segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Revisitando Natal



Escrevo na sala do Hotel Belo Horizonte, onde estou hospedado com Bella desde ontem. Fizemos a viagem de carro. Foi tranqüila e relativamente rápida. Receando contratempos ao longo do percurso, já que interminavelmente prossegue a obra de duplicação da rodovia BR 101 entre Pernambuco e o Rio Grande do Norte, cuidamos de sair cedinho. Além disso, gostamos de pegar a estrada logo que rompe o dia.
Embora alertado previamente sobre a extraordinária expansão urbana de Natal, sobretudo de sua rede turística, estou de fato impressionado com o que vejo, não obstante tenha ainda visto tão pouco. Infelizmente chove. Começou chovendo logo que entramos na cidade e desde então não desfrutamos sequer de uma trégua de sol. Hoje cedo, logo que acordamos, o tempo estava apenas nublado. Por isso aproveitamos a beleza úmida da manhã caminhando entre a Via Costeira e o mar. À luz do dia, tivemos uma noção mais nítida da paisagem litorânea pontilhada de hotéis. Mas logo a chuva voltou a cair sem pausa e assim seguimos para o salão onde nos servimos de substanciosa e variada refeição matinal. A primeira conversa que ouvi foi em inglês, a segunda em francês. Em 1977, quando aqui morei durante uns meses de economia penosa, precisaria ir ao cinema para ouvir essas línguas intrigantes dentro do monolinguismo nordestino. Hoje são ouvidas e lidas na nossa paisagem globalizada. Espanhol, italiano, alemão e notadamente inglês são moeda corrente no circuito turístico e sites de prostituição, uma das mercadorias mais requisitadas por turistas fascinados pelas lendas e evidências da sensualidade tropical expostas num reino sem governo e vergonha.

É bela a paisagem deserta. O mar à minha frente, recoberto de nuvens sombrias, semelha um horizonte congelado. Imerso na contemplação de um mundo sem movimento, liberto do elemento humano, recaio num desejo que ao longo de minha vida me tem poderosamente seduzido. Aludo ao sortilégio de uma serenidade metafísica que nunca alcancei plenamente traduzir em palavras, muito menos fruir enquanto estado existenciado. Se posso de algum modo expressar esse ideal de serenidade, diria ser o que os estóicos designam como ataraxia. Seria um estado de imperturbabilidade do espírito, de uma serenidade tão pura e ascética que nele nossa vontade e desejo se anulariam alcançando uma região incógnita na qual cessariam desejo, dor, perda e ressentimento. Penso que nosso obscuro desejo de morte, o deus Thanatos da mitologia grega, como lembraria Freud, também traduziria aproximadamente esse ideal de imperturbabilidade, ou ainda o que os budistas designam como nirvana.

Outro grande prazer que Natal me propicia: nenhum vestígio de festa de São João em toda essa área turística onde transito. Saio às ruas com Bella caminhando tranquilamente à beira mar. Passamos à frente de uma interminável sucessão de hotéis e pousadas isentos de foles de sanfona e ruído de fogos. Melhor que tudo, nenhuma agregação festeira, nenhum vestígio de fogueira queimando, o que representa uma bênção para minha rinite alérgica.

Visitando João Pessoa em dezembro passado, e agora Natal, depois de uma ausência tão prolongada, reitero uma constatação desoladora para Recife. Ou antes de tudo para mim. Salta aos olhos do observador isento a degradação social e urbana desta confrontada às capitais nordestinas mais próximas. É fato que as aproxima o mesmo legado histórico-social iníquo: resquícios da tradição colonial e escravista, padrões persistentes de extrema desigualdade social. Apesar da matriz histórica comum, observa-se nestas cidades de menor porte, Natal e João Pessoa, um ritmo de expansão urbana e turística muito menos predatório e portanto mais consistente do que o observável em Recife. Enquanto nesta a violência e a paranóia social estão amplamente difundidas, somadas a toda sorte de anomia urbana, em João Pessoa e Natal a atmosfera vivível e palpável é nitidamente melhor. É certo que o porte mais reduzido de ambas já por si atenua problemas sociais que tendem a ser menos controláveis numa cidade mais vasta e complexa como Recife. À parte esse diferencial, João Pessoa e Natal ostentam evidências de políticas urbanas, turísticas e imobiliárias claramente superiores. Aliás, talvez pouco dessas mudanças visíveis seja fruto de políticas propostas e executadas por agentes sociais institucionalmente definidos. De qualquer modo, importa reconhecer que, ao acaso ou deliberadamente, João Pessoa e Natal vão bem melhor que Recife.

