segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sob o Signo da Ambiguidade




Quando William Empson publicou Seven Types of Ambiguity em 1930 descortinou no horizonte da crítica literária novas possibilidades de interpretação e sentido. Entre o texto e o crítico, ele sublinha a relevância da ambigüidade enquanto figura de indeterminação semântica investida, por consegüinte, de múltiplos sentidos. O relevo que confere à conotação verbal amplifica-se no conceito extenso de ambiguidade sugerido já no título do seu livro. Se a ambigüidade, compreendida no trato corrente da língua, é quase sempre sintoma ou evidência de defeito expressivo, na linguagem artística, contrariamente, é prova de qualidade estética. Parece hoje ponto pacífico na crítica e na teoria da arte o fato de que quanto melhor é uma obra de arte, maior é sua carga de indeterminação semântica. Seria este, em suma, um fato inscrito na raiz mesma da força de revitalização e permanência observável em toda grande obra que, enquanto tal, revela-se capaz de sobreviver e adequar-se às circunstâncias mutáveis da história. Transcendendo as circunstâncias imediatas inscritas na sua gênese, a obra clássica – compreendida aqui não no seu sentido estético, mas no sentido da obra triunfante em face do tempo – é por definição a obra ambígua, a obra cujo valor de indeterminação sobrepõe-se às condições momentâneas da criação.

Foi refletindo sobre a questão acima esboçada que me ocorreu associar neste texto provisório o livro de William Empson ao problema da ambigüidade compreendido não só na obra-prima de Gilberto Freyre, mas também, e sobretudo, na personalidade complexa – e ambígua, vale a reiteração – de um sociólogo que fez da ambigüidade um modo de ser e de produzir cultura letrada. Dizendo-se um homem muito consciente de si próprio, consciência tantas vezes expressa em formas obsessivas de auto-reflexão narcisista sem paralelo nas manifestações de cultura intelectual que conheço, Gilberto Freyre definia-se como um homem mais que ambíguo; definia-se como contraditório. Assim se medindo e compreendendo, não só insistentemente falou de si próprio como ambíguo e contraditório, mas também vazou e refinou um estilo regido por nítidos traços de ambigüidade e contradição.

Tentando descrever ou demonstrar meu argumento ressaltarei agora elementos ambíguos da obra de Gilberto Freyre que ilustram a sua natureza congenial imprimindo-lhe um sentido de indeterminação epistemológica desorientador do crítico convencional ou ortodoxo. Suponho que Darcy Ribeiro tinha consciência disso ao acentuar em prefácio famoso de Casa-Grande & Senzala a temeridade que seria generalizar acerca de Gilberto Freyre.

O primeiro traço de ambigüidade que me ocorre mencionar é o par empatia e estranhamento. Gilberto Freyre louvava-se por haver introduzido na língua portuguesa a palavra empatia. Frisou tal feito ao caracterizar a sociologia que praticava, em Casa-Grande & Senzala assim como no conjunto da sua obra, como uma sociologia empática. Vejamos como traduz na apreciação da obra a qualidade empática que para ela reivindica:

“Ao escrever o estudo intitulado Casa-Grande & Senzala, procurou o seu autor (...) desdobrar-se em personalidades complementares da sua e que a auxiliassem na percepção de uma realidade múltipla e complexa. Levou esse desdobramento de personalidade ao extremo arriscado, perigoso, mesmo, de, desdobrando sua personalidade de origem étnico-cultural e de formação sócio-cultural, além de principalmente européias, principalmente senhoris, procurar sentir-se também, em seus antecedentes e no seu próprio ethos, não só senhoril como servil; não só europeu como não-europeu; ou especificamente indígena, mouro, judeu, negro, africano, e, mais do que isto: mulher, menino, escravo, oprimido, explorado, abusado, , no seu ethos e no seu status, por patriarcas e por senhores”.

