sábado, 23 de janeiro de 2010
Machado e Graciliano por Luciano Oliveira
Entre humor, rabugice e alguns entretons
Uma sucessão de acasos afortunados cruzou minha vida com a de Luciano Oliveira e desde então temos nos divertido imensamente juntos. Não vou reconstituir tais acasos apertado nos limites de um breve prefácio de resto singular. Digo singular por estar absolutamente convencido de que, pela primeira vez na história editorial do Brasil - ou do mundo, corrigiria de pronto Julião Tavares entrançando as pernas sob a cadeira rangente – o prefaciador é que se beneficia do prefaciado. Importaria ainda ressaltar que Luciano é um verbo que costumo conjugar no plural, melhor diria no gerúndio: Lucianando. Pois sua mobilidade, antes de tudo imaginativa e sempre impregnada de humor, vela e desvela múltiplas camadas de personalidade e prática da vida. Antes de ir adiante, conviria piscar o olho para o leitor de Manuel Bandeira alertando-o para o fato de que estou apenas parafraseando um poema mínimo consagrado a Teodora.
Agora vou adiante. Condensando num parágrafo o que intento acentuar na minha memória dos acasos felizes que me associam a Luciano, frisaria que de imediato me acerquei do sociólogo autor de um artigo sobre Cidadão Kane, celebrando assim sua cinefilia. Acerquei-me ainda mais do autor de Brasil via Paris, um imaginoso e penetrante ensaio, por isso infelizmente inédito, no qual ele traça alguns paralelos entre a cultura brasileira, em particular nordestina, e a francesa. O outro sociológico de Luciano, o que lhe rendeu notoriedade intra e extra-acadêmica como autor de livros e ensaios embasados em investigações empíricas e outros ossos do ofício, este ocupa lugar bem mais discreto na nossa amizade e na linha dos interesses intelectuais que prioritariamente compartilhamos. Mas mesmo nesta parte de sua obra o leitor atento tem pronta ciência de que não lê um autor de estilo convencionalmente acadêmico. Pois o fato é que ele, dotado de virtudes literárias irreprimíveis, reveste com forma inventiva e singularmente sua os assuntos mais áridos catalogados nos escaninhos acadêmicos como sociologia do direito, ciência política, criminologia, jurisprudência e outras especialidades solenes.
Um dia Luciano me trouxe das margens do Sena uma frase assinada por Alphonse Allais. Veio enquadrada em uma moldura que conservo em lugar visível de minha sala.A frase: “Les gens qui ne rient jamais ne sont pas des gens sérieux”. Se Allais tem razão, de minha parte não duvido, Luciano é um autor muito sério. Recolheu num vasto registro da expressão humana, que vai da chanchada brasileira a Machado de Assis - ele cruza rotineiramente esses extremos da cultura isento de qualquer preconceito - a sábia lição de que a existência humana seria intolerável apartada do riso que a reinventa e lhe alivia o fardo. Mas presumo ser esta uma lição enraizada na própria disposição temperamental espontaneamente encaminhando-o para o humor e o riso que tudo transfiguram e iluminam a realidade e suas materializações mais sisudas com tons e entretons antes neutralizados ou obscurecidos. Penso que é bem essa disposição temperamental, evidentemente somada a seu olhar de leitor penetrante e interrogante, que explica algumas das vias através das quais aproxima dois escritores na aparência tão divergentes.
Depois de muito debruçar-se sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho e a do Rabugento de Palmeira dos Índios, eis que um dia se dá conta de que obscuras linhas convergentes aproximam autores tão na aparência canonicamente separados. E o que mais surpreende é o fato de empenhar-se na tarefa de extrair ou trazer à luz a componente de humor subtraída das leituras correntes de Graciliano Ramos. Talvez a primeira pista que lhe tenha ocorrido se prenda à figura sórdida de Julião Tavares. Julião, bem sabem os leitores do velho Graça, é o sedutor vulgar que finda por subtrair Marina das garras devaneantes de Luís da Silva, o atormentado narrador de Angústia, tão exasperado e corrosivo quanto o protagonista de Notas do Subsolo, de Dostoiévski.
