segunda-feira, 19 de março de 2012

Velhice ou má idade



Confesso nunca haver sido importunado pelo fantasma da velhice, ou mesmo da morte. Muitas vezes me perguntei a razão de assim conduzir-me diante de um problema que noto atormentar tanta gente que conheço. Hoje então, submersos na atmosfera tirânica da cultura narcisista, sei de quem já se atormenta antes dos trinta apenas por considerar fugazmente a possibilidade do amadurecimento e da velhice. Se assim nos comportamos ante a mera possibilidade de perda da juventude, o que dizer da morte? A morte tornou-se uma realidade obscena, na verdade impronunciável. Interrogo-me há muito, desde que li Philippe Ariès, pelo menos, sobre os rumos de uma cultura que incorre na insensatez de pretender suprimir do seu horizonte precisamente o que há de mais inelutável na nossa condição. Aí radica, talvez, a evidência da supressão de uma forma elementar de sabedoria humana.
Abstraindo considerações mais alongadas sobre a história cultural, pondero tão somente os limites convencionais de minha experiência, de fatos correntes vividos ou observados durante minha infância e adolescência. Lembro-me, por exemplo, de que meu pai, que nunca foi exemplo de sabedoria e coragem, acolheu com resignação estes terrores da nossa experiência contemporânea: a maturidade, a velhice e a morte. Poderia igualmente estender esta observação a pessoas de sua geração que participaram do mundo de minha infância e adolescência: minha avó materna, vizinhos, conhecidos incontáveis. Não retenho nenhuma memória de pessoas que se angustiassem ou suportassem inconformadas limitações, dores e perdas naturalmente acolhidas como parte incontornável da nossa condição. Em suma, todos aparentavam saber e resignadamente aceitar o fato, então inelutável, de que seres humanos amadurecem, envelhecem e por fim morrem. Tudo isso era e é doloroso, claro. Decerto não ocorreria a ninguém de livre vontade viver experiências tão infelizes e indesejáveis. O que friso é o fato de que as pessoas prescindiam de formação estoica, filosoficamente considerada, para resignar-se a essa condição de fatalidade.
Foi isso, em suma, o que acima quis sugerir quando me referi a uma forma elementar de sabedoria humana. É flagrante que essa forma elementar de sabedoria dissolveu-se no cerne de uma cultura que elege o culto infrene e delirante do hedonismo como modo e fim de uma condição realisticamente incogitável. Pois, salvo engano, nenhum milagre da ciência e da técnica, nenhuma possibilidade assegurada pelo mercado, nada disso tem o poder de anular nosso fatal processo de envelhecimento e morte. A ciência e a tecnologia médica podem hoje, como é fato, estender o prazo de nossas vidas, pelo menos das camadas socialmente privilegiadas, mas não anular a realidade imperativa do envelhecimento, com tudo que contém de redução gradual e progressiva de nossas potencialidades, menos ainda abolir a mortalidade inscrita na nossa natureza.
Talvez meu modo de experiência individual relacionado a esta questão me tenha até o presente isentado da angústia associada à premonição da velhice e da morte. O convívio frequente com pessoas bem mais velhas, a começar pelo meu pai, propiciou-me um modo de familiaridade prematura com esses fantasmas. Crescendo dentro dos limites fechados de uma vila, onde todos os tipos de idade e experiência se mesclavam, aprendi a conviver com a doença, a velhice, a morte. Aliás, duas delas, a doença e a sombra da morte, cedo infiltraram-se na minha própria vida. Diria ainda que a leitura de alguns poetas e filósofos foi decisiva para que eu logo assimilasse, pelo menos enquanto fato teórico, ou realidade de consciência e imaginação, a fatalidade do que constitui matéria de denegação e assombro para Narciso.
Que me lembre, intentando ainda escavar no passado meu modo pessoal de familiaridade com a morte, a poesia de Manuel Bandeira foi uma descoberta decisiva de acolhimento resignado de minha finitude. Quando na minha juventude sobreveio uma doença cardíaca, minha reação imediata foi de pânico e desamparo. Privado de meios materiais e psíquicos para enfrentar uma realidade que me assombrava, vaguei durante alguns dias sobre a cama presa de opressões indescritíveis. Foi a meio disso que a poesia de Manuel Bandeira – mais exatamente aquela consagrada ao tema da doença e da morte – desceu sobre mim, sobre minha solidão desamparada, e me foi gradualmente em mim me repondo e me foi iluminando e reconciliando com a ordem obscura e inevitável de minha vida. A isso somou-se a música de Bach, que desde então passou a constituir o que concebo como a materialização suprema da expressão musical.