Sendo o título do livro do qual extraí a longa citação acima típica expressão da ambigüidade freyreana, percorrer-lhe a matéria é defrontar, a cada página, a imagem impositiva do autor que se deleita e refina no comentário de si próprio. Voltando porém à citação, o processo psicológico que descreve é complexo o bastante para desenhar em linhas nítidas a tensão entre o familiar e o estranho, ser ao mesmo tempo eu e o outro. Empenhado em descrever e interpretar um processo sócio-cultural complexo, crivado de ambigüidade e contradição, sabe o autor da necessidade de adequar o estilo e o método expositivo à natureza da matéria. Dar forma à obra significa, no caso, saltar fora dos trilhos convencionais do discurso sociológico. Seu método e estilo convizinham, portanto, com o do romancista que faz do ato de criação literária um modo de se transfigurar nas suas personagens convertendo a invenção artística num movimento de projeção e estranhamento, de expressão e perda do eu.

Mas eis que vem o crítico parcial – fundado, por exemplo, numa concepção estreitamente classista, ou marxista, do processo sócio-cultural – e acusa o autor de escrever a história da escravidão nos trópicos confinado ao ponto de vista redutor da casa-grande. O leitor consciente, entretanto, aquele munido de olhar perspectivista, sabe do risco que é generalizar sobre Gilberto Freyre. Percorrendo-lhe a obra-prima com discernimento e rigor analítico, verifica que se aqui o colonizador português é positivamente caracterizado, mais adiante o reencontra reduzido à condição de sádico espoliador do negro; se este, de seu lado, é um escravo, portanto privado da liberdade humana mínima, é também elemento concorrente de uma experiência social complexa cuja resultante é expressão vitoriosa da civilização possível nos trópicos; se a personagem da classe senhoril é, de um ângulo, enquadrada em tons românticos, doutro se despe de tintas idealizadoras ao desfechar contra a mucama invejada no seu poder de sedução carnal seu ódio e a brutalidade do seu sadismo; se a obra de catequese jesuítica é vista como aniquiladora das fontes vitais da cultura indígena, é também considerada com apreciação compreensiva e até realisticamente justificada.

Acrescentaria, no que se refere a este último caso, que Gilberto Freyre anota e comenta traços sem dúvida mais contrários que favoráveis à ação jesuítica entre os indígenas do Brasil. Comparados aos franciscanos, que no entender do autor teriam desempenhado ação missionária muito mais adequada à integração cultural do indígena, os jesuítas exerceram papel antes de tudo aniquilador ou recalcador da cultura autóctone brasileira. Não me parece, entretanto, que este fato concorra para desmentir meu argumento geral. Consiste ele, em síntese, na afirmação de que a interpretação proposta por Gilberto Freyre se fundamenta numa visão integradora de culturas, mesmo no que encerram de traços antagônicos. Ele não se cansou de reiterar isso ao usar expressões tais como equilíbrio de antagonismos. Contrastando o colonizador português com o inglês e o espanhol, caracteriza o primeiro como um contemporizador isento de ideais absolutos e preconceitos irredutíveis . Definindo a si próprio em entrevista concedida a Leda Rivas, Gilberto Freyre se diz um “harmonizador de contrários” . O título da sua obra-prima, aliás, condensa a visão integradora aqui ressaltada. Inserida entre os substantivos casa-grande e senzala, síntese simbólica dos antagonismos dominantes na sociedade patriarcal, a aditiva e, grafada &, indicia enlace dos extremos, não supressão ou relação de conflito solúvel tão-só pela via do aniquilamento de um dos termos. Os exemplos poderiam multiplicar-se, daí ser prudente neles não me alongar. O que antes de tudo intento ressaltar é o método e o estilo compositivos que rompem com a objetividade do discurso sociológico convencional tecendo a matéria da obra segundo processos similares aos da narrativa literária. Empreguei acima a expressão olhar perspectivista visando sugerir a pluridade de focos descritivos e interpretativos do autor. Melhor ir novamente à fonte própria:

