dia em que seduzi minha prima, que tinha apenas nove anos. Talvez pulsasse insensível na adoração cega com que cultuava Marilyn Monroe.
Luís Carnome, meu amigo e confidente, achava isso um absurdo. Como associar minha pedofilia ao culto de Marilyn? Marilyn é um mito gerado pela imaginação adulta, ponderava, típica da paixão por mulheres adultas. Mais que amigo e confidente, Luís era meu guru em matéria de cinema. Tudo sabendo de cinema, cultuando o cinema como passei a cultuar o corpo das meninas depois da revelação vinda de Lolita, Luís era quase sempre minha última palavra sobre a realidade paralela de Hollywood. Por isso fiquei abalado. Teria ele razão? Observe, Luís, que a raiz do erotismo de Marilyn é infantil, assim como o culto que lhe emprestamos é de natureza pedófila. A sedução poderosa e intemporal que ela exerce deriva do fato de traduzir no corpo e na linguagem uma expressão desconcertante de menina sensual, dengosa e... não sei, juro que não sei exprimir o essencial. A sedução de Lolita, ou de Marilyn é inefável, indizível como tudo que cativa e domina para além da compreensão racional.
Mas é a vida com sua força cega e irreprimível quem comanda o roteiro insensato da história humana que jogamos e sempre perdemos. Foi num domingo de sol, dentro de um antigo casarão de Salvador, que a vi pela primeira vez. Quero dizer: não ela, mas ela guiando as duas filhas presas a cada uma das mãos. A intuição brusca e fugaz cegou-me no meio da sala: estou perdido. Depois dela, com ou sem ela, nunca mais serei eu em mim como até agora me sei e me vivi e me enganei na suposição de me saber. O pior foi mais tarde descobrir que a perdição maior viria não dela, mas das duas filhas. Mal passou um mês e já nossas vidas eram tempos ajuntados e confundidos. A pedofilia, essa flor de obsessão que me consome, novamente latejava nos desvãos do corpo, vibrando quase inaudível nos subterrâneos da latência onde a carne respira sua condenação inconsciente. Eu então nada sabia da paixão que para sempre atou minha vida aos destinos de Ana Lúcia e Ana Sofia. Meu amor pela mãe, Ana Sílvia, era tão completo e absorvente que me cegava para tudo pulsando à órbita dos fatos palpáveis. Os que dizem que o amor é cego ignoram a real cegueira da razão.
Vivíamos brincando. Eu e as meninas brincávamos com a delícia e inconsciência dos inventores e habitantes primevos do paraíso. A consciência, esse graveto errante vagando nos campos sem fronteira da irracionalidade, somente a pouco e pouco se foi constelando num atormentado horizonte de desejos. Pingou aqui uma gota vibrante, mais além um noturno bater de portas, e foi avançando para o casulo onde as meninas dormiam respirando um sono de completo abandono. Nas noites de calor, a própria Ana Sílvia dizia: vá dormir com as meninas, meu amor. No quarto delas, com ar condicionado, não entram muriçocas. Eu odiava muriçocas e ainda hoje não suporto a picada de uma. Passei a dormir num colchão estendido sobre o assoalho entre as camas de Ana Lúcia e Ana Sofia. Ficava de joelhos ao pé da cama, um tempo sem memória contemplando cariciosamente a beleza daqueles corpos belos, inconscientes dessa selva em que nos consumimos, tão ainda pequenos, mas fadados à medida e gasto da nossa condição adulta. Algum tempo depois, tremendo de medo e prazer, passei da contemplação cariciosa ao toque deslizando suave por todo o corpo das minhas pequenas deusas. Um dia Ana Lúcia acordou enroscando-se feito uma gata, toda arrepiada pelo toque de minha mão: Vai embora, Natalino. Me deixa sozinha no quarto. A voz saiu-lhe grave e envolvente, como voz de mulher. E me fui atordoado e entrei no quarto de Ana Sílvia onde a possuí violentamente.
A curiosidade sexual das meninas se foi manifestando cada vez mais livremente. Queriam tomar banho comigo, dormir comigo, trepidar nas noites de rede suspensa na varanda. Sublimando penosamente meus desejos, domei-os numa clave de expressão lírica mesclando contos de fadas recriados no balanço rangente da rede, canções infantis e um despropósito de poemas tocados pela beleza e a infância de Ana Lúcia e Ana Sofia. E tudo isso em mim surdia e me sobressaltava num calor de excessos comunicados ao corpo de Ana Sílvia. Quanto mais amava e desejava as filhas, mais intensa e passionalmente possuía a mãe. Nosso gozo, um dentro do outro desavindo, era tão extremo e inefável que um dia desabei suado sobre o assoalho úmido e comecei a chorar num completo abandono de mim. A dor do prazer era tanta, tanto o desamparo da carne iluminada, que eu apenas gemia entre lágrimas: você quer me matar, você quer me deixar louco. Ela me tomava nos braços entre lágrimas de comoção e lá ficávamos largados de pura felicidade. Nenhum homem gozou como gozei em Ana Sílvia.
