segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O transitório e o Permanente




A história da cultura é um vasto cemitério de obras cadentes. A cada geração, senão a cada década, repontam no horizonte das humanidades uma sucessão de obras saudadas pela crítica e pela comunidade dos leitores como obras-primas ou definitivas. Logo porém o tempo, juiz último e implacável, procede a uma operação rotineira de filtragem e decantação. De umas retém valores de referência e fontes de pesquisa para o especialista; de outras, virtudes medianas que seduzem o leitor sedento de prazer gratuito e entretenimento ou saber livremente desinteressado. Uma outra categoria, a majoritória, simplesmente mergulha no esquecimento, dando assim provas cabais do seu interesse transitório. Uma última, reserva das raridades autênticas, sobrevive a todas as provas do tempo e ao capricho das circunstâncias elevando-se à categoria de obra definitiva. Casa-Grande & Senzala inscreve-se, sem dúvida, nesta categoria.

Há obras-primas que são acolhidas com hostilidade mesmo pela crítica mais qualificada. Seu teor de inovação ou ruptura é tão radical que tem o poder momentâneo de desnortear o receptor munido de códigos e instrumentos inadequados para apreender-lhes a real dimensão intelectual e estética. Talvez por isso todo grande crítico incorreu em graves erros de apreciação. Basta que se pense nos erros de gente como Virginia Woolf, Edmund Wilson, Lionel Trilling, Harold Bloom e dos brasileiros Mário de Andrade e Antonio Candido.

Casa-Grande & Senzala passou ao largo desse destino. Afora um ou outro crítico menor – ou caturra, como prezava dizer Gilberto Freyre – a melhor crítica brasileira teve a lucidez de saudar com entusiasmo o surgimento da obra. Algumas das suas qualidades mais notáveis, já tantas vezes reiteradas, traduziam-se na originalidade do estilo e da exposição da matéria, na linguagem desatada, mas de forte senso artístico, na reinvenção interpretativa do nosso passado. Desde então, Gilberto Freyre e sua obra-prima, somada a outros títulos igualmente fundamentais como Sobrados e Mucambos e Nordeste, ocuparam posição privilegiada nos quadros gerais da cultura brasileira.

O consenso que assinalava a excelência de Casa-Grande e Senzala foi porém abalado nos anos sessenta e setenta. A imposição da ditadura militar, e seu endurecimento a partir de 1968, atingiu de modo traumático as artes e a cultura brasileira num momento de intensa fermentação e atividade criadora. A perseguição movida pelo regime militar contra intelectuais, artistas e estudantes, institucionalmente concentrados na esfera acadêmica, produziu reações gerais de resistência ora ativa, ora passiva. A última forma de resistência, a passiva, ou o auto-exílio como forma de negação da intolerância e violência institucionalizadas, acentuou-se por motivos óbvios durante os chamados anos de chumbo. Dentre os intelectuais de renome e irrecusável influência crítica e institucional, Gilberto Freyre foi dos raros a apoiar a ditadura. Falta ainda um pesquisador paciente e isento interessado em revisar seus artigos publicados – na imprensa local, sobretudo - durante esse período sombrio. Em resposta, a esquerda oprimida e perseguida deu-lhe um troco de intolerância silenciando sua obra nas universidades durante cerca de duas décadas. Quando sobre ela se pronunciou, mesmo através das melhores vozes críticas, foi em tom de combate ideológico ou ajuste de contas. Esse espírito ou intenção é sensível, por exemplo, em obras de valor crítico inegável como O Caráter Nacional Brasileiro, de Dante Moreira Leite, e Ideologia da Cultura Brasileira, de Carlos Guilherme Mota. Outro dado significativo para que melhor se compreenda a resistência ideológica desfechada contra a obra de Gilberto Freyre evidencia-se na relativa sobreestima concedida a seus grandes concorrentes nos estudos de interpretação do Brasil: Mário de Andrade, Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Antonio Candido.

