Rios de tinta têm jorrado no leito da produção acadêmica e jornalística ambicionando esclarecer, ainda que frequentemente turvando, as implicações mais abrangentes das profundas transformações econômico-culturais operadas no mundo deste fin de siècle. Nesse difuso e também confuso contexto sobressaem os debates e análises em torno de questões tais como modernidade e pós-modernidade, internacionalização, globalização e mundialização.
O volume de publicações referente às temáticas acima sumariamente indicadas é de tal monta que transborda dos limites desta resenha demarcá-lo ainda que em linhas muito gerais. Assim, é em termos puramente indicativos que aqui sublinho, no âmbito da produção teórica estrangeira, o periódico inglês Theory Culture and Society e o catálogo de publicações da editora Routledge referente ao ano de 1994 sob o título Media and Cultural Studies. O mero fato de uma editora de renome dispor de um catálogo exclusivamente consagrado à produção na qual se insere o livro de Renato Ortiz sugere o quanto se aceleraram na esfera acadêmica os estudos e pesquisas dessa natureza.
Se na esfera da produção estrangeira a produção é ampla, embora não raro repetitiva, na brasileira é ainda modesta, em número quanto em qualidade, a contribuição teórica. Dentre os poucos que entre nós têm ousado explorar essas novas sendas abertas à investigação das ciências sociais importa destacar, como o faz esta resenha, o sociólogo-antropólogo Renato Ortiz. Considerando, bem por alto, a linha temático-interpretativa seguida a partir do seu Cultura Brasileira e Identidade Nacional, é possível observar um claro movimento de continuidade entre este e seu livro mais recente. Consagrando-se à investigação do nosso processo cultural em estreita conexão interativa com as condições histórico-sociais em que se realiza, distingue-se Ortiz como um dos poucos estudiosos brasileiros de valor empenhados nesta especialidade tão pouco ainda entre nós considerada: a sociologia da cultura.
Renato Ortiz abre seu livro afirmando em tom explícito a premissa que orientará o desdobramento da sua investigação. Eis em que consiste: “a existência de processos globais que transcendem os grupos, as classes sociais e as nações” (p.7). Esclarecendo mais adiante o sentido que empresta a alguns termos chave, cuida o autor de distinguir internacionalização de globalização, globalização de mundialização, mundialização de nação. Trata ainda de esclarecer, como acertadamente presumiria o leitor mais atento, o sentido e a função exercidos por outros termos e conceitos fundamentais para a compreensão geral do seu objeto. Considerados entretanto os limites convencionais de uma resenha, restrinjo minha atenção às distinções acima explicitadas.
Lidando com a relação internacionalização e globalização em termos fundamentalmente econômicos, vale-se de P. Dicken, que em Global Shift salienta uma diferença decisiva entre estes termos com frequência tratados como intercambiáveis. Consiste a diferença no fato de que enquanto internacionalização seria uma mera extensão das operações econômicas de uma empresa para além das fronteiras nacionais, globalização seria um fenômeno de natureza qualitativamente nova. Como acrescenta Ortiz: “O conceito se aplica, portanto, à produção, distribuição e consumo de bens e serviços, organizados a partir de uma estratégia mundial, e voltada para um mercado mundial. Ele corresponde a um nível e a uma complexidade da história econômica no qual as partes, antes internacionais se fundem agora numa mesma síntese: o mercado mundial” (p.16).
Clarificando mais adiante a distinção que propõe entre globalização e mundialização, afirma que emprega o primeiro termo visando referir-se aos processos de natureza econômica e tecnológica, enquanto o segundo se aplica à esfera dos processos culturais (cf. p. 29). Integrando essas duas formas de processos, os econômico-tecnológicos e os culturais, a categoria “mundo” (aspas do autor) comporta tanto esse fenômeno peculiar ao nosso tempo, que é a sociedade global, quanto do outro lado implica uma “visão de mundo” (aspas do autor) “um universo simbólico específico à civilização atual” (p. 29).
Associando o desenvolvimento histórico da nação ao da modernidade, entende Renato Ortiz que o primeiro fenômeno se realiza através do segundo. Concebendo a nação e a modernidade como etapas do processo de desenraizamento e desterritorialização contemporaneamente desembocando na realidade qualitativamente nova contida nas noções de sociedade global e de mundialização da cultura, intenta, assim me parece, dissolver a dicotomia correntemente introduzida no debate entre globalização versus nação, mundialização versus diferença cultural. Argumentando de modo consistente com a premissa inscrita no pórtico da sua obra, e já acima citada, busca o autor articular um cenário e um ângulo de apreensão e análise do objeto por definição transcendente aos limites particulares da nação e da diferença entendidas como realidades opostas a e até mesmo incompatíveis com a ordem de realidade encarnada nos conceitos de globalização e mundialização.
