quinta-feira, 18 de novembro de 2010
Kinsey
Bill Condon, diretor e roteirista do filme Kinsey, usa imagens e manchetes de época para explicitar o impacto extraordinário de O Relatório Kinsey (The Kinsey Report) na sociedade americana quando foi lançado em 1948. À parte o exagero inevitável das manchetes de jornal, o efeito do relatório foi semelhante a uma bomba atômica lançada sobre a mentalidade puritana da época. É preciso um considerável exercício de imaginação para que adequadamente se aprecie a repercussão de obras que irrompem na cena cultural abalando ideias feitas, preconceitos e toda sorte de convenção social. Foi o que aconteceu com a obra de Alfred Kinsey (Liam Neeson).
Conviria no entanto ressaltar que o exercício de imaginação aqui proposto, necessário de resto em toda apreciação de épocas históricas distintas do presente, não supõe a superação das barreiras e repressões acima sugeridas e bem ativas quando Kinsey publicou seu relatório. Bastaria lembrar que o filme, antes mesmo de ser lançado, provocou fortes reações típicas da época de Kinsey. A mãe de Liam Neeson, por exemplo, recebeu cartas ameaçadoras simplesmente porque este aceitou interpretar o papel de Kinsey. Lançado durante o governo ultraconservador de Bush, o filme provocou muitas outras reações que evidenciam o quanto a mentalidade puritana continua viva nos EUA. De fato, a história cultural americana é assinalada desde sua origem por duas tradições que continuamente se chocam: a puritana e a liberal. Kinsey e sua obra constituem expressão ímpar da segunda. Embora o Brasil se caracterize de modo bem diferente, não faltaria quem o dissesse oposto, também aqui se chocam não bem o puritanismo e o liberalismo, mas digamos a permissividade e o preconceito. Prefiro usar esta polaridade discutível por supor que nossa repressão sexual é mais difusa e portanto privada das âncoras institucionais mais definíveis no contexto cultural americano.
Embora a narrativa obedeça a um princípio nitidamente biográfico, convém por isso mesmo ressaltar que o roteiro é baseado no romance The Inner Circle, de T. C. Boyle. Bill Condon escreveu e dirigiu o roteiro. Outro grande filme que também dirigiu e escreveu, novamente adaptado de um romance, é Gods and Monsters, com soberbas interpretações de Ian McKellen e Lynn Redgrave, que aliás desempenha um curto e marcante papel em Kinsey. Além do artifício biográfico que estrutura a narrativa, esta se desdobra mimetizando a relação entre um pesquisador, os próprios assistentes de Kinsey, e Kinsey, que responde as questões propostas no questionário.
O Relatório Kinsey é baseado numa exaustiva e criteriosa pesquisa restrita à sexualidade masculina. Obsecado pelo assunto, cuja repercussão aguçou ainda mais sua obsessão, Kinsey logo se atirou apaixonadamente à elaboração do relatório relativo à sexualidade feminina, publicado cinco anos depois do primeiro. Sem dúvida, ambos concorreram de forma decisiva para modificar o comportamento sexual dos americanos numa época em que os costumes eram de uma rigidez puritana inconcebível para aqueles que hoje desfrutam de modo inconsciente da liberdade rotinizada pelas conquistas liberais emergentes nas últimas décadas.
Quem quer que tenha sofrido traumas decorrentes da repressão imposta à sexualidade, e acredito que todos direta ou indiretamente sofremos esse tipo de experiência, poderá melhor compreender diante desse filme impressionante o quanto devemos à ação iluminista desempenhada por Kinsey e todos que colaboraram para transformar seu projeto em realidade. Quem não viveu (na família, na escola, no seu círculo de relações íntimas) traumas associados a alguma história envolvendo práticas sexuais visadas e reprimidas pelos costumes dominantes no meio em que se formou e definiu uma biografia? Enquanto indivíduo, Kinsey é apenas uma variação singular das infinitas variações compreendidas no conjunto das nossas biografias. Seu conflito nuclear está bem caracterizado na relação com o pai (interpretado por John Lithgow), um professor puritano ao extremo da caricatura. Um analista de botequim poderia razoavelmente argumentar que seu combate obsessivo em favor da liberação sexual seria sintoma do ódio desfechado contra o pai e sua sufocante mentalidade repressiva.