Com seu olhar clinicamente cômico, também por vezes cinicamente cômico, imagino Luciano relendo Angústia dentro de uma certa manhã ensolarada de Recife. De repente, uma luz insofreável rebrilha no centro do seu olhar matreiro. Eis que defronta Julião Tavares, com as pernas entrançadas sob a cadeira, vertendo disparates sobre as grandezas ilusórias de Maceió. O tom aparente do narrador – Luís da Silva, evidentemente – é de pura e áspera rabugice. Muitos leitores decerto atravessaram essa passagem retendo sua percepção na linha crua da entonação ácida que percorre o conjunto da narrativa. Talvez tenham ido além, talvez tenham figurado na persona de Luís da Silva uma projeção da rabugice do próprio autor reiteradamente enfatizada em testemunhos e anedotas de contemporâneos e críticos demasiado aderentes às chaves biográficas da obra literária.
Em mais de uma passagem do seu livro Luciano argumenta com propriedade em defesa de linhas convergentes observáveis na obra de Machado de Assis e na de Graciliano Ramos. Sua argumentação é sólida e ademais necessária, já que é sabida a resistência do segundo à obra e antes de tudo à biografia do primeiro. Diria que esta contamina a apreciação criticamente isenta daquela. Luciano vai antes de tudo à obra, que é o que de fato importa para a atividade crítica, e aí destaca e ilumina aproximações bem fortes entre ambos. Importaria ainda acentuar que a resistência de Graciliano a Machado encobre sentidos bem mais abrangentes. Quero dizer, outros escritores contemporâneos do Rabugento, igualmente importantes e reconhecíveis pela penetração com que apreciaram muito da nossa literatura, incorreram em reservas semelhantes que ao cabo comprometem o apreciador, eles, não o apreciado, Machado.
É o caso ainda mais significante do famoso ensaio de Mário de Andrade igualmente considerado por Luciano. Seria ainda o caso de lembrarmos Gilberto Freyre, sobrepondo José de Alencar, Euclides da Cunha e José Lins do Rego ao mestre supremo do Cosme Velho; também Jorge Amado, que reparte nossa tradição narrativa em duas vertentes, uma representada por José de Alencar, outra por Machado, para em seguida coerentemente alinhar-se com a primeira. Há certamente outros que omito, pois não é minha intenção recensear o assunto numa breve consideração espremida nas linhas de um prefácio. A menção a este fato parece-me todavia importar na medida em que aponta para um reconhecimento mais sólido e consensual da singularidade estética de Machado no conjunto da nossa história literária.
Presumo que atualmente nenhum crítico, salvo a fração residualmente provinciana dos que lhe medem a excelência indiscutível, erra na avaliação substancial de sua universalidade tantas vezes no passado incompreendida por estudiosos ora turvados por nossa renitente tradição atada ao par romantismo e nacionalismo cultural - doença crônica e camaleônica da cultura brasileira, como observou Sérgio Paulo Rouanet em tom polêmico - ora por outras formas de estreiteza ideológica ou ainda psicológica, como aparenta ser o caso de Lima Barreto e a resistência de Graciliano Ramos já acima sublinhada. Resumindo, o fato imperativo é que a recepção da obra de Machado de Assis vale hoje como medida de sensibilidade e inteligência literária. No Brasil, como no estrangeiro, sucedem-se estudos de qualidade unânime no reconhecimento de valores artísticos que elevam Machado à altura dos seus melhores contemporâneos e pósteros. Luciano tem ciência disso. Essa é uma das razões de em vários pontos da sua obra centrar o foco argumentativo em críticos como Augusto Meyer, Roberto Schwarz, John Gledson, Sérgio Paulo Rouanet, José Guilherme Merquior, Alfredo Bosi e outros que tanto concorreram para consolidar um ponto de consenso em torno da obra de Machado.
