domingo, 15 de julho de 2012
Estação Tolstoi
O primeiro parágrafo de Anna Karenina, de Tolstoi, é justificadamente um dos mais atraentes e inesquecíveis da literatura universal. Mal o percorre, o leitor é prontamente seduzido por aquelas palavras impregnadas de ressonâncias imaginativas e assim atravessa o livro volumoso tomado pelo desejo de desvendar a história singular de cada família infeliz. As felizes decerto não lhe passam pela cabeça, já que são todas iguais, segundo a apreciação do autor. Ou será que há leitores seduzidos pela história de Anna Karenina supondo desvendar a história de uma heroína pertencente a uma família feliz? Cada família infeliz é infeliz de modo próprio ou singular.
O problema que de imediato me ocorre é refutar a ilusão contida na ideia de família feliz. Tolstoi, como sua heroína, não nasceu nem viveu numa família feliz. Nem como filho, cujos pais morreram quando era muito pequeno, nem como pai e ancião às portas da morte, como o comprova o filme de Michael Hoffman baseado no romance homônimo A última estação (The last station), de Jay Parini. Além de não conhecer o que muitos acreditam ser uma família feliz, Tolstoi foi um homem complexo e atormentado, sempre dividido nos seus desejos, ações, e convicções mais profundas. Depois de viver como sua esposa durante 48 anos, sua mulher Sofya confessou ignorar que tipo de homem ele era.
Comecei este artigo evocando o parágrafo de abertura de Anna Karenina porque o filme de Michael Hoffman me fez evocá-lo num sentido tragicamente irônico. O filme induziu-me ainda a uma outra associação que reforça a tragédia irônica patente no fim da vida do grande escritor e líder religioso, figura revestida de uma aura profética disseminada não apenas na Rússia autocrática saturada de misticismo, mas em grande parte do mundo. A outra associação que me ocorreu remete a Shakespeare e King Lear, tão grosseiramente incompreendidos por Tolstoi num ensaio intitulado “Sobre Shakespeare e o teatro”. Como não perceber essas duas ironias trágicas que singularizam o último ano de vida de Tolstoi condensado no filme de Hoffman? Difícil imaginar família mais infeliz que a dele, assim como é quase inevitável a identificação entre o ancião doente e atormentado fugindo da própria casa e família e o rei traído e desamparado pelas filhas a quem insensatamente transferiu seu poder.
Como observei, a ação do filme concentra-se no último ano de vida de Tolstoi (Christopher Plummer). Investido da liberdade imaginativa característica da literatura de ficção, mesmo quando inspirada em personagens e eventos históricos, Jay Parini nos revela o último ano da vida de Tolstoi, sua turbulenta relação com sua mulher Sofya (Helen Mirren), a implacável rivalidade entre esta e Chertkov (Paul Giamatti), líder do movimento religioso baseado nos escritos de Tolstoi, centrado na perspectiva de Valentim Bulgakov (James McAvoy). Bulgakov foi enviado por Chertkov para Yasnaya Polyana depois que o secretário de Tolstoi foi preso. Sua função expressa era não só substituir o secretário precedente, mas também espionar a ação de Sofya em benefício de Chertkov e do movimento religioso que este coordenava.
A rivalidade entre Sofya e Chertkov precipita o fim trágico de Tolstoi, disputado sem tréguas por interesses e paixões intransigentes. O inferno doméstico em que Tolstoi e Sofya viveram durante anos foi desencadeado quando o escritor adotou uma forma anárquica de cristianismo que acabou resultando na sua excomunhão da Igreja Ortodoxa, além de convertê-lo em inimigo da autocracia russa. Talvez o espectador que pouco conheça Tolstoi e o movimento religioso que liderou - em termos de organização e ação prática encabeçado por Chertkov, punido com dez anos de exílio – se surpreenda ao ler nas cenas iniciais do filme que Tolstoi era então o escritor mais celebrado do mundo. A informação seria mais precisa se esclarecesse que a celebridade decorria antes do papel religioso do que literário exercido pelo autor de Guerra e paz. Hoje o que antes de tudo sobrevive é o escritor literário, mais uma razão para a compreensível surpresa do meu hipotético espectador. O tolstoísmo que se difundiu pelo mundo durante o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, influenciando poderosamente personagens históricos excepcionais como Gandhi e Wittgenstein, é hoje uma pálida memória em meio à babel das seitas e movimentos religiosos concorrentes no mercado da fé.
O jovem e casto Bulgakov, dócil seguidor do tolstoísmo, tanto que de início nada questiona nos seus líderes nem nas ações e pregações correntes na comunidade em que passa a viver, sofre de um sintoma revelador da sua tibieza. Espirrar é sua reação compulsiva sempre que se defronta com uma situação que lhe provoca embaraço, relutância ou temor. Lembrei-me de que Mario Vargas Llosa usa artifício literário semelhante para caracterizar psicologicamente a cegueira ideológica do protagonista de A guerra do fim do mundo, inspirado em Euclides da Cunha. Por isso cheguei a supor que o livro de Vargas Llosa seria a fonte desse detalhe caracterizador de Bulgakov. Somente mais tarde descobri, ouvindo comentários do próprio diretor do filme, que a fonte inspiradora fora um conto delicioso e pouco conhecido de Tchekhov: “The Sneeze” (“O Espirro”). O alcance crítico da alusão é maior do que aparenta, pois me parece esclarecer o tom tchekhoviano (com perdão do neologismo), ou tragicômico que pontua muitas das melhores cenas do filme.