Em certa tarde eu lia na rede da varanda quando Ana Sofia entrou completamente nua, recostou o corpo na parede e ficou de costas para mim simulando contemplar o mar de Salvador. A beleza daquele corpo de menina, paralisado como uma oferenda ao alcance da minha mão, ainda hoje me atravessa a memória fisgada de luz e dor. Quase sem voz, pois o tuc tuc do coração me subia pela garganta, disse apenas: meu amor, entre e se vista.
Ana Lúcia, mais carinhosa e expansiva, era um tormento ainda maior. Vivia rolando nos meus braços. Muitas vezes, voltando da praia pendurada no meu ombro, corria para trás das portas para logo em seguida surpreender-me em algum recanto do apartamento. Quando menos esperava, puxava-me o calção e ria deliciada diante do meu corpo nu. Se eu entrava no banheiro, punha-se a forçar a porta querendo porque queria entrar para tomar banho comigo. Meu tormento era longo, continuado e delicioso. Nunca ninguém viveu inferno assim celestial como o que provei. Em meio a tudo, fui cada vez mais temendo perder as forças que me garantiam energia sublimadora. A paixão de possuí-las eu a continha procrastinando o gozo sonhado para um ponto indefinível do futuro, para o dia em que rebentassem na plenitude da maturação biológica.
Que fantasias tecem as linhas e cores das tatuagens impressas no corpo feminino? Um dia, possuindo Ana Sílvia, disse-lhe da minha fantasia de nela gravar um sinal do meu amor e posse. Pouco mais tarde surpreendeu-me exibindo na altura do ventre uma flor tatuada contendo as letras L e N, isto é, Luiz Natalino. Comovido, beijei-lhe o ventre e a tatuagem repetidas vezes. Logo isso bastou para que eu desandasse a desejar minhas iniciais impressas na carne de Ana Lúcia e Ana Sofia. Tanto fiz que convenci Ana Sílvia, que não precisou gastar verbo e artimanha para persuadi-las a transportar minhas iniciais no corpo. No pé direito de uma e no esquerdo da outra foram afinal gravadas as letras L e N. Correu-me por dentro um inconfessado poder de senhor de um reino, de um castelo inviolável ou um latifúndio amazonense.
Ana Sílvia deu para falar de uma vida solidamente comum. Quero dizer, uma vida casada, com papéis passados e assinados em cartório. Se nos amávamos tanto, se eu era tão feliz na companhia das meninas, por que não vivermos como uma família? Precisava recompor sua vida com as filhas em bases mais estáveis. Compreendia seus sentimentos e aspirações. Também eu queria o que ela, retesada no seu orgulho de mulher independente, confessava um tanto constrangida. Mas o medo e o desejo de possuir as meninas num futuro incerto, porém irreprimível, findou por anular qualquer possibilidade de amor casado e continuado.
Além de bela e sensual, Ana Sílvia vivia num mundo de homens. A natureza da profissão que exercia propiciava-lhe rotineiramente a oportunidade de viajar sozinha, frequentar congressos e encontros científicos, privar da intimidade de acadêmicos sedentos de aventura e até de amor refeito sobre a terra devastada das relações traídas e rompidas. O amor incerto, a insegurança sem solução previsível, tudo isso e outros imponderáveis cavaram a separação e o desenlace doloroso que findou por transportá-la para São Paulo. Soube mais tarde que casou com o homem com quem me traiu durante meses. Sabia da traição e de imediato tudo fiz para remendar nossos cacos e salvar nosso amor. Atormentada por um conflito enraizado numa formação religiosa inflexível, refugiou-se na vivência esquizofrênica de duas realidades intoleráveis: a traição efetiva contra o imperativo da fidelidade puritana. Ana Sílvia fora educada num colégio de freiras, além de criada por uma avó cujo mundo tradicional e fechado lhe impôs prisões morais inexistentes na realidade dos costumes que pipocaram a partir da década de 1960.
Muitos anos passaram enquanto errei por aí e pelo mundo. A compulsão por meninas acelerou-se a meio das minhas lutas vencidas para esquecer Ana Sílvia, Ana Lúcia e Ana Sofia. Talvez Ana Sofia me amasse ainda mais que a irmã, mas sua natureza retorcida, de expressão emocional atormentada, turvava-lhe a dor da minha perda. Era nisso igualzinha à mãe, instável como clima inglês. A imagem deriva de lá, da própria Inglaterra que, abaixo delas, amo acima de tudo mais. Ana Lúcia, porém, me perdia e pedia à distância com o mesmo desembaraço amoroso do Éden que compartilhamos em Salvador. Por isso escrevia-me cartas de dor e amor intensos na sua letra ainda à cata de uma forma madura, no traço tateante de menina. Suas cartas, tão simples e nuas, são as declarações de amor mais agudo e pungente que jamais recebi de uma mulher. Depois de as ler e chorar ferido no meu completo desamparo, eu mergulhava na solidão e no frio cortante das ruas inglesas. Andava horas a fio, sem direção ou propósito, salvo o de me castigar na minha dor sentindo o frio roer-me os ossos desertos, punir-me a carne surdamente gemendo a dor do amor irreparável.