“Sou escritor (...) que nas suas tentativas de captar e interpretar aspectos situados da condição humana, em geral, através da do homem tropical, especialmente da do brasileiro, em particular, vem procurando captá-los e interpretá-los por meio de várias perspectivas, por vezes simultâneas. Daí o confuso, o desordenado, o descontínuo que têm encontrado em meus trabalhos certos críticos literários” .
Passando para outro traço ambíguo da obra freyreana, retenho aqui a relação crucial entre o dado local, a região, e a visão universalista do autor. Dizendo-se com gosto um pernambucano, e mesmo um provinciano, cujas raízes por toda a vida se cristalizaram no solar de Apipucos, com igual gosto prezava-se Gilberto Freyre de ser um intelectual de formação universalista e especificamente anglófila. Fiel à província impregnada de seus traços mais típicos à exaustão descritos, interpretados e reiterados no corpo da sua obra, nem por isso dissimulava o quanto o seduziam as viagens, o sopro movente da aventura, a demanda da investigação antropológica da realidade sempre impelindo-o para outras terras e povos e culturas. Num outro livro de título também indiciador das suas ambigüidades gravou sua condição de ser dividido na sugestiva justaposição de dois substantivos: Aventura e Rotina.
Ciosos de elevar a província à dimensão do universal, são muitos os que banalizam essa relação complexa – a província e o mundo, ou ainda o particular regional e o universal de corte antes de tudo europeu – supondo que o segundo estaria de imediato contido na expressão espontânea do primeiro. Noutras palavras: entendem que na arte, quanto na atividade criadora em geral, dizer o específico da província ou da região é também dizer o que nele se contém de universalidade. É verdade que Alberto Caeiro assim se exprimiu no VII poema de O Guardador de Rebanhos:
“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo ...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...”

Convém todavia não esquecer que o tamanho de quem vê é o tamanho de Fernando Pessoa, assim como a dimensão do olhar perspectivista instalado no canto de aldeia de Apipucos é o olhar de Gilberto Freyre. Convém ainda acrescentar que o tamanho e olhar de um quanto do outro não são obra do acaso, do gênio poético ou sociológico resultantes do sopro acidental da vida. Um e outro, sabemos, conquistaram à força da experiência estudada, refletida e aprendida o poder de integrar na obra criada a ponta do particular – a aldeia ou região – à ponta alargada do universal. Importa lembrar e mesmo enfatizar esses fatos para que a gente não se acomode na visão conformista, e sempre limitadora, do provinciano que é apenas provinciano, do regional sempre exposto ao risco de dissolver-se em exotismo cultural. Como certeiramente observou o grande satírico Oswald de Andrade, outro exemplo feliz de adequação entre o particular e o universal: realizar o particular neste último sentido aqui indicado é fazer macumba para turista.

Gilberto produziu uma obra de dimensão universal a partir da sua província, ou solar, porque se formou como homem universalista. Sem o contato prematuro e fecundo com a cultura anglo-saxônica desde a infância, contato mais tarde ampliado em estudos sistemáticos no Estados Unidos sob a orientação de Franz Boas e outros notáveis intelectuais americanos e europeus, assim como outros muitos e variados meios de interação crítica com outras formas de vida e cultura, sem tudo isso simplesmente inexistiria o Gilberto Freyre autor de Casa-Grande & Senzala e outras similares expressões da nossa cultura de cunho universal. Como hoje vivemos submetidos à tirania do particular, à explosão fragmentadora dos particularismos étnico-culturais num mundo contraditoriamente mais e mais integrado por forças de extensão globalizadora, importa frisar esses sentidos contidos nas insolúveis negociações estabelecidas entre as forças da particularidade e da universalidade.
Outro par ambíguo inscrito no cerne da obra de Gilberto Freyre é aquele contido na relação entre a tradição e a modernidade. Quanta tinta, e quanta tinta obscura, já não gastamos no afã de precisar e resolver a relação entre estes dois termos ambíguos. Também aqui Gilberto se instala a seu modo e gosto e se balança entre uma e outra ponta, entre a linha da tradição, tão escavada e cultuada na sua obra e na sua vida concreta, e a da modernidade que filtrava com os instrumentos sensíveis do homem ancorado em pontos convergentes do tempo, naquelas esferas o seu tanto vagas ou fluidas do que ele veio insistentemente a chamar de tempo tríbio. Sendo tão solidamente regional e tradicional, não podia ele identificar-se com a corrente demolidora e momentaneamente irreverente e até anárquica do movimento modernista de São Paulo, a outra grande força renovadora da cultura brasileira a partir dos anos vinte, ao lado do regionalismo aqui enraizado e expandido. Decantados os excessos e equívocos em um e outro observáveis – no primeiro o deslumbramento momentâneo com o ímpeto destrutivo das vanguardas européias, no segundo a aderência reativa e por vezes provinciana aos valores específicos e irredutíveis da região – sobra a lição geral a um e outro devida: as obras definitivas do período são aquelas pautadas pela relação de equilíbrio entre a tradição e a modernidade.

