sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Impacto e Permanência de CG&S


Impacto e Permanência de Casa Grande & Senzala

Resumo: Objetivo, neste artigo, caracterizar, de um lado, o impacto causado por Casa-Grande & Senzala (doravante assim abreviada: CG&S) nos quadros da produção intelectual dos anos trinta desde o momento de sua publicação; de outro lado, acentuar a permanência desta que é, segundo o insuspeito juízo de Darcy Ribeiro, “a obra mais importante da cultura brasileira”. No que se refere ao impacto anotado no título do artigo, intento acentuar que os nomes e setores mais significativos da inteligência brasileira de imediato identificaram na obra de Gilberto Freyre sua força e originalidade. A incompreensão de que ele próprio mais tarde tantas vezes veio a se queixar derivou seja de críticos menores, seja de fatores ideológicos que serão explicitados no corpo deste artigo. Quanto à permanência de CG&S, nenhum fato contemporâneo talvez melhor a comprove do que o progressivo ressurgimento de estudos e interpretações inspirados pela ambição de acentuar a posição tanto seminal quanto clássica da obra que, compreendida na sua autonomia epistemológica e estética, transcende os rumos e posições contingentes do seu autor.
Nota: este artigo foi antes publicado na revista Estudos de Sociologia, da pós-graduação em Sociologia da UFPE, Ano 1, No. 1, Recife, janeiro/junho de 1995. Tomei a liberdade de suprimir algumas notas bibliográficas, além do parágrafo final. As notas que me pareceram necessárias à clareza do artigo foram incorporadas ao texto.

O lançamento do último livro de Harold Bloom nos Estados Unidos, The Western Canon, teve entre nós, aparentemente, uma repercussão de alcance puramente jornalístico. Inspirada na lista canônica proposta por Harold Bloom, a revista Veja convocou quinze intelectuais solicitando-lhes que compusessem listas individuais das vinte obras mais representativas da cultura brasileira (Ver Veja, 23 de novembro de 1994, pp. 108-112). Feitas as listas, delas Veja extraiu um conjunto canônico “definitivo” composto de vinte e duas obras. Embora valha aqui destacar que os intelectuais convocados a propor um cânon (note-se que não escrevo “o” cânon) da cultura brasileira figuram, salvo um ou outro nome discutível, entre os maiores da nossa inteligência, não interessa aos fins visados por este artigo discutir a consistência e legitimidade dos critérios adotados para a seleção canônica.

Se é verdade que iniciativas dessa natureza estão sempre a um passo do consumismo mais banalizador, já que é corriqueiro votarem dentro desse objetivo geral tanto os dez livros que um intelectual levaria para uma ilha deserta quanto as dez mais gostosas penduradas nas sórdidas paredes de uma oficina de automóveis, muita coisa útil pode ser discutida para além do blablablá consumista que pulveriza nosso cotidiano cultural. Se se considera, por exemplo, o contexto cultural anglo-saxão, do qual deriva o livro de Harold Bloom, há que se admitir que a polêmica em torno da definição de um cânon literário, ou mais abrangentemente cultural, encerra implicações da mais alta relevância para a redefinição e realinhamento dos quadros culturais contemporâneos. Pois o que aí está em questão não é meramente a legitimidade estético-cultural de uma obra tida como canônica, mas também, senão sobretudo, os fatores de ordem ideológica que recortam a identidade do cânon nos quadros da cultura. E se hoje tantos ventos polêmicos varrem o Olimpo onde antes mais solidamente se firmara o perfil canônico da cultura anglo-saxônica, ou mais amplamente ocidental, tal fato resulta fundamentalmente da redefinição do lugar ocupado por grupos até recentemente submetidos a uma posição de inferioridade sócio-cultural. Na medida em que agentes intelectuais procedentes desses grupos passam a intervir num espaço antes praticamente monopolizado pela cultura que, em tom francamente depreciativo, se tem caracterizado como WASP (White Anglo-Saxon Protestant), a solidez do cânon passa a ser questionada com veemência suficiente para inquietar as correntes mais elitistas e conservadoras empenhadas no debate cultural contemporâneo.