Mais do que o centro da propriedade rural do nobre Leon Tolstoi, Yasnaya Polyana tornou-se um lugar mítico, santuário para onde acorriam peregrinos e místicos tocados pela fé nos ensinamentos religiosos de Tolstoi. O cristianismo anárquico concebido por Tolstoi representa Jesus não como um deus, mas como um ser humano investido de virtudes humanas excepcionais. É baseado nesse princípio que Tolstoi define sua versão do evangelho e procura pautar sua ação no mundo. Inspira-se ainda nas tradições místicas do mujique, o camponês russo, fonte mítica inspiradora do populismo russo contraposto à corrente dos ocidentalistas, que divisavam nos valores modernos dos países europeus mais avançados a solução para o atraso social e político da Rússia.
Tolstoi pregou e tentou praticar, sempre emaranhando-se em contradições penosas agravantes do seu caráter atormentado, um tipo de socialismo do qual decorria sua convicção de que a propriedade era um roubo, inclusive a intelectual. Essa questão está na raiz da rivalidade entre Sofya e Chertkov. Enquanto este não mediu esforços e maquinações para fazer com que Tolstoi afinal assinasse um documento convertendo sua obra em propriedade pública (Tolstoi não escrevia para os editores, como afirma numa cena do filme, mas para o povo), aquela lutou tenazmente para preservar todas as propriedades do marido em benefício de si própria e da família. Chertkov venceu provisoriamente, como é evidente no filme, ao convencer Tolstoi a transformar sua obra em propriedade pública. Mais tarde, porém, já depois da morte do escritor, a lei do regime autocrático por ele combatido devolveu à viúva a propriedade causadora de muitos dos conflitos e tormentos compreendidos pela trama do filme.
Tolstoi afirma que o amor é o valor universal que liga todas as religiões. Se ele tem acaso razão, a verdade que prega, como todo órfão do absoluto, tem validade puramente abstrata ou teórica. Infelizmente, a história da religião desmente de ponta a ponta a verdade que prega, que antes dele Jesus Cristo e outros homens excepcionais também pregaram, não raro ao preço da liberdade e da vida. Saltando do absoluto religioso para o político, ou ideológico em geral, o que realisticamente se impõe é a impossibilidade do absoluto no reino contingente e falível da realidade humana. O que infelizmente vemos e sofremos acompanhando na tela as vidas dos seres que se amam, mas sobretudo se combatem e se castigam no microcosmo de Yasnaya Polyana, é a prevalência do mal. Eis mais uma ironia trágica pontuando o fim de Tolstoi, esse homem tão atormentado e perseguido pela miragem do absoluto.
Isaiah Berlin, um dos estudiosos que mais profundamente perscrutaram esse homem genial e indecifrável, escreveu um dos mais citados ensaios contemporâneos movido pela ambição de o explicar. Refiro-me a “O porco-espinho e a raposa” (“The hedgehog and the Fox”). Berlin propõe a tipologia que confere título a seu ensaio com o propósito de explicar o conflito insolúvel que atormentou a vida de Tolstoi. Como toda tipologia, esta não escapa ao risco da simplificação grosseira, sobretudo quando manejada por intérpretes canhestros ou dogmáticos. Não é o caso de Isaiah Berlin, talvez o mais refinado e perceptivo filósofo político e ensaísta da moderna tradição liberal. Seguindo a distinção que propõe ao esboçar sua tipologia, a raposa sabe muitas coisas; o porco-espinho sabe apenas uma, mas ela é sumamente importante. Fixada esta baliza distintiva, o ensaísta enumera alguns dos grandes nomes da cultura identificando-os ora com a raposa (Shakespeare, Montaigne, Erasmo, Puchkin, Joyce...), ora com o porco-espinho (Platão, Dante, Pascal, Dostoievski, Nietzsche...).
O grande infortúnio de Tolstoi, segundo a admirável argumentação que Isaiah Berlin desdobra ao longo do seu ensaio, foi acreditar que era um porco-espinho, quando era por natureza uma raposa. Nos seus escritos religiosos ou proféticos, quem se impõe é o porco-espinho, não raro enrijecido num moralismo que o impeliu a incorrer em erros e injustiças desconcertantes num homem dotado de gênio. Bastaria pensar na apreciação crítica absurda que faz de Shakespeare contida no ensaio acima citado. Sua pregação moralista e dogmática estende-se à apreciação da arte em geral, sem poupar sequer sua própria obra. Também sua percepção do mundo moderno, sua aversão à ciência e à tecnologia, é de uma estreiteza espantosa. Seu moralismo sexual beira a hipocrisia mais chã enredando-se em extremos de contradição e culpa. Portanto, o que me parece mais importar em Tolstoi, e é isso que lhe assegura a imortalidade incontestável, é a obra literária na qual se espelha sua autêntica natureza: a natureza da raposa que sabe muitas coisas, embora nenhuma seja exclusiva ou absoluta.
Recife, 10 de julho de 2012.
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Belo texto e análise arguta, do escritor e do filme!
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