quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Alain Finkielkraut


Um coração inteligente

Alain Finkielkraut, de origem polonesa, é um ensaísta e professor que se distingue na França por ser o que noutros tempos se conhecia como intelectual público. Atualizando a expressão, diríamos que é hoje um intelectual midiático, assim como no Brasil são ou foram Paulo Francis, Marilena Chauí (entre parêntesis: onde andará a grande profetisa da ética petista na polícia? Perdão, quis dizer política. Lula explica. Se o mensalão tem uma vítima, e mais que merecida, diria ser ela.) Jurandir Freire Costa, Maria Rita Kehl, Contardo Calligaris, Marcelo Coelho e tantos outros. Finkielkraut é também um dos rebentos da geração conhecida como os novos filósofos, um grupo barulhento de jovens pós-sartreanos que fez muito barulho, como é de praxe na inteligência francesa, e bem pouca filosofia que sobreviva.

Finkielkraut reaparece na cena intelectual brasileira com um livro surpreendentemente consagrado à literatura. Começo pelo melhor, pelo que de pronto me atraiu no livro: o título. Eis um belo título: Um coração inteligente. Finkielkraut introduz seu título e a devida obra evocando a súplica que o rei Salomão fez a Deus: que Deus lhe desse um coração inteligente. A julgar pela tradição bíblica, Deus lhe deu, sim, um coração inteligente. Como há muito já não existe rei ou governante do feitio de Salomão, até porque o Deus e a política da modernidade são definitivamente entidades de ordem secular, é compreensível e até sábio o fato de Finkielkraut debruçar-se sobre as fontes da literatura tocado pela esperança de fazer do seu um coração inteligente, além de intentar comunicá-lo ao coração dividido do leitor.

Por que afirmei eu que o coração do leitor, o nosso, é um coração dividido? Porque penso que essa bela unidade expressa no titulo da obra foi cindida por forças e movimentos de ideias típicos da modernidade. Rousseau, pai fundador da filosofia e da literatura romântica, elevou a sensibilidade (isto é, o coração) à condição de ideal supremo. No outro lado do canal, na Inglaterra, Jeremy Bentham e sobretudo James Mill e seu filho John Stuart Mill expulsaram o coração do reino da inteligência ao consagrarem o princípio da utilidade como fundamento da filosofia utilitarista. Claro que simplifico a história moderna das relações entre o coração e a inteligência na modernidade. Mas o enredo geral bem pode ser assim esboçado. Esta é a cisão que percorre o espírito do livro de Finkielkraut e portanto cuidarei de a retomar mais abaixo.

Entendo que o coração inteligente é aquele que conjuga a emoção e a inteligência, a sensibilidade e o intelecto. Se é possível imaginar uma razão absolutamente fria e um coração puramente cego, temos aí o primeiro motor ou a fonte suprema da catástrofe, seja num extremo, seja no outro. É essa a consequência da cisão entre os pares complementares que são a sensibilidade e a inteligência. Como ressalta Finkielkraut, o possesso e o burocrata são perversões atuais desses pares complementares. Pervertem-nos não apenas porque os dividem, mas sobretudo porque, assim procedendo, dão um passo adiante e convertem um dos polos em ideal absoluto ou norma suprema de vida.

O possesso, sabe o leitor, é uma alusão implícita ao romance Os possessos (também traduzido como Os demônios), de Dostoiévski. Estes convertem a paixão revolucionária, ou o coração fanatizado, no absoluto que, na história política, produziu insanidades como o reinado do terror, durante a revolução francesa, o stalinismo e o nazismo. O burocrata, esse funcionário sem alma, é o carcereiro da modernidade, daquilo que Max Weber, teórico supremo da burocracia e dos processos de racionalização da modernidade, designou como a jaula de aço (iron cage) do mundo em que vivemos. Se querem um exemplo extremo desse burocrata sem alma, lembrem-se de Eichmann, julgado e condenado em Jerusalém e objeto de um livro momentoso e definitivo da filosofia política do século vinte escrito pela grande Hannah Arendt.

Penso que o eixo do livro de Finkielkraut consiste nas linhas de força e tensão que procurei esboçar nos parágrafos precedentes. Mas saiba o leitor que ele não o expõe, o eixo a que me refiro, com a clareza que intentei verter sobre esta resenha. Ele acredita, assim como eu, que é na literatura que tecemos o coração inteligente. Não em Deus, como acreditava Salomão, pois Deus, imerso no seu silêncio, é indiferente à nossa súplica. De resto, introduzindo aqui um travo de mordacidade, quem hoje suplica a Deus um coração inteligente? Os fiéis suplicantes que de ordinário encontro e ocasionalmente ouço suplicam a Deus as benesses do bezerro de ouro que é a nossa sociedade de consumo. Portanto, dou razão a Finkielkraut: é na literatura que podemos talvez identificar essa unidade rompida entre a sensibilidade e a inteligência.

Guiado pelo princípio acima exposto, Finkielkraut seleciona algumas obras da literatura escritas entre os séculos 19 e 20 para ilustrar seu argumento. Dentre os autores que estuda, há dois que desconheço completamente e, até onde sei, são praticamente desconhecidos no Brasil. Refiro-me a Vassili Grossman e Sebastian Haffner. Os demais são autores canônicos da literatura moderna: Dostoiévski, Joseph Conrad, Henry James, Karen Blixen (também conhecida como Isak Dinesen, seu pseudônimo literário), Albert Camus, Milan Kundera e Philip Roth. De cada um desses autores, Finkielkraut seleciona uma obra específica e daí se empenha antes em descrever do que demonstrar o coração inteligente que esses grandes ficcionistas narram.

A insuficiência do livro me parece consistir precisamente nisso: na prevalência da descrição sobre a demonstração. Quero noutras palavras dizer que Finkielkraut, ao estudar uma obra determinada de cada um dos ficcionistas acima mencionados, limita-se quase sempre a parafrasear ou transpor em estilo próprio as narrativas que no seu entender justamente traduzem no plano do imaginário ficcional a experiência do coração inteligente. O livro seria com certeza bem melhor se ele se aventurasse a melhor demonstrar seu argumento em defesa da literatura contra a filosofia e as ciências sociais.

Na página de abertura do capítulo dedicado a um conto de Karen Blixen, A festa de Babette, Finkielkraut opõe francamente a literatura à filosofia e às ciências sociais tomando o partido da primeira. Ele acredita que o sentido do conto de Karen Blixen consiste em nos revelar na forma de uma narrativa, ou de uma história, o que significam grandes valores humanos como a civilização, a arte, o ideal e a graça. Quando se propõem questões dessa natureza, o filósofo e o cientista social recorrem ao pensamento especulativo, no caso do primeiro, e aos métodos indutivo e comparativo, no caso do segundo. O narrador ficcional, por sua vez, simplesmente inventa uma história, traduz na forma de uma narrativa as abstrações mentais do filósofo e do cientista social. Assim procedendo, e essa é na verdade a natureza do seu ofício, ele reconcilia a sensibilidade e a razão.
Traduzindo no plano do imaginário ficcional as questões fundamentais da experiência humana, o narrador converte a atividade especulativa e os conceitos abstratos em ação humana reinventada num enredo vivido por personagens portadores das qualidades sensíveis características de todo ser humano. Assim procedendo, ele reconcilia na obra de arte o coração e a inteligência, a sensibilidade e a razão. Em suma, ousaria afirmar que ser um grande criador literário, assim como ser um grande leitor, é ter o privilégio de possuir um coração esclarecido.

Alain Finkielkraut. Um coração inteligente.
Tradução: Marcos de Castro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

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