Mas meu assunto é cultura brasileira e mais especificamente o lugar ocupado por CG&S nos seus quadros gerais. Pareceu-me oportuno principiar pela menção ao livro de Harold Bloom e ao cânon da cultura brasileira precisamente porque a obra-prima de Freyre ocupa no cânon da Veja uma posição privilegiada, ficando abaixo apenas, e imediatamente, de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Seria porém efetivamente necessário recorrer à enquete da Veja para se reconhecer a magnitude da obra de Gilberto Freyre? Estou certo de que não. Desde 1933, ano em que pela primeira vez foi submetida ao escrutínio do leitor brasileiro, CG&S se impôs como uma obra-prima. E deriva essa qualidade inequívoca não da circunstância, própria de certas obras-primas, de integrar-se a uma categoria de grandes obras cujos méritos e valores predominantes estão já estabelecidos nos quadros clássicos da tradição cultural. Se parte dos seus méritos deriva dessa corrente, ou a ela se associa, outra parte, talvez a mais significativa, intervém nos quadros da cultura brasileira distinguida pela força estilística impressa à empresa de reinterpretação do passado patriarcal brasileiro. Deriva ainda dessa combinação inédita entre o tom ensaístico firmado na sólida formação sócio-antropológica do autor e o raro domínio dos instrumentos expressivos hauridos na intimidade que Freyre desde cedo sedimentara no estudo apaixonado das artes e da filosofia, das línguas e da literatura.

Uma apreciação genérica da fortuna crítica de CG&S de pronto revela que a recepção da obra tem sido quase unanimemente favorável. Se digo quase unanimemente é porque tenho em mente duas ordens de restrição que merecem ser explicitadas e discutidas. A primeira remete ao tom reprovador proveniente da crítica de feição mais conservadora. Um exemplo frisante seria o artigo publicado por Afonso Arinos de Melo Franco em 1934. Embora tenha a lucidez de identificar na obra de Freyre a marca do grande livro, repele no livro a linguagem nele adotada, que lhe soa de pouca dignidade. Nas suas palavras,
“... sua língua deve ser simples e nossa, não julgo indispensável que seja chula, impura e anedótica, tal como aparece em tantas das suas páginas. É pouco técnico esse linguajar. Pouco científico. Dá ao livro um aspecto literário que o seu assunto e as suas graves proporções não comportam”. (“Uma obra rabelaisiana”, in Edson Nery da Fonseça, ed., Casa-Grande e Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944).
Caberia ainda agregar a este item a crítica praticada por intelectuais de peso menor, quando não simplesmente nulo. Quem hoje sabe dos críticos de formação católica mais conservadora que acolheram com indignação o tratamento conferido por Gilberto Freyre ao papel desempenhado pelos jesuítas no processo da formação colonial brasileira de par com o relacionamento entre vida religiosa e sexualidade no âmbito da família patriarcal?

A segunda ordem de restrição deriva da crítica que, demasiado aderente às circunstâncias em que é produzida, tende a reduzir a obra à ideologia, tanto a ideologia nela própria identificável quanto a que exprime seu autor enquanto cidadão e indivíduo atuante no debate político e cultural. A melhor ilustração seria, neste ponto, a crítica vigorosa, lastreada em grande força argumentativa, desfechada por Dante Moreira Leite no seu admirável O Caráter Nacional Brasileiro e a de Carlos Guilherme Mota em Ideologia da Cultura Brasileira. Sintomaticamente, ambas as críticas, entre as mais duras e ressoantes já lançadas contra a obra de Gilberto Freyre, foram publicadas nos anos 1960 e 1970, momento em que mais se patentearam, contra o pano de fundo do regime militar, as posições mais reacionárias do autor de CG&S.