Sem querer abusar da elasticidade do conceito de obra aberta, acredito que muitas leituras, mesmo aquelas mais aderentes às linhas de sentido objetivamente aferíveis na obra do autor analisado, projetam em graus variáveis algo da personalidade e até diria das idiossincrasias do crítico. Desconfio de que isso efetivamente ocorre no modo como Luciano Oliveira nos devolve sua recriação de Graciliano Ramos. O aspecto dessa recriação ou releitura que objetivo salientar prende-se aos elementos de humor acaso espelhados na obra do Rabugento. Este designativo já por si trai o vinco de humor intencionado pelo crítico. Visando melhor articular meu argumento, valho-me da longa intimidade que tenho o privilégio de compartilhar com Luciano para sugerir em linhas menos turvas a medida em que um traço decisivo da sua personalidade incide sobre as camadas de humor supostamente inscritas na obra do Rabugento.
Esperando ainda não incorrer numa chave psicologicamente redutora, ressalto o fato de que Luciano é um dos seres mais entranhadamente engraçados que conheço. Seu senso de humor – o termo vai aqui compreendido também na sua acepção inglesa, cuja expressão brasileira mais plena está contida na obra do Bruxo do Cosme Velho – tende sempre a desatar-se ao estímulo do primeiro contato. Mais que senso de humor, nele se somam e sobrepõem o galhofeiro, o palhaço de picadeiro (ele de resto deplora não ser na vida efetivamente um deles), o menino trocista rebelde às convenções impostas pela sociedade e a experiência acumulada pelo profissional maduro. Se Oswald de Andrade perdia um amigo para não perder uma piada, Luciano perde ambos, amigo e piada, contanto que ele e os circunstantes riam. Ora, essa matizada e irrefreável força de humor e galhofa pulsa no centro da vida e da personalidade do nosso crítico. É assim compreensível que a projete num estudo de apreciação literária. O que de certo modo desorienta o leitor mais austero é a circunstância de Luciano, operando num quadro no qual livremente se mesclam os sentidos objetivamente dados pela obra e sua indócil personalidade de crítico, ressaltar no velho Graça precisamente essa tão inesperada componente de humor e riso inscrita no cerne de alguns dos ensaios aqui reunidos. A tudo adicionaria, tanto em defesa do meu argumento quanto em defesa das pérolas que recolhe e exibe ao cabo de sua jornada, que eu próprio aprendi com ele a enxergar nas pernas entrançadas de Julião Tavares uma irresistível cena de humor. Foi lendo e ouvindo Luciano, sobretudo acompanhando sua alegre e ao mesmo tempo angustiada tarefa de composição do livro, que passei a reler Julião Tavares, assim como outros personagens e cenas descritas na obra do Rabugento, que enfim assimilei à minha leitura de uma obra sempre apreciada como áspera e opressiva esse ingrediente de humor tão original e desconcertante inscrito nas linhas de O Bruxo e o Rabugento.
O que Luciano acrescenta às leituras correntes no paralelo que ensaia entre Machado de Assis e Graciliano Ramos é precisamente essa camada de sentido dentro da qual subitamente irrompe uma gargalhada inusitada. Que o leitor confira por si próprio. No caso de concordar com o autor, atestando que somente as pessoas sérias gozam do privilégio de rir dos disparates de Julião Tavares narrados por Luís da Silva, concluirá assim que fora antes traído pelas aparências quando opunha Machado de Assis a Graciliano Ramos preso a incompatibilidades sem dúvida aferíveis, mas nunca substantivas. De humor e de riso já se disse muito quando a obra em questão era a de Machado de Assis. Luciano Oliveira sem dúvida altera e enriquece a fortuna crítica de Graciliano Ramos, a quem isento de qualquer cerimônia trata como o velho Graça, quando nela ilumina uma sombra que nenhum rabugento ou leitor inocente antes notara. Acrescentaria que nem mesmo o velho Graça, dizem que rabugento demais para fazer humor e provocar riso à custa do que odiava ou desprezava. Se for o caso, mais uma vez estaremos diante de um autor traduzido a contrapelo de si próprio. Espero, por fim, que o leitor se divirta, que ria muito como rimos Luciano Oliveira e eu. Afinal, somos gente séria demais.
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