quarta-feira, 25 de abril de 2012
Claude Lévi-Strauss
Claude Lévi-Strauss é reconhecido como o pai da antropologia moderna até em orelhas de livro. Para os brasileiros importaria pelo menos saber que o Brasil desempenhou um papel fundamental na formação desse homem que revolucionou a antropologia. Aliás, ele afirma categoricamente que a ciência antropológica, assim como as ciências humanas em geral, de ciência tem apenas o nome. Isso já de início sugere que esse homem extremamente reservado, no fim da vida conservador e até nostálgico, além de sombrio na sua apreciação anti-humanista do mundo, não era de meias palavras. Outros dos seus juízos controvertidos referem-se ao racismo, ao multiculturalismo, à arte contemporânea, ao suposto caráter revolucionário do 1968 francês, cujos efeitos alastraram-se por grande parte do mundo, e outras questões polêmicas. Mais abaixo considerarei devidamente sua relação com o Brasil, que neste parágrafo me limito a indicar em termos sumários.
Claude Lévi-Strauss: O poeta no laboratório, objeto desta resenha, é uma biografia ricamente documentada e informativa, além de escrita com clareza e precisão exemplares. Alerto o leitor ocasional das biografias que tenho resenhado neste blog para o fato de que, se me repito nesse tipo de elogio, a culpa, melhor diria mérito, é atribuível aos excelentes biógrafos que tenho resenhado: Ron Rosenbaum, Stephen Greenblatt e agora Patrick Wilcken. Pois um mérito que em todos identifico e tenho ressaltado é a clareza da exposição, mesmo quando o biografado, é o caso de Lévi-Strauss, é autor de obra teoricamente complexa e portanto pouco acessível ao leitor privado de formação especializada.
Mas o próprio Wilcken apropriadamente nos informa, numa das seções do “Epílogo” (ver “Leituras Adicionais”, pp. 367-370), que Lévi-Strauss muito facilitou o acesso do leitor à sua obra através de entrevistas, documentários e transmissões radiofônicas muito esclarecedoras, dada sua facilidade expressiva. Efetivamente, quem acaso tenha lido De perto e de longe, série de conversas gravadas entre Lévi-Strauss e Didier Eribon, pode confirmar esta qualidade também salientada por Wilcken. Este livro, também traduzido no Brasil, desdobra-se tendo como objeto a vida e a obra de Lévi-Strauss. Precisando ainda os créditos e méritos do biógrafo, acrescentaria que é também um estudioso do Brasil, fato que sem dúvida concorreu para acentuar o valor e exatidão das páginas que consagra ao papel crucial que o Brasil desempenhou na biografia e na obra de Lévi-Strauss. A maior evidência consiste no fato de ele ser autor de um livro inteiramente consagrado ao Brasil: Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, também publicado pela Editora Objetiva.
Expondo o plano geral da obra, Wilcken divide-a em duas partes: a primeira, relativa à formação e treinamento de campo do biografado, tem o Brasil como referência seminal, prolonga-se no exílio vivido por Lévi-Strauss nos Estados Unidos, quando o avanço do nazismo o força a deixar a França, e se completa com a publicação de Tristes Trópicos, em 1955. A propósito, tentou inicialmente exilar-se no Brasil. É portanto um fato lamentável saber que a embaixada brasileira lhe negou o visto solicitado. Esse episódio, que Wilcken relata, foi antes registrado pelo próprio Lévi-Strauss no livro resultante de suas conversas com Didier Eribon. A segunda parte imprime relevo à elaboração e difusão das ideias do antropólogo que alcança converter-se em objeto de reverência, notadamente na França e no Brasil. Além do impacto que teve a partir da publicação do já citado Tristes Trópicos, o estruturalismo inspirado pela obra de Lévi-Strauss tornou-se uma autêntica moda acadêmica beneficiada pela crise profunda que se abateu sobre o marxismo e o existencialismo identificado com a figura legendária de Jean-Paul Sartre. A partir dessa crise, Sartre é suplantado por Lévi-Strauss no Olimpo intelectual francês, também por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault. Muitos dos que se diziam seguidores de Lévi-Strauss foram desmentidos pelo próprio, que com frequência queixou-se de ser incompreendido. A julgar por algumas de suas declarações tardias e pessimistas, a escola de pensamento que fundou não teve prolongamentos. Melhor dizendo, não teve seguidores que reconhecesse como fiéis ao espírito das suas ideias.
Esclarecendo um pouco o subtítulo da obra – “O poeta no laboratório” -, ele traduz uma frustração confessa do próprio Lévi-Strauss. Artista manqué, ou artista fracassado, seu sonho era ser pintor ou músico. Também sonhou ser escritor literário, e aqui chegou a tentativas efetivas, todavia malogradas. Queria ser dramaturgo ou poeta. A fotografia, que muitas vezes praticou como parte do seu ofício de etnólogo, também trai o seu gosto pela arte e seus méritos como fotógrafo foram reconhecidos, embora no fim da vida tenha depreciado o próprio alcance estético da fotografia. Além disso, denotando ainda suas inclinações e influências artísticas, na juventude demonstrou vivo interesse pelo surrealismo e outras correntes artísticas. Sua amizade com André Breton, fruto de um encontro acidental no navio que os transportou para o exílio nos Estados Unidos, também concorreu para reforçar seus vínculos com a arte. Como observa Patrick Wilcken,
“Ambos eram estetas intelectuais sérios, ambos sóbrios e um tanto formais na maneira de abordar o mundo, porém tomados pela paixão modernista da época pelo primitivo e pelo subconsciente. Sem livros, os dois passaram o resto da viagem conversando no tombadilho, mostrando um ao outro longas notas densamente teóricas, trocando ideias sobre a arte, o surrealismo, o juízo estético” (p. 127).
Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935 acompanhado por sua primeira mulher, Dina Dreyfus. Vieram com a segunda corrente da missão francesa encarregada de formar a primeira geração de estudantes da Universidade de São Paulo. Derrotado pelo poder central em 1932, na guerra conhecida como a Revolução Constitucionalista, São Paulo se mobiliza tomado por seu espírito pioneiro para lançar as bases da universidade que se tornou a mais importante do Brasil e de toda a América Latina. A missão francesa, convocada pelo psicólogo Georges Dumas, em acordo com a elite paulista, chegou ao estado a partir de 1934 com a função de estabelecer nos trópicos – ou tristes trópicos, se queremos evocar a obra de Lévi-Strauss inspirada por essa experiência – as bases de uma autêntica universidade moderna, já que o Brasil era praticamente desprovido de tradição universitária.
A hegemonia da cultura francesa era à época tão indisputada que os cursos eram ministrados em francês. Foi nessas circunstâncias que em São Paulo floresceram as carreiras acadêmicas de grandes nomes da cultura francesa como Lévi-Strauss, Fernand Braudel (este já mais velho e adiantado, com obra em curso quando chegou a São Paulo), Roger Bastide e outros que, não obstante menos famosos, exerceram papel decisivo na formação da primeira geração de professores nativos da USP. Bastaria acrescentar que os dois intelectuais uspianos mais renomados, Antonio Candido e Florestan Fernandes, pertenceram a esta geração, além de outros igualmente importantes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado.
Além de atuarem como mestres dessa geração, os franceses prontamente se associaram à elite intelectual paulista, sobretudo aos modernistas já então empenhados em funções institucionais das quais resultou o triunfo do modernismo, que na década precedente irrompera como um movimento de vanguarda tomando de assalto a cultura estabelecida. O mais destacável, como é sabido, era Mário de Andrade. Desempenhando a função de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário realizou um trabalho de política cultura sem precedente, ousaria afirmar que também ainda sem sucessor à altura da obra extraordinária que comandou assistido por intelectuais qualificados e devotados como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Luís Saia e vários outros.