Embora consciente de que, no trato dessa matéria, já se vai banalizando a referência ao prefácio assinado por Antonio Candido em 1967 e agregado à 5ª. edição de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, parece-me impossível aqui omitir trechos do seu ensaio-depoimento, já que ninguém melhor que ele soube sintetizar o significado profundo que CG&S, Raízes do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo, este de autoria de Caio Prado Jr., tiveram para a sua geração e para as que a sucederam.
Referindo-se aos três livros acima, cuja integridade canônica não foi ainda refutada por nenhum estudioso de mérito, assim se exprime Antonio Candido:
“São estes os livros que podemos considerar chaves, os que parecem exprimir a mentalidade ligada ao sopro de radicalismo intelectual e análise social que eclodiu depois da Revolução de 1930 e não foi, apesar de tudo, abafado pelo Estado Novo”. (“O Significado de Raízes do Brasil, in Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. 8ª. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975, pp.XI-XII
)
Logo em seguida, referindo-se especificamente ao impacto causado por CG&S junto à geração de que fazia parte, externa o crítico um juízo que, deliberadamente expresso no plural, traduz não só um ponto de vista pessoal, mas um modo de leitura e apreciação compartilhado por toda uma corrente geracional:
“Era justamente um intuito anticonvencional que nos parecia animar a composição libérrima de Casa-Grande & Senzala, com a sua franqueza no tratamento da vida sexual do patriarcalismo e a importância decisiva atribuída ao escravo na formação do nosso modo de ser mais íntimo. O jovem leitor de hoje não poderá talvez compreender, sobretudo em face dos rumos tomados posteriormente pelo seu autor, a força revolucionária, o impacto libertador que teve este grande livro”. (Idem, pp. XI-XII).
Há nesta citação um ingrediente de fundo ideológico que interessa explorar no contexto dos propósitos norteadores deste artigo. Receoso de que o leitor contemporâneo não alcançasse apreender a real importância “daquele” Gilberto, o Gilberto Freyre que no entender de Antonio Candido passara a adotar atitudes francamente identificadas com as forças mais conservadoras da sociedade brasileira, enfatiza o crítico o caráter revolucionário e impactante contidos em CG&S. Como tantos que têm intentado caracterizar ideologicamente Gilberto Freyre, me parece que aqui confunde ele as posições momentâneas tomadas por Gilberto Freyre com o que muito inapropriadamente chamarei de “caráter ideológico” do autor. Ora, parece-me um equívoco distinguir ideologicamente “este” “daquele” Gilberto. Pois se o leitor põe entre parênteses as posições políticas momentâneas do autor e lê a “ideologia” que lhe percorre de ponta a ponta o conjunto da obra produzida, sem muita dificuldade se vai dando conta de que o Gilberto mais profundo é entranhadamente um conservador. Desde os escritos da juventude até os da velhice, aqui incluídos os escritos do Gilberto que ostensivamente emprestou apoio intelectual e moral ao regime militar, nitidamente se desenha o perfil de um intelectual ostensivamente imantado ao culto da tradição, sempre resistente às forças socioculturais passíveis de transpor o Brasil para um mais avançado padrão de modernidade cultural. A questão que neste ponto me parece mais relevante, diria a questão verdadeiramente decisiva, foi proposta, embora não resolvida, por Darcy Ribeiro.

Quando Gilberto Freyre era abertamente execrado pela nossa inteligência de esquerda, atitude que de resto me pareceria acertada se restrita às contingências ideológicas que a inspiravam, generalizou-se em torno à sua obra uma situação similar àquela que na Argentina afetou a obra de Borges. Foi então que se tornou moeda corrente combatê-lo e negá-lo não a partir de uma análise efetiva da sua obra, mas sim a partir de uma atitude de negação fundada na ignorância pura e simples. Em suma, intelectuais e estudantes, estes frequentemente por aqueles inspirados no que me parece ser um dos mais deploráveis modos de intolerância, tratavam a pontapés uma obra e um autor dos quais tudo ignoravam.

Foi dentro dessa atmosfera de hostilidade iletrada movida contra Gilberto Freyre que Darcy Ribeiro escreveu um ensaio de apreciação geral incorporado, em forma de prefácio, à edição venezuelana de CG&S. (Ver “Gilberto Freyre: Casa-Grande & Senzala”, in Darcy Ribeiro, Ensaios Insólitos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1979).
Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo insaciável de Freyre, cita o antropólogo alguns elogios, merecidos, a ele feitos no Brasil e no estrangeiro por figuras intelectuais de renome. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvores, não reluta entretanto em enunciar o elogio máximo: CG&S é “...a obra mais importante da cultura brasileira”.