Reservamos, Bella e eu, a primeira parte desta manhã para uma aprazível caminhada entre nosso hotel e o Morro do Careca. Entretivemo-nos tirando fotografias, documentando a bela paisagem natural e urbana e até conhecendo um ou outro tipo humano pitoresco. Nossa grande descoberta acidental foi o Elvis Presley de Juazeiro do Norte – terra do Padim Ciço, como orgulhosamente nos lembrou. Elvis chamou-me a atenção por ser um homem já idoso com longa e grisalha cabeleira encimada por um chapéu de palha em cujo centro li o nome do lendário rei do rock. Bastou-me assinalar este detalhe para que de pronto desatasse a história de sua vida com essa abundância verbal tão característica dos nordestinos.

O pai, homem alegre e festeiro, era fã de Elvis, enquanto a mãe, romanticamente passional e sombria, era devota de Nélson Gonçalves. Foi este o cerne turbulento da vida conjugal que compartilharam até a morte do pai. Se este se punha a ouvir a música ruidosa de Elvis, a mãe enfurecida logo reduzia a cacos os discos de vinil de onde saltavam os ritmos trepidantes do roqueiro. Se no entanto a mãe enroscava-se nos acordes e melodias passionais de Nélson, o pai vingativo ajustava as contas domésticas na mesma moeda e outra leva de discos de vinil era reduzida a frangalhos. E assim, inconciliáveis e turbulentos, viveram infelizes até o dia em que a romântica fechou os olhos do roqueiro. Mas deste reteve uma relíquia inseparável, símbolo do amor que, costurado na união turbulenta, converte o conflito amoroso em expressão de elo insolúvel e indissolúvel. Uma variante romântica do amor eterno enquanto dure, como escreveu o poeta.

Dado que lhe emprestamos ouvidos receptivos pontuados por comentários divertidos, Elvis grudou-se a nós detendo nossa marcha com nova enfiada de episódios engraçados, alguns literalmente desastrosos. Empolgou-se de tal modo que dispensou sem hesitar dois clientes potenciais para não sacrificar ou simplesmente interromper o fluxo de suas narrativas mirabolantes. Como sei que esses tipos nordestinos são capazes de tagarelar sem pausa um dia inteiro, encontrei um meio de sustar-lhe a fala torrenciosa e retomar meu passeio com Bella. No percurso da volta cruzamos novamente com ele, que repegou a conversa com ânimo inalterável. E lá me vi eu novamente cortando-lhe o verbo antes que se apropriasse da nossa manhã, quem sabe do nosso dia. Sabem os leitores de Macunaíma que essa tradição de verborréia está sintetizada no dito popular que alude ao bebedor de água de chocalho. Foi pensando nisso que logo cuidei de silenciar o chocalho de Elvis. Imagine-se os estragos ambientais que um tipo desses não causaria se tocasse guitarra elétrica.

Ah, esqueceu-me anotar que a relíquia de amor preservada pela mãe do roqueiro de Juazeiro do Norte foi o fragmento de um dos discos de Elvis Presley. Tratava-se evidentemente de um dos muitos que ela destruiu durante seus costumeiros excessos de amor. Elvis filho um dia perguntou à mãe: por que não joga isso fora? Para que guardar restos de alguém que já morreu, vestígios de um mundo sem volta? Ela prontamente retrucou ofendida alegando reter naquele fragmento imprestável a mais bela memória do marido perdido. Bem, concluo eu, cada um retém a memória de amor possível, ou merecida.

2 – Levo Bella à faixa litorânea mais antiga e central da cidade. No fundo da paisagem que descortino da orla à altura da casa onde morou Henfil, espanta-me a visão imponente da Ponte de Todos. É uma impressionante obra de engenharia erguida sobre as vastas águas do Rio Potengi. Para ser exato, no ponto onde o rio deságua no mar. Mas não a cruzamos, pois nosso intento era encontrar ainda aberta a Fortaleza dos Reis Magos. Embora tenhamos chegado antes das 17h, encontramo-la fechada, suas bordas batidas por altas ondas que por pouco não nos deram um banho imprevisto. Por isso demoramos apenas o suficiente para tirar algumas fotos.

No percurso da volta, antes de alcançarmos a Via Costeira que bordeja o hotel Belo Horizonte, estacionei na Praia dos Artistas. Bella estava muito curiosa para conhecê-la, pois foi um dos meus endereços no ano remoto de 1977, quando aqui morei ou vaguei durante cerca de um ano. A paisagem da orla está tão profundamente transformada que foi impraticável localizar a casa onde Avelino me acolheu naquele ano tão incerto de minha vida. Lembro-me de que a casa ficava a meio da colina numa área povoada por gente humilde, mas então honesta e pacata. Longe de mim presumir que já não seja uma coisa nem outra. O que duvido é que seja ainda a área de pobreza segura que conheci. Lembro-me até de que durante algumas madrugadas dormi de janelas abertas para o mar e o céu enluarado.

Um fato que me surpreendeu foi deparar a casa onde Henfil viveu com a fachada frontal e lateral basicamente inalterada. Como Bella não tem idéia de quem foi Henfil, embora conheça O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, precisei desenhar-lhe uma história compacta do Pasquim, dos anos 1970 sob a ditadura militar e das circunstâncias que propiciaram meu breve convívio com Henfil em Natal.

Estávamos já a alguns metros do hotel quando de súbito envolvemo-nos numa colisão com uma moto. À altura do Restaurante Abade, precisei fazer uma manobra perigosa para cruzar a Via Costeira e alcançar o estacionamento do hotel. Estava completando essa manobra quando senti um choque violento na porta direita. Mal me refiz do choque, temi pela segurança de Bella, que felizmente me disse não estar ferida. Depois de estacionar, subi a curta elevação que me separava da avenida e fui em socorro do motoqueiro envolvido na colisão. Como dirigia com o farol apagado, não tive como vê-lo, pois é escuro o trecho onde colidimos. Encurtando a história, tranquilizou-me verificar que nada de grave lhe acontecera. Embora a responsabilidade do acidente fosse dele, dispus-me a conduzi-lo a um hospital, no caso de precisar de atendimento médico. Disse-me haver sofrido uma pancada à altura do abdômen, que massageou durante alguns minutos. Refeito enfim, montou novamente a moto, com algumas avarias frontais, e foi embora. Voltando ao carro, constatei que o impacto da colisão desfigurou-lhe a faixa lateral. Que fazer? Embora dirija com tanto cuidado, acabei vítima da imprudência alheia.

E assim me vou e assim nos vamos de volta a Recife. Deixo Natal, depois de uma visita de quatro dias, sem reencontrar sequer um dos poucos amigos que aqui tenho. Pedro Vicente está viajando. Há muito perdi o rastro de Hermano Ferreira Lima, com quem trabalhei durante meses no projeto local sobre a história da agricultura no Brasil, no ano remoto de 1977, coordenado nacionalmente por Ieda Maria Linhares, e regionalmente por Guillermo Palácios. Como decidimos incluir no projeto um trabalho de treinamento intelectual dos pesquisadores e estagiários contratados, dirigi então uma série de seminários baseados na leitura de obras de Luís da Câmara Cascudo, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Celso Furtado. Tempo e memória, em mim conciliados, são parte da bagagem que transporto na viagem de volta a Recife.
Natal, 23 a 25 de junho de 2009.

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