Mário de Andrade aliou-se antes a Dina do que a Lévi-Strauss. Mulher de notável talento e capacidade de trabalho, ela ministrou, a convite de Mário, o primeiro curso de etnografia na cidade de São Paulo. Além disso, exerceu papel chave na Sociedade de Etnografia e Folclore, criada por Mário de Andrade através do Departamento de Cultura. Wilcken nos revela que essa amizade e trabalho colaborativo provocaram ciúmes em Lévi-Strauss. Já depois de separar-se de Dina, queixou-se este das cartas carinhosas que Mário escrevia para ela. Quem conhece a correspondência de Mário, caso singular na história da literatura brasileira, pode bem imaginar o tom não raro demasiado afetuoso das suas cartas, notadamente quando destinadas a mulheres. As que escreveu para Stella, primeira mulher de Ascenso Ferreira, são sentimentalmente tão derramadas, ou desmedidas, que bem poderiam dar margem a leituras dúbias.
Cedendo à tentação de uma outra digressão que não figura no livro de Patrick Wilcken, talvez o leitor demasiado etnocêntrico ou estreitamente crítico da nossa formação colonizada erradamente conclua que a missão francesa foi apenas um outro capítulo na história da nossa subserviência à cultura francesa. Na verdade, as relações entre culturas são muito mais complexas. Esse episódio, o do papel formador dos franceses na história da USP, ilustra extraordinariamente essa questão. Como o demonstram depoimentos de alguns dos mais renomados rebentos da universidade e dessa experiência formadora, os franceses foram decisivos para despertar-lhes dimensões do Brasil que eles por si sós seriam incapazes de enxergar. Isso foi possível porque os franceses vieram também para aprender sobre o Brasil, transportavam com seu olhar de estrangeiro potencialidades perceptivas e desejos de descoberta adormecidos na percepção familiar do brasileiro. Em suma, renova-se aqui o costumeiro jogo dialético entre o familiar e o estranho, parte da formação de qualquer antropólogo, raiz metodológica de todo saber antropológico e por extensão humanístico. Os franceses nos ensinaram porque também queriam aprender. Assim, estabeleceu-se essa via de mão dupla tão fecunda na interação entre culturas. Ganharam eles e ganhamos nós. Quem perde é o etnocentrismo e variantes provincianas como o nacionalismo e o regionalismo. Sempre que estes ganham, perdemos nós na nossa capacidade de ampliar nossa compreensão do mundo, de apreender o mundo em viva e fecunda interação com a alteridade das culturas.
Quando Lévi-Strauss chegou ao Brasil, São Paulo tinha cerca de um milhão de habitantes. Sua febre expansiva, da qual a grande leva imigratória que acolheu era uma das manifestações mais extraordinárias, fascinou Lévi-Strauss, que aqui aportou com pré-concepções e expectativas largamente infundadas. Num curto intervalo do espaço urbano da macota cidade, como diria Macunaíma, acotovelavam-se tempos sociais e extremos culturais que iam dos resquícios coloniais ao espírito do capitalismo observável em Chicago, do rural mais rústico ao urbano mais requintado. Variando os termos de acordo com o jargão sociológico, o pré-moderno e o moderno se justapunham de forma complexa na medida em que tanto envolviam processos integradores quanto conflituosos. Como seus colegas formadores da universidade recém fundada, Lévi-Strauss documentou e estudou com seus alunos esse processo de profundas mudanças culturais e urbanas fixando-o empiricamente em monografias sobre a formação e desenvolvimento de bairros da cidade.
Depois disso embrenhou-se nas paisagens do interior explorando regiões do Mato Grosso onde efetivamente realizou seu grande trabalho de campo como antropólogo. Essa experiência embasa um dos seus livros fundamentais, o já citado Tristes Trópicos. Em 1985, passados muitos anos, revisitou São Paulo como membro da comitiva oficial do então presidente François Mitterrand. Melhor dar a palavra ao biógrafo:
“Quando estava em São Paulo, Lévi-Strauss conseguiu escapar um dia de manhã, pegou um táxi e foi até a avenida Paulista, procurando sua velha casa na Cincinato Braga. A cidade que ele tinha conhecido e amado na juventude, com suas ladeiras e casas de arquitetura colonial, tinha praticamente desaparecido. (...) Lévi-Strauss acabou ficando preso num congestionamento e foi obrigado a voltar.” (p. 319).