Esboçada a apresentação desse ensaio que importa aqui comentar, retomo afinal o que acima referi como sendo a questão verdadeiramente decisiva proposta, se bem que não integralmente resolvida, por Darcy Ribeiro. Formulando-a em termos de franca perplexidade, assim a enuncia:
“Sempre me intrigou e me intriga ainda que Gilberto Freyre sendo tão tacanhamente reacionário no plano político – em declaração recente chega a dizer que a censura da imprensa é, em geral, benéfica e que nos Estados Unidos a censura é mais rigorosa do que em qualquer outro país do mundo – tenha podido escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo”. (Idem, p. 64)
A questão decisiva consistiria, pois, em explicar o relacionamento contraditório entre o autor e a obra. Somente a crítica primariamente ciosa de deduzir explicações positivistas simplificadoras das complexas mediações inscritas no relacionamento entre esses dois termos, o autor e a obra, ousaria presumir que a obra não passaria, no final das contas, de uma expressão necessária da ideologia abraçada pelo homem que a escreveu. Tanto a história das artes e da literatura quanto a própria história do pensamento social encerram notórios exemplos de obras revolucionárias assinadas por autores conservadores, assim como, contrariamente, obras irrelevantes inspiradas por belos e generosos propósitos de natureza político-ideológica.

Intentando decifrar o enigma imposto pela obra, algo muito além da distinção feita por Antonio Candido entre “aquele” e “este” Gilberto, reitera Darcy Ribeiro no corpo do seu ensaio a questão que confessadamente o intriga. A decifração resultante das reiterações e argumentos que desenvolve residiria num artifício metodológico peculiar à legítima investigação de base antropológica: a divisão epistemologicamente fecunda entre o familiar e o estranho, entre o movimento de empatia confundindo o investigador com o seu objeto e o movimento de estranhamento desdobrando-se na direção contrária. Melhor dar a palavra ao próprio ensaísta:
“Voltemos, porém, à nossa indagação original: o que teria permitido a GF escrever CG&S? A razão preponderante é ser ele um ambíguo. Por um lado, o senhorito fidalgo evocativo de um mundo familiar, de um mundo seu. Por outro lado, o moço formado no estrangeiro, que trazia de lá um olhar perquiridor, um olho de estranho, de estrangeiro, de inglês. Olho para quem o familiar, o trivial, o cotidiano – e como tal desprovido de graça, de interesse, de novidade – ganhava cores de coisa rara e bizarra, observável, referível. Combinando as duas perspectivas nele interiorizadas, sem fundi-las jamais, GF viveu sempre o drama, a comédia – a novela, na verdade – de ser dois: o pernambucano e o inglês”. (p. 73)
A ênfase com que Darcy Ribeiro revisa Gilberto Freyre para o pensamento de esquerda, depois de assentadas as apreciações vigorosamente negativas contidas em obras como O Caráter Nacional Brasileiro e Ideologia da Cultura Brasileira e o tom de alto louvor que imprime à sua celebração do sociólogo pernambucano aparentam haver deslocado para um plano de irrelevância as muitas e severas restrições que lança contra interpretações contidas em CG&S. Assinala, por exemplo, como o emprego de instrumentos analíticos cedidos pela psicologia à obra de Freyre presta-se, em alguns momentos, a exercer papel puramente psicologizante no plano da interpretação efetiva de fenômenos socioculturais brasileiros. Seria o caso da função explicativa atribuída ao sadomasoquismo. No entender de Darcy Ribeiro, que me parece acertado, para Gilberto Freyre o despotismo das nossas classes dominantes “não seria mais que um atavismo social”, uma evidência do masoquismo característico do brasileiro comum (conferir pp. 70 e 86). Tiradas desse tipo, apressa-se Darcy Ribeiro em o demonstrar, iluminam com inequívoca nitidez no corpo de certas interpretações de CG&S “uma tara direitista gilbertiana”.

Os guardiães provincianos da glória de Gilberto Freyre, que hoje interferem entre o leitor e a obra de modo tão negativo quanto antes interferia a identidade ideológica viva e atuante do autor, tanto aparentam deleitar-se com o tom predominantemente celebratório do ensaio de Darcy Ribeiro que as restrições nele contidas, tal como a exposta no parágrafo acima, lhes passam despercebidas, como que rebaixadas a um nível de improcedente irrelevância, repousando diluídas sob o verniz dos justos louvores firmados pela letra apaixonada do autor de Maíra.