Passado o vendaval, e refeito o cenário da nossa precária democracia política e cultural, a obra foi gradualmente reconquistando sua autonomia abalada pelos erros ideológicos em que incorrera seu autor. O Grande marco da revisão crítica de Casa-Grande e Senzala foi certamente o ensaio-prefácio corajosamente assinado em 1979 por Darcy Ribeiro para a edição venezuelana da obra. Começando pelo registro bem-humorado do narcisismo de Gilberto Freyre, cita o antropólogo alguns elogios feitos a Freyre dentro e notadamente fora do Brasil. Embora frisando somar-se contrafeito à corrente dos louvadores, rende-se ele à grandeza da obra saudando-a como a mais importante da cultura brasileira. Mas o ensaio de Darcy Ribeiro não se distinguiria como a melhor síntese crítica de Casa-Grande e Senzala se se detivesse no elogio sem fundamentação interpretativa. Sendo assim, cuida em seguida de articular com clareza o problema cuja tentativa de resposta é o próprio ensaio-prefácio. Noutras palavras, pergunta-se ele como um autor tão “tacanhamente reacionário no plano político”, cito literalmente Darcy Ribeiro, foi capaz de “escrever esse livro generoso, tolerante, forte e belo.”

A resposta é complexa e, no meu entender, Darcy Ribeiro não a fornece integralmente. O que porém mais importa destacar no problema que nos propõe é a distinção necessária entre o autor e a obra. Como o leitor em geral, e mesmo a crítica mais qualificada, tendem com freqüência a confundi-los, há sempre quem queira julgar a obra pelas posições políticas do autor. Foi isso, em suma, o que pôs momentaneamente em questão o caráter permanente de Casa-Grande e Senzala.

Assentada a poeira das batalhas ideológicas, nota-se a crescente retomada de interesse pela obra. Estudiosos de variadas formações e objetivos voltam a ressaltar sua originalidade e permanência. O pioneirismo de muitos dos seus temas, valores, fontes e processos de apreciação, tão grosseiramente incompreendidos durante décadas, o que forçava o narcisismo de Freyre a vir a público chamar a atenção para si próprio com reiteração insistente e por vezes mesmo ridícula, é enfim reconhecido e louvado. O irônico é observar que tal reconhecimento deriva muitas vezes do prestígio atribuído à nova história nos nossos círculos intelectuais e acadêmicos. Como a historiografia européia, sobretudo a francesa, estimulou no Brasil os estudos e pesquisas orientados para a história do cotidiano, a história oral, a história das mentalidades etc., muitos dos nossos estudiosos descobrem agora com espanto que Gilberto Freyre já fazia tudo isso nos anos trinta. Isso prova, antes de tudo, a persistência da formação colonizada do intelectual brasileiro.

A fortuna crítica de Casa-Grande e Senzala e, mais amplamente, do conjunto da obra de Gilberto Freyre, é já considerável e crescente. É entretanto oportuno salientar que grande parte dela se reveste de tom fortemente celebratório e apologético. Diria, nesse sentido, que vários dos nossos autores canônicos têm sido melhor afortunados que Freyre. Tenho em mente Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Guimarães Rosa. Dada a singularidade que os caracteriza, seria descabido considerar o problema acomodando-os numa medida comparativa comum. O que intento acentuar nesta observação ligeira é o limitado alcance qualitativo da fortuna crítica freyreana em face da quantidade que se avoluma.

As obras permanentes são permanentes, entre outras coisas, por prescindirem da crítica apologética assinada pela corte dos epígonos e diluidores. Importa, portanto, considerar Casa-Grande & Senzala à margem de qualquer intuito oficialista ou apologético. Confesso estar enjoado de certa crítica gilbertiana diluída em variações do tema “eu e Gilberto Freyre”. O crítico, e notem que me refiro ao crítico autêntico, existe e escreve para servir à difusão das obras de excelência, para servir às obras verdadeiramente originais. Na nossa era saturada de narcisismo, entretanto, o crítico mais e mais se comporta como se ele e sua produção transitória e parasitária se sobrepusessem ao restrito universo das obras permanentes. É por constatar essa inversão de valores no mundo da cultura que me arrisco a concluir em tom desmedido ou até paradoxal. Quero dizer: esqueçamos a crítica deslocando assim nossa atenção dos valores transitórios para os permanentes. Diria mais: esqueçamos Gilberto Freyre, esqueçamos o autor, pois o que fica e por fim importa é a obra.

Nota: Artigo publicado na revista Continente Multicultural, Ano III, no. 33, Setembro de 2003.

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