Como é notável, minha resenha enfatiza os vínculos de Lévi-Strauss com São Paulo e o início de sua vida e carreira associadas a esse tempo. Evidentemente, a biografia se espraia por outros tempos e lugares, circunstâncias e experiências: seu exílio nos Estados Unidos, ligeiramente anotado acima, seu retorno à França, seu encontro e sua amizade com Roman Jakobson, a elaboração da obra que firmou sua reputação como intelectual e muita coisa que me vejo forçado a omitir no meu roteiro demasiado seletivo. Sua amizade com Jakobson merece um registro mínimo, pois foi decisiva para a orientação da sua obra e a elaboração teórica do estruturalismo, como ele próprio reconhecia. Linguista e poliglota de extraordinária erudição e formação teórica, Jakobson o introduziu nos meandros da linguística estrutural. Através dele, Lévi-Strauss descobriu, entre outras coisas, o Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure.
No parágrafo inicial desta resenha, aludindo ao tom polêmico de certas declarações de Lévi-Strauss, mencionei de passagem o racismo, o multiculturalismo, a arte contemporânea e o 1968 francês, que muitos interpretam ainda como um ano revolucionário, senão mesmo uma década revolucionária. No Brasil, assim como em muitas outras extensões periféricas da cultura europeia, seu impacto foi inegável. O que é discutível é a sua natureza. Seria de fato revolucionária? O ponto de vista de Lévi-Strauss é francamente contrário. Esta frase diz tudo: “Achei o maio de 1968 repugnante” (p. 301). Segundo Greimas, Lévi-Strauss teria declarado durante uma conversa entre eles: “Acabou. Todos os projetos científicos vão retroceder vinte anos” (idem, ibidem).
Acerca do racismo ele também incorreu em declarações públicas no mínimo embaraçosas para a Unesco, que o convidou para proferir a conferência inaugural do Ano Internacional do Combate ao Racismo. Segundo Wilcken, suas declarações polêmicas puseram René Maheu, diretor-geral da Unesco, em pânico. No essencial, o que argumentava era que a política antirracista, tal como proposta pela Unesco, tenderia a alimentar um processo de decadência cultural, já que ameaçaria anular a força do individualismo que move os processos de renovação estética e os valores espirituais necessários à dignidade e valorização da vida. Também não poupou o multiculturalismo, que hoje, pelo menos no Brasil, foi reduzido a clichê da democracia cultural e palavrório vazio da publicidade oficial. O multiculturalismo que vivenciou durante seu exílio em Nova York passou a ser visto na velhice como uma ameaça à sua cultura.
Na velhice, como frisa seu biógrafo, seu pessimismo se acentuou, assim como sua adesão a uma visão conservadora, portanto oposta ao socialismo militante da sua juventude. As evidências mais fortes do seu pessimismo manifestam-se na sua preocupação relativa à explosão demográfica, à devastação da natureza provocada pela expansão da civilização técnica e as tendências dominantes na arte contemporânea, incompatíveis com seus ideais estéticos. A esse propósito, Patrick Wilcken cita passagens bem impressivas de um artigo que escreveu para a revista Time:
“Não acredito em Deus, mas tampouco acredito no homem. O humanismo fracassou. Não impediu as ações monstruosas de nossa geração. Ele tem se prestado a desculpar e justificar todas as espécies de horrores. Ele entendeu mal o homem. Tentou separá-lo de todas as outras manifestações da natureza”(p. 310).
A esse diagnóstico sombrio, mas talvez irretocável no essencial, não poderia deixar de acrescentar a longa e devastadora experiência do colonialismo imposto pela Europa a países como o Brasil, o fascismo e acima de tudo o nazismo cujos horrores excederam as mais tenebrosas figurações da imaginação humana.
E por aí foi ele de mal a pior para quem acredita ou precisa acreditar em visões de mundo consoladoras ou francamente otimistas. Quando morreu, já centenário, Lévi-Strauss deixou palavras ainda mais negativas para legar àqueles que o celebraram e ainda o celebram. Mas encurto o enredo, que de resto não recomendo ao leitor impressionável, sobretudo se incorrer na insensatez de ler este desfecho da resenha na hora de dormir. “O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”, é outra frase sombria que escreveu e nada de animador promete à posteridade.
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Olá, Fernando.
ResponderExcluirÓtima resenha. Parabéns. Claude Lévi-Strauss me lembra Konrad, pelas frases sombrias. O horror! O horror!