Retomando porém a recepção crítica dos anos trinta, foi enorme o impacto causado de imediato por CG&S no ambiente intelectual brasileiro. Baseado nas evidências fornecidas pela fontes documentais que reúne e comenta em Casa-Grande & Senzala e a crítica brasileira de 1933 a 1944, assinala Edson Nery da Fonseca a repercussão alcançada pela obra-prima de Gilberto Freyre nos círculos da crítica nacional durante esse período. A leitura dos documentos por ele reunidos comprova, sem dúvida, a consagração conferida a CG&S pelos nomes mais eminentes da inteligência brasileira. Entre as duas datas acima referidas assistiu-se à publicação de artigos e ensaios nos quais se manifesta a recepção entusiasmada da melhor crítica militante. Embora bastante diferenciados do ponto de vista da formação intelectual e ideológica, escritores como Manuel Bandeira, João Ribeiro, Roquette-Pinto, Miguel Reale, Agrippino Grieco, Nelson Werneck Sodré, Edison Carneiro, Sérgio Milliet, Álvaro Lins, Wilson Martins, entre tantos outros, convergem no tom elogioso com que aprovam a obra de Gilberto Freyre. Observa-se aqui, entretanto, uma omissão intrigante: Mário de Andrade.

Personagem central do Modernismo proveniente da Semana de Arte Moderna, estudioso e pesquisador insaciável, ávido de tudo ler, divulgar e criticar, não deixa ele, contudo, nenhum trabalho dedicado à apreciação de CG&S ou às duas outras obras de Gilberto Freyre publicadas nos anos trinta: Sobrados e Mucambos e Nordeste. Dada a centralidade do papel que desempenhou no processo cultural brasileiro entre 1922 e 1945, ano em que morreu, acrescida da excepcional amplitude de sua formação de intelectual militante, seria absurdo supor que Mário de Andrade não leu CG&S. Tanto é isso verdade que a mais notável estudiosa de sua obra, Telê Porto Ancona Lopez, anota esta observação no livro em que trata precisamente de rastrear o processo de formação intelectual e ideológico de Mário de Andrade:
“Na bibliografia, no Prefácio e nas notas para a Introdução de Na Pancada do Ganzá, cita principalmente Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre. Foram esses autores os que formaram a base dos conhecimentos antropológicos e sociológicos que aplicou no Brasil”. (Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1972, pp. 86-7).
Logo, fica aí comprovado que o silêncio de Mário de Andrade de modo algum se explica pelo desconhecimento da obra. É sem dúvida intrigante esse silêncio interposto entre os dois escritores que foram provavelmente os mais importantes e influentes intelectuais brasileiros nos anos trinta. Haveria aí algo mais que a discreta, sobretudo de parte de Mário, rivalidade entre dois intelectuais disputando posições de liderança? Como me confesso incapaz de satisfatoriamente responder à questão por mim próprio introduzida, deixo-a suspensa no ar ou na mente do leitor curioso.
Considerando todas as evidências disponíveis, este artigo registra apenas algumas entre as mais notórias e notáveis, me parece desnecessário insistir ainda sobre o impacto provocado por CG&S desde sua publicação em 1933 e sua intocada permanência na linha do presente. Intentei considerar, ainda que muito genericamente, dois fatores negativos interpostos entre a obra e o leitor: a tacanhice reacionária de Freyre, para valer-me aqui de uma expressão empregada por Darcy Ribeiro, e, mais recentemente, o controle intolerante da sua glória exercido por guardiães provincianos capazes da proeza de serem ainda mais gilbertianos do que o próprio Gilberto. Se contra o primeiro fator, dominante nas décadas de 1960 e 1970, investiu certa corrente crítica de esquerda fixada mais no ajuste de contas ideológico do que na apreciação isenta da obra, daí resultando erros de enfoque e atitudes de intolerância neste artigo anotados, contra o segundo se batem em especial estudiosos independentes atuantes no Recife tanto louvado e amado por Gilberto Freyre.

Mas o balanço geral que se poderia fazer, e aqui não faço, seria indiscutivelmente animador. Combatido e negado notadamente durante os anos 1960 e 1970, em larga medida devido ao deplorável apoio que ostensivamente emprestou ao regime militar, já agora se nota a emergência de estudos orientados para o objetivo de reavaliar, à margem de implicações ideológicas momentâneas, o significado mais permanente da obra de Gilberto Freyre.

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