Voltei por fim a Salvador onde nem mesmo a beleza dócil e despudorada das meninas me alivia a condição de completo desenraizamento, o desterro de judeu errante. Odeio o odor vindo das ruas, das águas sujas escorrendo pelas ladeiras ou empoçadas nas sarjetas. Odeio esse cotidiano trepidante e ruidoso, a incivilidade crônica do baiano, pior que a do brasileiro típico. Não tenho família, odeio a simples ideia de família, e nada me prende a nada. A beleza dócil e despudorada das meninas é ainda eco ou prolongamento do falo patriarcal, do escravismo que nos feriu a alma e o corpo com vincos indeléveis. A beleza dócil e despudorada excita o macho e até se deleita dobrada por sua animalidade predatória. Tornei-me uma máquina fria, movida a ódio e fantasia destrutiva. O ódio represado é tanto, de tão penosa respiração, que às vezes preciso errar dentro da noite deserta. Chego enfim à praia e brado embriagado contra as ondas invocando um deus punitivo: que venha outro dilúvio, a second coming, e tudo reduza a pedra e pó. Que sobrevivam apenas minhas deusas inconsoláveis castigadas pela condenação de me chorar para o resto dos tempos.
Durante seu exílio, tudo aqui ficou pior. Você porém ficou ainda pior que tudo. Palavras de Luís Carnome, a quem o acaso me junta num bar na noite da Barra. Mais ainda que meu guru em matéria de cinema, Luís é um sociólogo rico, um dos raros que souberam usar os instrumentos dessa profissão sórdida para enriquecer. Por isso costumo chamá-lo de Midas de Natal, terra de onde veio. Tudo que a sua sociologia toca transforma-se em pesquisa de opinião, estudo de mercado, assessoria, leite sugado das tetas violentadas do Estado. Em suma, dinheiro e poder. É humilhante o contraste entre seu poder e sucesso e meu fracasso de hedonista estoico, se é possível abusar assim de um oximoro.
Sabe do grito de guerra que adotei? Vamos às profissionais. Estou farto de mulheres complicadas infernizando-me a vida com um trem de ex-maridos, filhos delinquentes e suas opressões intoleráveis e miúdas. Faz meses que transo apenas com profissionais. São limpas, gostosas e caras. Mas posso pagar e quero, aliás, pagar algumas para você. Luís falava quase sem pausa, tomado daquela ansiedade que por aqui confundimos com alegria. Sua vida moral dissolvia-se ante meus olhos inclementes, mas como não invejar um homem que cai entre risos voltados contra si próprio? Prefiro as meninas de classe média prostituídas não por necessidade, mas por prazer e antes de tudo por escravização ao deus do consumo soberanamente regendo a vida dessas baratas tontas esvoaçando no shopping center.
Não te conto a última, Natalino. Estava em São Paulo, às voltas com um desses congressos insuportáveis de acadêmicos e políticos, quando me bateu um desejo intenso de transar com uma puta de classe média. Liguei para um corretor, eufemismo criado para designar cafetão de classe, pois existe classe até na rede dos bordéis. Perguntou-me se não gostaria de transar com duas irmãs. Topei no ato. Você não imagina a beleza delas, Natalino. Mas talvez não lhe interessassem. Tinham 18 e 20 anos. Velhas demais para mim, cortei enquanto ele caía na gargalhada. Vivi uma noite de rei. As meninas eram completas, insaciáveis e faziam de tudo com um prazer e um abandono de tudo como nunca gozei em nenhuma puta ou mulher. Já exaustos e suados, deslizei sobre seus corpos para beijar-lhes os pés. Você sabe que sou tão pedófilo quanto você, disparou o trocadilho novamente entre gargalhadas. Sabe da maravilha que descobri? Tinham duas tatuagens gravadas: uma no pé direito, outra no esquerdo. Numa a letra L, noutra a N. Mais tarde pensei casualmente: poderiam ser as iniciais de Luiz Natalino, emendou outra gargalhada. Se você tivesse tido tal sorte, encontraria afinal um motivo para invejá-lo, arrematou afrouxando nova gargalhada. Estava já tão bêbado que mal notou meu estado de miséria às bordas do desespero. Voltei para casa chutando pedra, tomado por uma dor absolutamente indizível. Foi então que me veio a ideia do incêndio. Parei num posto e comprei um bujão de gasolina. Dentro de alguns minutos tudo isso será cinzas. E ninguém saberá, sequer desconfiará que elas me consumiram e me pisaram e por fim a isso me reduziram: essa cinza fugaz dissipada na brisa noturna de Salvador.



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