Implicando essa tomada de posição um modo necessariamente diferente de “localização” epistemológica do indivíduo investigador, eis como Ortiz bem esclarece o ângulo em que procura situar-se no processo de factura do seu livro:
“Falar da totalidade mundial, de seu movimento interno, é também escolher um outro ponto de vista. Mas deixo claro para o leitor que se trata de uma opção consciente, que permitiu-me construir um objeto de estudo de forma inteiramente distinta. Não foram perguntas do tipo, “como o local se relaciona com o global”, “como a problemática cultural brasileira se manifesta diante do processo de globalização” , que me orientaram. Procurei situar-me no âmago do processo, na sua inteireza. Fiz todo um esforço para desterritorializar-me, inclusive, minha escrita. Neste sentido, não falo como brasileiro, ou latino-americano, embora saiba que no fundo é impossível, e indesejável, liberar-me totalmente desta condição. Mas como cidadão mundial” (p. 9).
Explorando uma bibliografia pouco considerada por sociólogos e antropólogos, a do marketing e administração global, assinala como o desenvolvimento e a consolidação de um mercado global tendem a tornar obsoleta a própria concepção de empresa multinacional. Suplantada pela corporação transnacional, que converte o planeta num mercado unificado, um não-lugar articulado acima de toda a sorte de fronteira e particularidade, a multinacional seria ainda uma expressão do predomínio da particularidade na rede do mercado internacional. Embora operando em escala internacional, a multinacional manteria ainda, segundo Ortiz, “laços estreitos com o território nacional” (p. 150).
A corporação transnacional, em contrapartida, opera em consonância com os ditames da competição global. Daí derivam implicações que o autor passa a considerar. A primeira consiste na desterritorialização dos produtos. Uma outra seria a da localização física das transnacionais. Assinala ainda uma implicação que concerne ao papel desempenhado pelos executivos das corporações transnacionais. Dado que no entender de Ortiz a identidade desses executivos se define a partir dos vínculos de fidelidade que estabelecem com a empresa, não mais com os laços contingentes que os prendem às culturas particulares, justifica-se a inserção, entre outras igualmente ilustrativas, da citação por ele feita à p. 153:
“Antes da identidade nacional, antes da filiação local, do ego alemão ou do ego italiano, ou do ego japonês, antes de tudo isso vem o comprometimento com uma missão global, única e unificada: os clientes que interessam são pessoas que apreciam seus produtos em todos os lugares do mundo”. (K. Ohmae, Mundo sem Fronteiras, p. 94).
À característica acima liga-se, talvez como fator determinado, a revisão dos critérios de recrutamento de pessoal adotados pela corporação transnacional. Dado que a corporação se define pela negação de qualquer atributo nacional - para ela a nacionalidade é uma irrelevância, frisa Ortiz – característica igualmente suprimida do produto por ela gerado, a isso logicamente se soma uma política de pessoal assinalada por traços afins. Tal política objetiva realizar valores e fins de fundo racionalista primando pela adoção de princípios universais, por critérios de eficiência mercadológica que são os que em definitivo importam para a corporação transnacional. Nesse passo se destaca, por exemplo, o emprego obrigatório do inglês como língua padrão. Alçando-se à categoria de língua universal, instrumento compulsório de mediação simbólica entre as pessoas, “o inglês dilui a barreira das nacionalidades selando o destino ‘cosmopolita’ dos produtos e das corporações” (p. 155).
Se de um lado Renato Ortiz descreve esses processos globalizadores engendrados pela corporação transnacional isento dos preconceitos ideológicos que afetam ainda de modo profundo as análises da inteligência de corte nacionalista, e consequentemente anti-imperialista, de outro alerta para as formulações pseudoigualitárias contidas na ideologia que aspira a estabelecer um elo de equivalência entre a hegemonia mercadológica das corporações e a garantia de democracia e igualdade no reino da mundialização. Pois se a ideologia da mundialização opera no mercado global dos bens e serviços no sentido de promover a descentralização de decisões e a liberdade de escolha do indivíduo-consumidor, na dimensão econômica observa-se uma concentração ainda maior da riqueza. Em suma, em todos os setores do mercado se tem fortalecido o poder dos oligopólios transnacionais.
Se esta resenha alcança sugerir com certa margem de fidelidade o tom geral do livro de Renato Ortiz, talvez não seja injusto concluir que ele privilegia em excesso a ordem dos processos e fatores econômicos em detrimento dos especificamente culturais. E no entanto o próprio título da obra aparenta sinalizar a direção oposta. Embora critique em certa passagem da obra o viés economicista das análises propostas segundo o paradigma do world-system, me parece que sua própria análise tende a incorrer no mesmo erro de enfoque. Daí, fiel ao espírito da própria distinção por ele proposta entre globalização e mundialização, talvez fosse mais apropriado dar ao livro o título de Globalização e Cultura.
Nota – esta resenha sobre o livro Mundialização e Cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, foi originalmente publicada no periódico Estudos de Sociologia, revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco. Vol. 1 (1) pp. 95-98, 1995.
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