Outros pares ambíguos poderiam ser aqui considerados. Se cuidasse agora de especificá-los movido pela ambição de melhor precisá-los e defini-los, talvez lograsse imprimir maior nitidez à figura compósita, ambígua e mesmo contraditória de Gilberto Freyre. Creio porém que os pares acima descritos e um tanto interpretados são já suficientes para uma compreensão provisória da personalidade do nosso autor e também da sua obra, visto que ele próprio insistiu em declarar que a obra era em muitos sentidos a projeção da personalidade que a concebera. Tendo isso em mente, procurei sugerir como no próprio estilo e método de composição da obra se traduzem os traços da ambigüidade incorporada à personalidade do autor.

Restaria ainda considerar um problema implicado no conjunto de pares ambíguos especificados neste artigo. O que parece extraordinário em Gilberto Freyre, na sua natureza confessadamente ambígua e até contraditória, é o fato de ele não materializar – seja na obra, seja na vida por ele vivida – o perfil atormentado do homem dividido. Seu confessado desajustamento cultural, decorrente de cinco anos corridos de ausência do Recife acanhado e provinciano do início dos anos vinte, poderia talvez traduzir-se em expressão machucada de divisão. Se todavia repassamos as passagens do diário em que registra esse período de reacomodação ao ambiente da sua cidade, nada encontramos de definitivamente comprobatório. É certo que alude a artigos – ou artiguetes, como pejorativamente os refere – que o tratam como se fora “...um estranho, um exótico, um meteco, um desajustado, um estrangeirado” . É certo ainda que no mesmo diário anota o medo que a morte lhe inspira. As impressões de medo e angústia são por ele registradas devido ao fato de haver participado de um almoço na companhia do pai na atmosfera mórbida da Casa Agra, conhecida funerária do Recife. O leitor todavia não surpreende na forma e no estilo do discurso nenhuma expressão viva dos sentimentos característicos de um homem atormentado.

José Lins do Rego, único amigo íntimo de Gilberto, além do irmão deste Ulisses, durante esse período de readaptação, reconstitui suas impressões acerca do amigo acentuando imagens de deslumbramento e adesão passional em face da terra amada. Por exemplo assim: “Os seus primeiros artigos eram como cartas de cronista saltando de caravela”. Ou ainda assim: “O poeta, o grande poeta, arregalava os olhos, escancarava os ouvidos, para sentir de bem perto o seu Brasil que lhe parecia, em tantas coisas, tão original, tão próprio, tão cheio de sugestões, e que para mim era como se fosse um vulgar cotidiano. (...) Fui vendo que havia o Brasil, que havia uma grandeza brasileira, com raízes sólidas plantadas pelo lusitano que tanto se desprezava. O retorno desse nativo era como o de um noivo que viesse mesmo para se casar com a terra e que se quisesse integrar inteiramente nela” . Como bem se observa, impressões distantes das duas extraídas do diário de Gilberto Freyre e impensáveis em um indivíduo dividido e atormentado. O Gilberto que nitidamente se destaca dessas imagens é o dionisíaco dos trópicos, o intérprete vitalmente otimista da cultura brasileira.

A figura do homem dividido é uma das constantes mais perturbadoras da tradição artística da modernidade. Bastaria pensar, por exemplo, nos personagens de Tolstói, Dostoievski, Tchekov, Ibsen, Pirandello, Thomas Hardy, Italo Svevo, Henry James, Joyce, T. S. Eliot... No Brasil poderíamos lembrar assim à deriva Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Drummond, Guimarães Rosa... enfim, não falta pano para as mangas. Revertendo às origens da moderna narrativa ficcional no Ocidente, mencionaria o Don Quixote, protótipo e expressão estética insuperada do ser dividido.

