segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Liege e a Mulher que Passa




Ela passa andando contra a luz fosca do crepúsculo. Pisa a areia com uma delicadeza de garça e a cada passo deixa impresso na areia o rastro do seu pé. Não é uma mulher, mas um milagre da natureza que bruscamente irrompe no universo recortado por meus sentidos até então amortecidos. Andava àquela hora na praia, como de hábito, já resignado à paisagem sem variação. E eis que ela chega e passa assim inesperada e indiferente à revolução cósmica que se move no compasso do seu corpo moreno e alto cujas linhas insinuam abismos, vendavais e precipícios. De repente caiu sobre mim a consciência do meu desamparo diante da beleza infranqueável ao meu desejo. De repente me vi perdido em meio àquela imensidão que me abraçava num abraço que era antes sufoco ou abafamento do que essa misteriosa fusão que por vezes num lampejo sobrevém e logo se desfaz, a fusão do corpo individual com a paisagem humanizada pela beleza da mulher subvertendo a ordem cósmica.

Na areia da praia, entre a imensidão do mar e o ruído da cidade sem alma, eis-me confuso e indestinado. A mulher sem nome e origem passa e segue atravessando a faixa de areia em direção ao calçadão da praia. Sem que me decidisse, puramente arrastado pela força dos meus sentidos, segui-a sem vontade ou governo que dela me desviassem. A mulher passa e num minuto alcança o calçadão onde segue deslizando como uma força obscura da natureza. E assim segui-a ao longo de uns cinco quilômetros. Apertava o passo para não me distanciar dela, que marchava inconsciente de sua vitalidade, inconsciente de que eu a seguia. Era insensato seguir assim uma mulher que sabia inacessível ou simplesmente inabordável, pois a timidez me paralisa diante da beleza estranha.

Por fim consolou-me pensar no prazer decorrente da pura contemplatividade lírica, o prazer que se contenta em ser prazer tão só fruição visual e imaginativa de um objeto infranqueável. Seguindo-a já resignado a catar a poesia que inconscientemente ela entornava à luz do crepúsculo, parafraseando o belo verso de Chico Buarque, num instante saltei da imaginação para a memória. E assim a mulher que passa já não é uma beleza sem nome, mas Liege ou a mulher que Bernstein, personagem de Cidadão Kane, vislumbra no bonde em movimento para retê-la na memória por toda a vida. Ah, as veredas indecifráveis da memória, o sutil arbítrio com que zomba da nossa vontade e manobra nossa consciência tão vulnerável. Deslizei assim da realidade tangível e perturbadora, a visão da mulher que passa, para os labirintos da memória que me devolvem Liege como uma miragem transportada por um sopro misterioso.

Entro no avião, aeroporto de Recife, que me levará a Bruxelas, onde farei conexão para enfim chegar a Londres. Sento-me a seu lado, que vinha de Fortaleza ou Manaus, já não me lembro. Raramente converso com estranhos quando viajo. Os motivos imediatos são minha timidez e sobretudo meu receio de enfronhar-me numa conversa com algum estranho desinteressante. Com ela, no entanto, tudo foi diferente. Mal ouvi seu nome, logo o associei à cidade belga onde Georges Simenon nasceu. A feliz coincidência valeu-me como uma luva na mão então íntima desse voraz criador de romances e insaciável amante. Sem que me lembre como, o fato é que logo entabulamos conversa, antes mesmo de o avião levantar voo. Logo ficamos à vontade, como se nos conhecêssemos de outros encontros e conversas. E assim falamos um ao outro, em tom baixo, como dois interlocutores que se confidenciam. Num dado momento revelou-me seu medo de viajar de avião e logo me perguntou se eu acaso teria um tranquilizante que pudesse tomar. Nesse tempo também eu tinha medo de viajar de avião. Por isso cuidava sempre de ingerir um comprimido, além de trazer outros de reserva na carteira. Ofereci-lhe um.

Disse-me que em Bruxelas tomaria um voo para a Alemanha. Ia ao encontro do namorado. Em seguida, falou-me em tom amoroso de sua cachorra. E assim derivamos por assuntos mais íntimos. Como a noite já descera enquanto o avião boiava nos espaços infinitos, mergulhamos numa atmosfera de penumbra, com as luzes do corredor apagadas, o que propiciou ainda mais as nuances íntimas de uma conversa que mais e mais nos envolvia. Foi decerto o efeito relaxante do tranquilizante a razão de sua evidente sonolência. Baixou ainda mais o tom, acomodou melhor o corpo na cadeira e por fim adormeceu suavemente a meio de uma frase interrompida. Quedei-me enlevado na contemplação de sua beleza tão delicada e inconsciente. Como é comovente a beleza da mulher adormecida, assim como a da criança que tantas vezes surpreendi na paz da sua inconsciência do mundo.

Seu corpo relaxado afrouxou ainda mais e então moveu a cabeça deitando-a sobre meu ombro. Sentindo o prazer daquele sutil contato, seu estado de abandono escorado em mim, precisei de muito autocontrole para não ceder à tentação de acariciar seus cabelos, deslizar minha mão pela beleza da sua carne, beijar sua pele tão desejável. E assim seguimos dentro dos espaços infinitos atravessados pelo voo potente do avião que nos levaria a Bruxelas. Quando acordou, logo retomamos nossa conversa recaindo naquele tom de confidência, de falas que se sussurram e se entregam confiantes. Tanto nos desligamos do tempo e da atmosfera ambiente que esquecemos de logo trocar endereços e telefones.

Quando dei por mim, o avião já pousara no aeroporto de Bruxelas. E então sobreveio o absolutamente inusitado: mergulhamos no black out, o apagão tão comum nas nossas cidades, coisa que nunca antes vivi na Europa. O desarranjo do aeroporto – meu em particular, ansioso por chegar a tempo de alcançar o avião que me transportaria para Londres – deixou-me tão transtornado que nos despedimos às pressas. Foi quando afinal me sentei aliviado no avião prestes a levantar voo para Londres que me dei conta de que não trocamos endereços nem telefones. Assim um infeliz imprevisto rompeu nosso fio de Ariadne, o fio que me guiaria através do labirinto em que para sempre dissolveram-se os rastros de Liege. Evocando novamente a cena de Cidadão Kane acima referida, fui misteriosamente marcado pela mulher que passa, pelo inexplicável sortilégio da sua beleza que nunca possuirei, que nunca mais verei e todavia viajará para sempre no horizonte iluminado da memória que se nutre não apenas do que carnalmente gozou, mas sobretudo do que desejou. Talvez seja verdadeiro afirmar que o desejo mais imperecível é precisamente o irrealizado.

Recife, 1 de setembro de 2010.

Um comentário:

  1. Oi, Fernando!
    Lembrei de algo que a Maria Rita Kehl disse em uma conferência sobre a delicadeza da memória. Eu a encontrei no seu texto. Como foi bom passar por aqui. Bjoca.

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