Retomo meu tema variando o registro, agora tendente à sátira. São inumeráveis as evidências cotidianas do estado de inconsciência que hoje define o rebaixamento deplorável de nossa experiência humana. O publicitário, uma das divindades do mundo cretino em que vivemos, aciona a máquina de calcular e dela extrai um slogan que logo se dissemina pela mídia e a consciência geral: A boa idade. Alude à idade em que me encontro, que já não é velhice, muito menos maturidade. Esta foi a motivação principal que me levou a intitular de Má Idade a fase atual do meu diário. A velhice tornou-se assim outra condição obscena do presente, além da morte. Graças à indústria publicitária, ninguém mais envelhece. Passa-se miraculosamente da juventude, ideal supremo da cultura hedonista, para a boa idade. É patético, para não dizer deprimente, ver essas multidões de mulheres e homens reumáticos, fisicamente combalidos e deformados pela idade, rebolando nos salões de festa da terceira idade (eis outro avatar da terminologia consumista).
Outro dia, aliás, fui dançar com Bella no Clube da Aeronáutica, bem próximo a meu apartamento. A festa promovida pelo clube, sempre às quintas, chama-se Salla (sic) de Dançar. Embora frequentada por gente de todas as idades, o predomínio é dos velhos, fato de resto igualmente observável em festas desse tipo. Perdão, quis dizer terceira idade, ou boa idade. Observei consternado velhinhas (vozinhas, como diria Bella) ridiculamente mimetizando garotas. Pior: garotas vulgares, remexendo os quadris desproporcionalmente avolumados pelo peso dos anos, erguendo a ponta da saia acima dos joelhos. Seus parceiros são negros jovens e musculosos. Estão ali, suponho, como prestadores de serviço a essas velhas comportando-se como adolescentes retardadas, iludidas pela fantasia de que o tempo é recuperável ou reversível.
É triste ver pessoas envelhecerem desse modo. Mas a inconsciência desse estado real é tamanha que talvez ninguém mais se dê conta do quanto é indigna essa forma de envelhecimento e decadência. Como percebê-la, se a própria terminologia que a recobre é já intencionalmente fabricada para servir à alienação, à incapacidade de mirarmos a velhice com aquele estoicismo elementar do passado que vi refletido na face do meu pai, de minha avó, dos velhos do seu tempo? Digo-o sem nenhum traço de nostalgia, até porque continuo preferindo o presente. Sou e espero continuar sendo um homem do presente, dentro dele vivendo sem ceder à tentação da evasão fácil e irrealista orientada para um passado de fantasia, recriação imaginária do mal-estar na linha do presente. O que subjaz ao argumento que aqui venho desenvolvendo é algo bem distinto: é a capacidade de relacionar a experiência do presente à medida do tempo vivo, traduzido na consciência da tradição que nos vincula às condições em que nos formamos, à corrente invisível da experiência que deságua no presente. Somente o narcisista, alheio ao tempo que supõe trânsito, envelhecimento e morte, somente ele vive a ilusão do eterno presente, um tempo ilusoriamente absoluto, portanto sem nexos com o que foi e o que será.
A crítica do presente não supõe necessariamente nostalgia, linha de fuga para o passado ou ainda algum ideal utópico. Uma das prisões supostas na meia idade ou velhice deriva precisamente dessa pressuposição, isto é, se criticamos o presente é porque somos nostálgicos, porque a idade fatalmente nos impele, até inconscientemente, a idealizar o passado, ou contrapor ao presente opressivo alguma impraticável utopia. Esse psicologismo barato é moeda corrente. Até amigos íntimos, gente de minha própria geração, valem-se desse expediente grosseiro para desqualificar uma crítica contra a música barata que hoje somos obrigados a ouvir em qualquer lugar público, inclusive em casa, já que os vendedores de cd pirata trovejam rua afora sua mercadoria criminosa. O exemplo sugere a que ponto descemos na nossa inconsciência social e estética. Bastaria o cotejo mais elementar entre a bossa nova e seus sucessores dos anos 60 e 70, época suprema em toda a história da nossa música popular, com o que hoje correntemente se produz e divulga, para que salte aos olhos o abismo de qualidade separando um e outro tempo. No entanto, quando vez ou outra ensaiei dizer coisas desse tipo, tão evidentes e indiscutíveis, prontamente retrucaram: “Ah, você está sendo nostálgico. Durante nossa juventude também havia muita porcaria que hoje esquecemos”. Ora, esquecemos, ou esqueci, porque nunca sequer perdemos tempo ouvindo esse lixo que atulha nossos ouvidos. O mais curioso, no argumento, é o quanto ele despreza a lógica suposta no meu juízo. Retrucam com tolices dessa natureza como se eu por acaso falasse da porcaria musical de minha juventude...

Recife, 02 de setembro de 2008.

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