O que teria Gilberto Freyre de comum com os autores indicados? Releiam a primeira citação contida neste artigo e observem atentamente como ele descreve a projeção e desdobramento da sua personalidade de autor nos muitos e divergentes e até contraditórios tipos que povoam Casa-Grande & Senzala, tipos que antes se constituem segundo os modos e artifícios da criação literária do que como meros agentes sociais incorporados a uma obra convencionalmente sociológica ou histórica. Observem ainda que ele adverte para a natureza arriscada, perigosa mesmo, de tal procedimento criativo. Gilberto Freyre é o autor dividido, consciente e deliberadamente dividido, e todavia nele não surpreendo nem retenho o ranger atormentado dessas naturezas complexas e insolúveis presentes nas obras dos romancistas e poetas acima referidos.
Mário de Andrade, por exemplo – eis que novamente retomo esses paralelos sempre presentes e continuados entre ele e Gilberto Freyre -–tinha igual consciência da sua natureza dividida. Disse-o e esteticamente o exprimiu em poemas, narrativas ficcionais e na correspondência copiosa e mesmo excessiva para o gosto convencional brasileiro. Nele, o ser dividido ou ambíguo se exprime em pares tais como o tupi e o alaúde; também em metáforas poéticas como a do arlequim e derivados (cidade arlequinal, traje arlequinal, etc.), além do verso célebre: eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta. O verso seguinte (mas um dia afinal eu toparei comigo) sugere a divisão incontentada e sofrida. O homem dividido aspira àquele estado ideal de humanidade reconciliado consigo próprio. Confesso não perceber essa busca ou tormento em Gilberto Freyre. Pelo contrário, irradia ele essa energia solar própria do indivíduo integrado ao meio social em que vive. Diria mais: Gostosamente, sensualmente integrado. Traduzindo-o num outro modo de ambigüidade, diria que ele é o indivíduo dividido e todavia integrado, narcisicamente instalado no seu mundo de culto e eleição.

Ocorre-me aqui pensar num outro paralelo ligeiro, este com o crítico Walter Benjamin. Justificando grosseiramente o paralelo, fixaria já algumas afinidades de temas e de gosto entre ambos. Antes de tudo, a afinidade com a obra de Proust e o culto que a ela emprestaram. Conviria lembrar que Benjamin traduziu Proust para o alemão. Mais importante ainda, acentuavam ele e Gilberto na obra do francês uma predileção sintomática pelo exercício da memória, a memória involuntária fecundando formas de reinvenção e atualização do passado. A história da criança – eles próprios na criança que foram – ocupa lugar de eleição na obra de ambos. Também em ambos a sensibilidade para o detalhe, o dom de avivar o sentido da vida e da cultura nos objetos do cotidiano, nos traços aparentemente irrelevantes da cultura material. Mas se eram em tudo isso afins, o modo pessoalmente irredutível com que se debruçavam sobre essa matéria era inconciliável com qualquer medida comum. Pois se Gilberto era aquela expressão de energia solar acima anotada, um dionisíaco embriagado pela luz dos trópicos, sensualmente fundindo seu ser na paisagem, no mundo humano a que grudosamente se ligava, Benjamin era o ser saturnino, o melancólico tão agudamente descrito nas fotografias que são objeto da parte introdutória do ensaio Under the sign of Saturn, de Susan Sontag .

