terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Deus Danado


Potiguar e Potiguares

Dentre as peculiaridades culturais do Recife, e extensivamente de Pernambuco, reponta o traço de persistente conservadorismo aferível no conjunto das suas expressões artísticas e mais nitidamente na ideologia que confere suporte a essas expressões. Tal conservadorismo, instância compensatória para a perda progressiva de peso político-econômico e cultural no cenário nacional e mesmo regional, é obra competentemente articulada por intelectuais herdeiros das tradições oligárquicas decadentes. Seu arquiteto supremo é Gilberto Freyre, figura intelectualmente complexa e portanto controversa. Por isso ressalto que esboço aqui sua figura de forma sumariamente negativa por considerá-la em termos estritamente ideológicos. É portanto prescindível ponderar o quanto noutros contextos ele se distingue pela obra fundamental que produziu. Voltando ao conservadorismo de que antes tratava, ele pontua o conjunto das expressões integrantes do sistema cultural pernambucano. No plano do teatro, acentua-se ao compasso de uma tradição ancorada no folclore e numa rica e resistente mitologia de extração rural e notadamente sertaneja.

É no cerne dessa atmosfera acima grosseiramente esboçada que emerge a peça Deus Danado, do dramaturgo potiguar João Denys, dissolvendo expectativas previsíveis, a estas incorporadas as do próprio autor deste prefácio, e alçando a temática sertaneja a planos de perturbadora universalidade. Quando tantos se acomodam ao culto de um regionalismo estético de metro fechado, passível de no limite reduzir a nossa expressão artística àquilo que Oswald de Andrade certeiramente chamava de macumba para turista, João Denys escreve e encena um espetáculo cujas credenciais o situam à margem e acima das duas pragas dominantes na cena pernambucana: o teatro digestivo, variando numa escala que se estende da comédia de costumes ao pornô brega, e nossa indefectível estética regional-naturalista.

Traduzindo as expectativas previsíveis em registro pessoal, confesso ter ido ao teatro com certa reserva. Previamente informado de que o texto da peça fincava raízes no árido sertão potiguar onde João Denys nasceu e viveu boa parte da sua vida, minha desconfortável expectativa era defrontar-me com mais uma variante da nossa estetização da miséria nordestina temperada por mitos surrados faiscando na moldura do pitoresco regionalista. Quais não foram, entretanto, minha surpresa e prazer quando me vi diante de um espetáculo capaz de exprimir de forma rusticamente bela e atormentada a tensão entre o particular concentrado no Nordeste rural e o universal oprimido pelo “silêncio de Deus”.

Intentando exprimi-la de um outro modo, essa tensão seria talvez traduzível na polaridade inscrita entre a sociologia, tendente a fixar o conflito dramático entre Teodoro e Luiz no cerne desse ossificado cenário de miséria que é o sertão nordestino, e a metafísica onde se aloja o nada último da nossa condição transcendente à matéria específica tematizada no texto de João Denys. Isso garantiria, me parece, o raro e tenso equilíbrio alcançado entre o fundo particular e universal do drama seco protagonizado por Teodoro e Luiz.
A concepção cenográfica, decisivamente enriquecida pelo inspirado trabalho de iluminação realizado por Eduardo Lemos de Santana, dissolve a fronteira física e cromática entre a degradação humana dos personagens e a do ambiente social em que interagem. Tão extremos são uma e outro, a degradação humana e o ambiente, que assistimos no espaço cênico a essa suspensão de barreiras como se uma e outro, indiferenciados, numa só cinzenta matéria se fundissem. O admirável é observar que tal rendimento cênico é alcançado sem sequer um apelo ao surrado museu estético do regionalismo naturalista.

Movendo-se na delicada linha de tensão entre o tudo e o nada, entre os elementos provenientes da nossa particularidade regional e a corrente do universal que a atravessa, João Denys assim caracteriza o projeto cênico de Deus Danado: “O mais importante em todo este projeto é concluir que o tudo e o nada estão aqui no Nordeste. Que a matéria prima das vanguardas artísticas contemporâneas está em nós, muito antes das tendências de última geração legitimadas pelos poderosos”.
Repelindo qualquer gesto de complacência com relação às formas correntes de exotismo estético, João Denys eleva a agonia e a solidão últimas dos seus personagens a um plano onde ressoam situações e atmosferas características do teatro de Samuel Beckett. Se ele próprio admite leituras concentradas na acentuação de afinidades e até equivalências estético-filosóficas entre Deus Danado e o teatro beckettiano, parece-me entretanto inexato reduzir a (não)significação da sua peça ao universo opressivamente niilista de Beckett. Pois se neste prevalece um supremo desprezo pela história (desprezo que é antes de tudo impotência), por qualquer forma de especificação do desespero terminal que devora seus personagens, em João Denys é inequívoca a tensão acima aludida entre sociologia e metafísica, entre a particularização histórica e a universalidade que a transcende. Se naquele o vazio da condição humana se espelha na própria articulação da linguagem murada numa espécie de grau zero semântico, em Deus Danado os personagens falam (e como falam!) falando algo para além do nada desesperante em que se congelam os conflitos expostos pelo teatro beckettiano.

Desfeitas assim minhas expectativas previsíveis, compartilhadas, quero crer, com o público investido da disposição de apreciar criticamente a nossa cena, o eixo dessa relação arte teatral e recepção crítica se refaz daí emergindo a convicção de que um sopro de renovação estética iluminou o palco do teatro pernambucano.
Nota: Prefácio escrito para a edição de Deus Danado, de João Denys, publicado na coleção Bastidores, Textos de Teatro. Natal, RN, s. d. A data de redação do prefácio foi provavelmente 1997, mas não tenho como comprová-la.

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