Parece-me relevante chamar atenção para o fato de que Kinsey, o inventor da sexologia americana, não foi um psicólogo ou psicanalista, mas sim um zoólogo de formação. Isso importa de forma decisiva, suponho, para melhor compreendermos a forma como caracteriza o comportamento sexual na sua obra. Bill Condon traduz de forma adequada no contexto do filme a concepção comportamental de Kinsey. Ela fica evidente em algumas cenas fundamentais do filme. Por exemplo: quando se envolve numa relação homossexual com Clyde Martin (Peter Sarsgaard), seu principal assistente. Ao desvelar o caso para sua mulher (Clara McMillen, interpretada por Laura Linney), esta fica compreensivelmente chocada. Tentando justificar sua traição, ele alega que a sexualidade humana é fruto de pura convenção social. Ela então retruca, em termos diferentes dos que emprego, que sofremos quando alguém que amamos transgride as convenções que regulam nossas práticas sexuais, nossas formas de relação amorosa.
Também no final do filme Clyde pergunta a Kinsey por que ele nunca se referiu ao amor na sua obra. Porque o amor não pode ser medido, quantificado, e assim convertido em matéria de ciência. É aí que está o cerne da questão. Isso explica, noutras palavras, porque Kinsey sempre reduziu o comportamento sexual do ser humano a uma dimensão restritamente fisiológica. Como zoólogo, ele tendeu a sistematizar um método de pesquisa no qual a sexualidade humana é reduzida à dimensão animal ou biológica. Ignorou assim uma distinção elementar nos domínios da sociologia e da antropologia. Ela consiste no reconhecimento de que a espécie humana se distingue por pertencer a dois reinos que se relacionam de modo complexo: o da natureza, ou da biologia, e o da cultura. É isso o que nos singulariza enquanto espécie imprimindo à nossa condição um caráter único que pulsa na raiz da nossa natureza insolúvel. Quero dizer, não há nem acredito que um dia encontremos explicação pacificadora para nossa complexa constituição.
Retendo minha argumentação na esfera restrita que importa para a compreensão do filme, a sexualidade, parece-me evidente que nossas práticas sexuais não encontram paralelo em nenhuma outra espécie. Enquanto a sexualidade das demais é regida por disposições biológicas fixas, que poderíamos designar como instinto, a humana se distingue por sua espantosa diversidade, cada uma delas obedecendo a códigos morais igualmente diversos. Isso é uma evidência meridiana do quanto contrariamos os códigos da natureza. Kinsey parece incapaz de compreender essa distinção fundamental. Daí a facilidade, melhor diria a inconsciência, com que compara a sexualidade humana à de outras espécies com uma ignorância sócio-antropológica somente concebível num zoólogo isento da mais elementar iniciação antropológica.
Os resultados dessa sua inconsciência são previsíveis e de resto conferem grande força dramática ao filme. Eles se manifestam inicialmente no já aludido affair homossexual de Kinsey com Clyde; depois no envolvimento sexual de Clyde com Clara; depois entre os casais diretamente associados à pesquisa dirigida por Kinsey. Por essas e outras, sobretudo por força da obra explosiva que deu a público numa atmosfera moral incomparavelmente mais repressiva do que a do presente, Kinsey foi e é ainda vítima de muitas acusações chocantes, algumas comprovadamente caluniosas. Embora não o conheça o suficiente para tomar posição contra ou a favor das muitas acusações que pesam sobre sua obra e biografia, posso com certeza concluir que a calúnia sempre cercou e cercará aqueles que ousam desafiar os preconceitos e convenções dominantes no seu tempo, notadamente quando a matéria em questão é nossa sexualidade.
Apesar das restrições aqui expostas, reitero por fim em tom de franca admiração o quanto Kinsey contribuiu para reduzir o obscurantismo tacanho que envenenou nossa experiência sexual e infelizmente se mantém ainda vivo na nossa sociedade. Basta que se considere o tom obscurantista da polêmica que cerca o aborto no Brasil. Se o obscurantismo soa absurdo na atmosfera permissiva em que vivemos, chega às raias do incompreensível quando corremos a vista pela paisagem moral que desregula os costumes sexuais observáveis no Brasil, tantas vezes castigado por humoristas e críticos sociais como Brasil bordel, tantas vezes no estrangeiro reduzido a estereótipos sexuais grosseiros. Se há um terreno no qual prática e consciência drasticamente se desentendem, não há dúvida de que é o da sexualidade.
Ficha técnica:
Kinsey (EUA, 2004)
Direção e roteiro: Bill Condon
Alfred Kinsey (Liam Neeson)
Clara McMillan (Laura Linney)
Clyde Martin (Peter Sarsgaard)
Alfred Kinsey, pai (John Lithgow)
Wardell Pomeroy (Chris O´Donnell)
Paul Gebhard (Timothy Hutton)
Alan Gregg (Dylan Baker)
Lynn Redgrave.
Recife, 7 de novembro de 2010.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário