segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Deus e o Ateu
Era uma vez um ateu que, como todo ateu, não acreditava em Deus. O ateu costumava argumentar mais ou menos assim: como acreditar que Deus existe se o mundo é tão imperfeito, se o mundo é esse vale de sofrimento e injustiça? Como conciliar a existência de Deus com a dor dos inocentes, o castigo dos justos, quando tantos injustos não apenas escapam à justiça e à punição, mas também são celebrados, admirados, invejados etc.? Assim o ateu pensava e assim seguiu pela vida indiferente a um Deus que nunca diante dele se manifestou.
Talvez Deus não tenha mesmo como explicar as interrogações dolorosamente verdadeiras do ateu. Mas os tempos passaram e eis que um dia, às vésperas de completar 58 anos, o ateu teve a ventura de conhecer uma linda jovem de 24 anos, de olhar iluminado, por vezes infantil e travesso, um modelo de perfeição movente. O ateu suspirou, já calejado de descrença, e voltou para casa pensando: por pouco não vi Deus existindo nessa mulher. Os dias foram passando, os destinos se consertando (ou concertando?) e aquela mulher foi como que milagrosamente entrando nos reinos solitários do ateu, que aliás um dia compôs um poeminha assim:
Se eu fosse outros, não eu
fosse o que sonho e não vejo
fosse na igreja o ateu
fosse no teu, meu desejo.
Mas nada sou, salvo só
o que na sombra pelejo.
O que eu sou de melhor
é o que sonho e não vejo.
Mas isso, o poema acima, veio bem antes da mulher que se chama Beatriz. E os dias indo, os dias passando. E Beatriz chegando cada vez mais, iluminando cada vez mais a vida obscura do ateu, que aliás, esqueci de dizer, mentiu sobre sua idade. Temeroso de não conquistá-la, de perder qualquer chance de a amar, abateu 8 anos de sua idade real. E Beatriz vinha e o mundo cada vez mais se iluminava. Já às portas da revelação, o ateu tremeu diante de uma igreja, vacilou diante da Bíblia e disse de si para si próprio, ou para Deus próprio, ou dos outros: Deus, se Deus existe, está me desafiando, quer abalar uma vida de ateísmo sereno, de descrença sem drama e tormento.
Eis que ontem Deus decidiu desafiar o ateu no terreno em que este fincou as fundações de sua descrença. Deus decidiu revelar-se ao ateu dentro do materialismo deste. Como se dissesse: vou convertê-lo revelando-me a ele como matéria. Então Deus convocou o anjo arquiteto e das mãos deste brotou um bloco de suprema matéria na forma da mulher que se chama Beatriz. Não bastasse isso, que seria já tanto, Deus transportou-a numa nuvem à luz da tarde de verão e no silêncio miraculoso do dia depositou-a linda e nua na cama solitária do ateu. Quando deu por si, ou pelo milagre, o ateu tocou e acariciou aquele esplêndido bloco de matéria feita mulher, de divindade transfigurada em beleza humana e tangível, e então ele perdeu de repente todas as forças da descrença, toda a fortaleza granítica do ateísmo que o sustentou durante a vida inteira.
Então o ateu humildemente curvou-se, ajoelhou-se diante de sua deusa e pediu a Deus que o perdoasse e o poupasse. Depois um arrepio ou temor correu-lhe a alma num átimo e ele, como que desamparado no jardim das tormentas, se indagou pequenino como naquela manhã remota em que os céus de Igarapeba se fecharam sobre sua infância perplexa: meu Deus, e se for tarde? Mas não pôde sequer esboçar espanto ou relutância, pois um outro milagre desceu sobre sua cama e ele tropeçou bêbado no ar, rolou sobre os lençóis suados e caiu de baque sobre o piso vencido pelos estertores de um orgasmo como há muito não vivia e gozava. Foi quando Deus retirou-se para seus reinos impalpáveis. Sabendo porém da inconstância dos ateus, lançou-lhe Deus aos ouvidos sua última revelação: Vou, mas te deixo minha prova material, a encarnação humana de minha existência.
Dizem que desde então o ateu é visto nas ruas da cidade ajoelhando-se diante de paredes nuas, soprando vela nas trevas, catando estrelas cadentes nas águas dos mangues e caindo de joelhos diante dos esplendores de Beatriz que a tudo assiste iluminada e compassiva, acariciando a cabeça perplexa do seu amante ateu e dizendo assim como que num sopro de pacificação das águas: meu velhinho adorado endoidou de amor...
Fernando da Mota Lima – Recife, 12 de outubro 2006
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Para seu conforto, já que uma experiência similar nos produz esse contentamento solidário, o dilema do seu ateu também frequentou a existência pacata de outro. Um descrente que costuma, em tom de blague, responder quando indagado: sou ateu, graças a deus! Pois bem, nosso ateu buscou conforto nas sábias palavras de um outro, filósofo, que escreveu "O Espírito do ateísmo. Neste livro André Comte-Sponville passa aos desconfortados pela descrença que é possível a quem não crer usufruir de padrões de espiritualidade que não reclamam paternidade divina ou copyrigth.Desse modo, nosso ateu encontrou, pelas mãos de uma massagista, o caminho para usufruto da espiritualidade ao atingir alívio para suas dores cervicais. Liberto delas pode nosso ateu acreditar, sem controvérsias,assédio de dúvidas ou culpas,que os prazeres podem facultar o dom da espiritualide e vice-versa.
ResponderExcluirNando,
ResponderExcluirHá momentos na vida que a imaginaçâo, a beleza, a fantasia e uma serenidade apaixonada nos presenteiam com o que acabo de ler. Lendo você não posso deixar de ter sua imagem sempre tão poética e doce dentro da minha imaginação. É sempre muito gostoso ler você, em qualquer ocasião. Deve ser porque você tem o dom de nos transportar para mundos que poucos tem a coragem de ir.
Um beijo,
Bella Monteiro.
Bella: Fico comovido simplesmente por ler seu comentário acima. A isso acrescento a intuição de saber quem é o anônimo que assina o comentário precedente.
ResponderExcluirFernando.