domingo, 8 de julho de 2012

Pai e Filho


Fazia anos que se balançava quietamente na cadeira de balanço. Os vizinhos vinham ocasionalmente à varanda e logo deparavam aquele velho silencioso e solitário balançando-se na cadeira diante da televisão: para lá, para cá. Assim, sem variação significativa, assim ele se balançava quietamente, assim balançava na cadeira sua velhice sem acontecimentos. O velhinho silencioso tornou-se assim parte inconsciente da paisagem apreensível através da cadeia de varandas acotoveladas nos condomínios onde se empilhavam seres incomunicáveis, náufragos resignados dentro de suas ilhas.
Embora fitasse a televisão, pouco se dava conta do fluxo de imagens que se desdobrava infinitamente diante dos seus olhos apertados, as retinas já fatigadas de ver um mundo que pouco o atraía e menos ainda compreendia. Era de um outro tempo, de um tempo que agora lhe parecia muito distante, embora a memória o assombrasse com imagens, gente, paisagens cada vez mais nítidas. Sentia-se como se o presente palpável, restrito à sala deserta e ao fluxo de imagens e sons da televisão, fosse cada vez mais remoto. Este recuava, não obstante ruidoso e presente, enquanto o outro, o passado acumulado na memória, era cada vez mais presente.
Lembrou-se do filho, o único que lhe restou sem que de fato o tivesse, pois que foi embora, como tudo que importava na sua vida. Em muitos sentidos, o filho tornou-se seu avesso, seu outro tão refeito pela experiência e negações deliberadas que se foi dele desgarrando, gradualmente apagando do seu caráter as marcas mais profundas que sobre ele imprimira. A semelhança física entre um e outro era notável, também muitas disposições temperamentais que o filho, não sabia por que, foi modulando, transfigurando, forjando na matéria herdada um outro modo de homem cada vez mais distanciado do pai.
O filho tornou-se assim muito do que não era, também muito do que gostaria de ser, do que talvez tivesse sido, fosse outro o mundo em que cresceu, outros os acasos, circunstâncias, oportunidades... Era homem do Brasil rural, de um Brasil onde poucos tinham acesso àquilo que seu filho tenazmente conquistou: estudos refinados, viagens e contatos renovadores com a alta cultura letrada de procedência europeia. Seu sonho era ver o filho doutor. Doutor, no seu entender e aspiração, era doutor em direito. O filho, talvez cedendo ao peso opressivo da herança de sangue e desejo, chegou mesmo a esboçar a realização do sonho nutrido pelo pai. Ingressou no curso de direito, mas logo desistiu. Daí errou através de confusos corredores acadêmicos, errou ainda mais na vida, e afinal encontrou algo de si, do que lá nele mais fundo ele era, e se fez intelectual impregnando-se de literatura, filosofia, outros saberes impermeáveis à compreensão pedestre do pai.
Lembrou-se do filho com um desejo tão urgente, tão carente de povoar a sala vazia, o balanço invariável da cadeira de balanço, que por pouco o viu diante de si, ocupando o espaço vazio entre a sala e a varanda com sua altura descomunal. O filho era alto, bem mais alto que ele, e agora lhe parecia imenso diante da sua velhice encolhida dentro do corpo solitário, dentro do apartamento vazio. Sentiu uma dor sem nome, uma solidão irreparável. Como seria bom tê-lo ali a seu lado, ouvi-lo novamente lendo passagens da Bíblia que o reconfortavam. Sabia que o filho também se distanciara de Deus. Mas gostava de ler a Bíblia para o pai já cansado, sem ânimo mental ou disciplina de leitura para abismar-se nos evangelhos, na palavra de Deus por conta e risco próprios.
Quantas noites o filho não se inclinou bondosamente sobre ele derramando no desamparo da sua velhice a palavra de Deus que para ele, o filho, não existia? O volume restara silencioso e empoeirado sobre a prateleira da sala. Um livro sem leitor, pensava, era como uma casa sem dono. Por vezes, evocando a palavra divina vertida pela fala do filho, que lia com inflexões e pausas apaziguadoras, quase mergulhava num cochilo quieto, um limbo entre a vigília e o sono. A voz do filho, comunicando-lhe o verbo divino, era música para sua velhice, era o refúgio dentro do qual se reconciliava com o mundo. Tudo que verdadeiramente lhe sobrava era o filho. Mas um dia ele também foi embora. Restou-lhe apenas a televisão ligada, tantas vezes sem som, tantas vezes mero fluxo de imagens cegas, pois ele em nada se reconhece. Se algo dá sentido a seu presente solitário, a seu presente vazio, é o mundo da memória ritmando os movimentos do corpo fatigado sobre a cadeira de balanço.
Major Gomes. Ele sorriu quietamente enquanto uma lágrima escorria silenciosa pela face enrugada. O filho inventou um dia, já não lembrava quando nem por que, de chamá-lo Major Gomes. Major Gomes isso, major Gomes aquilo e assim por tudo e por nada o filho habituou-se a chamá-lo major Gomes. Era um modo carinhoso e íntimo de tratamento, embora paradoxalmente evocasse uma patente militar, valores e práticas de vida absolutamente estranhos a ambos, que eram homens avessos à hierarquia e à violência associadas à profissão militar. Daí a estranheza do apelativo íntimo e carinhoso. Por que major Gomes? Parafusava a memória até que por fim se resignava ao puro eco da voz do filho vindo de longe, mas tão nítido, tão carregado de gradações afetuosas, risonhas, tão o sopro infantil das brincadeiras que entre si tramavam alheios ao hiato entre o pai e o filho, entre a patente militar e a expressão de amor compartilhada por dois homens bondosos e delicados.
Estoico. O que queria dizer? Balançou a cabeça desanimado, o pensamento confuso entre a ignorância do sentido suposto na palavra e a memória nítida vibrando aqueles sons que se somavam para perfazerem a palavra inequívoca: estoico. Sim, era isso o que ele dizia. Um dia interrompeu o filho mergulhado nas suas leituras habituais. Acercou-se timidamente, pois era tímido até para perturbar o recolhimento do próprio filho, e lhe perguntou o que lia. Na verdade, a pergunta era irrelevante, apenas um pretexto para chamar a atenção do filho; um pedido, quase uma súplica abafada. Como se dissesse: meu filho, converse comigo, pois estou doente de velhice e solidão e agora tenho medo dessas sombras vindas do passado.
O filho se volta para ele: Major Gomes. Sorriem como iguais, como eu espelhado no outro, mas um outro que é o mesmo, tão profundas eram as semelhanças enraizadas sob a superfície que os dividia: a idade, a cultura, modos irredutíveis de experiência e perspectiva dentro do mundo que os aproximava e dividia. Major Gomes, repete o filho e novamente sua presença consoladora avoluma-se na memória do velho. O que você está lendo? Lia um livro de filosofia e naquele preciso momento lutava para compreender a noção filosófica do tempo adotada pelos estoicos. Estoico... os sons voltam a vibrar na memória e ele sorri tristemente ignorante. Mas o que importa na memória que agora o reanima não é a ignorância do que seja estoico, do que seja o tempo para o estoico; o que importa é a presença do filho povoando a sala vazia, injetando ânimo ao movimento rangente da cadeira de balanço.
Recife, 3 de abril 2012.

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