Se escrevem sobre os vencidos, o gesto dominante de Benjamin é o do melancólico, melancólico até no aceno de redenção dos vencidos. Gilberto, contrariamente, confraterniza com os vencidos quando lhes descreve a existência vencida ou malograda. E tanto confraterniza que sua propensão natural parece fixar-se na festa, na fusão dionisíaca dos diferentes, dos socialmente divididos. Gilberto age por vezes como se fosse à senzala confraternizar com a massa escrava oprimida, como se fosse gozar no corpo da negra ou da mucama e mais tarde voltasse à casa-grande saciado e integrado às correntes vitais do mundo, não obstante as divisões aberrantes que este lhe desdobrasse ante a mirada isenta de tormentos.
Outro moderno dividido e atormentado, Kafka, tão afim de Walter Benjamin, não faz muito foi admiravelmente recriado numa peça do ator e dramaturgo inglês Alan Bennett. Na cena final, composta em primoroso andamento surreal ou fantástico, Kafka participa de uma festa no céu na companhia do pai, a truculenta figura descrita em Carta a meu Pai, Carmen Miranda e, claro, Deus. E todavia sequer aí, e em meio a tais companhias – bom, esqueçamos o pai – cede ele na sua representação atormentada e catastrófica da existência. Diz assim: “I´ll tell you something. Heaven is going to be hell” Quem imaginaria o dionisíaco Gilberto anunciando o apocalipse neste ou em qualquer outro tom? Nem penando no pelourinho ou na senzala. Salve o homem alegremente dividido.

Ocorre-me admitir que talvez fosse mais apropriado e condizente com a linha interpretativa aqui sugerida substituir dividido por múltiplo. O primeiro termo, já antes o indiquei, inscreve-se no cerne da experiência da modernidade estética, e também sócio-cultural, assinalado por valores éticos e psicológicos expressos em sintomas de divisão psíquica, fragmentação, conflito intra e extra-subjetivo e, no limite, desintegração da identidade. Mário de Andrade sente-se dividido ao se multiplicar. Consideremos novamente os versos dele acima citados. Tanto é isso verdadeiro que aspira a um estado reintegrador da unidade cindida. A própria divisão implicada na radicalidade da experiência amorosa se realiza na forma de um andamento dialético insolúvel estruturado sobre o princípio da divisão: doação e perda de si no outro, comunhão e solidão amorosa . Se novamente me volto para a personalidade palpável de Gilberto Freyre, o que mais uma vez sobressai é a relação de contraste entre ele e os autores e obras aqui mencionados. Daí concluir, como no samba de Paulo Vanzolini, confiante na suposição de que me curvo à força dos fatos: salve a alegria ou integridade auto-satisfeita do homem múltiplo.

Recife, 22 de agosto de 2000.

Resumo

Este artigo intenta caracterizar alguns dos traços mais nítidos da personalidade de Gilberto Freyre associados à noção de ambigüidade compreendida enquanto conceito crítico e valor hermenêutico. O argumento baseado na ambigüidade é descrito nos pares contrastantes empatia e estranhamento, regional e universal, tradição e modernidade. Desdobra-se, por fim, nos paralelos traçados entre Gilberto Freyre e Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Walter Benjamin.

Palavras chave: Gilberto Freyre, ambigüidade, Mário de Andrade, Walter Benjamin.




Abstract

This article intends to point out some of Gilberto Freyre´s main traits of personality based upon the notion of ambiguity understood as a critical concept and a hermeneutic value. The argument develops by depicting contrasting twins as empathy and estrangement, regional and universal, tradition and modernity. At last, it ends by tracing parallels between Gilberto Freyre and Mário de Andrade, Gilberto Freyre and Walter Benjamin.

Key words: Gilberto Freyre, ambiguity, Mário de Andrade, Walter Benjamin.

Nota: Ensaio publicado na revista Ciência e Trópico, Vol. 32, No. 1, 2008. Foram suprimidas as notas de rodapé, inclusive uma longa citação extraída de um ensaio de Susan Sontag que aliás tomei como paráfrase para intitular meu ensaio.

2 comentários:

  1. Don Fernando, que bom que vc publicou no seu blogue, pois se depender da revista Inconsciência e Trópicos, dificilmente teríamos acesso a esse artigo. O website da revista diz que o último número é do ano 2000. De dez em dez anos, eles devem atualizar aquilo.

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  2. César:
    Como sempre, grato pela leitura e comentário. Ignorava o dado relativo ao website da revista. É mais uma evidência rotineira do desleixo com que são regidas as atividades patrocinadas pelo Estado à moda brasileira.
    Fernando

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