segunda-feira, 24 de março de 2014

Máximas e Mínimas IX

            
            Consolação niilista:
            De tanto nada esperar
            eu nunca desesperei.
            Sendo incapaz de contar
            nunca dos três eu passei.
            E assim no nada meu nada
            calmo mergulha e até nada
            no tudo em que me afoguei.


Mas eis que na noite, quando pacificado respiro dentro da minha infelicidade confortável, assomam os rumores de uma voz proveniente da catástrofe: "O que sabe a mão que escreve catástrofes da catástrofe real do mundo?" Foi apenas um breve rumor, nota errante logo tragada por sons e ruídos circundantes. Que sei eu de fato sobre a catástrofe?

            Afora as formas correntes de corrupção, o mais seguro investimento brasileiro é ingressar numa família de bens.  Dependendo da escolha feita, pode-se automaticamente gozar do privilégio de ter casa na praia, no campo e na cidade, emprego no Estado e médico privado com absoluta isenção de custos. Perde-se, claro, a liberdade de ser solteiro, indivíduo dono de si próprio e do seu destino controlável. Mas não encontrará essa liberdade, para tantos um fardo intolerável, em si própria seu desejo de perder-se?

            Cindida entre o superego protestante e a carne aberta aos eróticos calores dos trópicos, refugiou-se na mentira como se esta fosse uma âncora boiando em meio ao naufrágio da psique. Mentindo por teimosia, mais tarde por convicção, acabou tomando por verdadeira toda a vida de mentiras com que presumira enganar-me. Se entretanto os fatos com frequência a desmentiam, pior para os fatos e meus ouvidos traídos. Por fim, nua na própria mentira vestida, nada mais restou-lhe, salvo atribuir traições de fato às maquinações projetivas do meu ciúme doentio. Como discernir, diluída neste oceano de irrazão, a gota de minha razão caindo caindo caindo...

            Assim canta a voz da solidão amorosa nas vozes de Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan: "In my solitude, you haunt me / with revêries of days gone by... " Na companhia de Antonella, entretanto, corpos latinos ludicamente movendo-se dentro do fog e da austeridade cravada sobre cada pedra das ruas de Colchester, "Solitude", esta mesma de Duke Ellington cantada em tons de dilaceramento pelas vozes negras citadas, convertia-se em matéria de fantasia e charme. "Solitude" era entre nós continuamente retraduzida, recontextualizada, reescrita ao sabor e humor das nossas fantasias e circunstâncias. Como sonhar essa virtude latina aclimatada às regulamentações ordinárias de uma cultura puritana? Alheia a barreiras impostas por espaço e tempo, minha imaginação salta da noite tropical nordestina para as ruas de Florença onde o corpo latino de Antonella dança os sombrios compassos de "Solitude" em ritmo de tango ou carnaval veneziano.

Quando no Hamlet uma personagem diz que "something is rotten in the state of Denmark", a podridão é de imediato denunciada pelo fantasma do rei assassinado pelo próprio irmão, usurpador do trono e novo senhor da rainha, mãe de Hamlet. "Frailty, thy name is woman". Mas este é já um outro tema. O meu, comprimido nas magras linhas deste parágrafo, é a podridão gerada pela ambição humana inscrita no cerne dos regimes de opressão e poder. Dado o avançado estado de degradação da coisa pública no Brasil, quem teria ainda o cinismo ou a inocência de assinalar a podridão do Estado brasileiro? O odor pestilento tanto corrói os ares e as almas, tanto frequenta o noticiário do dia, onde reportagem política há muito se confunde com livro de ocorrências policiais, que ghost já soa como se fosse gosto. E como dizem que gosto não se discute, resta apenas indagar: "What's your rotten taste?"

            Se virgindade fosse virtude
            eunuco seria santo
            teu gozo meu casto espanto
            a tua coca meu luto.

            Se falta fosse virtude
            pobreza casta nudez
            se este sol que me ilude
            iluminasse vocês
            elegeria o Nordeste
            céu, meu bordel português.

Meu país ideal seria um entre-lugar acima das fronteiras culturais que opõem Brasil e Inglaterra. Exemplos: Entre a baderna do primeiro e a rigidez codificada do segundo, um erotismo plasticamente civilizado, um "eros, builder of cities", como o cantou Auden no admirável poema "In Memory of Sigmund Freud". Entre a aridez vitoriana da inglesa e o corpo carne em vitrine da brasileira, uma medida ilustrada capaz de temperar nudez e ocultamento ativador dos sentidos já um tanto indiferentes diante do excesso de exibição e oferta. Entre o silêncio tumular das ruas britânicas e a barbárie reinante nas brasileiras, um ideal de convívio harmoniosamente dosando instâncias pública e privada. Como porém sei que meu país ideal não existe e nunca poderá existir, luto para conservar os vulneráveis limites da minha casa à margem do Brasil celebrado pela tradição antropológica proveniente de Gilberto Freyre e prolongada em Roberto da Matta. Matta que não é mata nem mata, thanks God.

            Nos anos 70 o arrogante triunfalismo da ditadura militar deu livre curso a dois lemas: um restaurado do nosso filão de mitos ("Brasil, país do futuro") e outro importado da matriz americana ("Brasil: ame-o ou deixe-o"). O primeiro atolou nos roteiros da transamazônica, estrada faraônica que partia do Piauí para nenhum lugar, e outras equívocas vias e acabou roído na letra de calendários celeremente envelhecidos. O segundo, nas origens brandido contra uma minoria empolgada pelo sonho delirante de promover uma revolução socialista neste país de capitalismo perversamente estatizado, tornou-se tão obsoleto quanto o país do futuro. A derrocada é tal que até quem antes o amava e batia continência para a tecnocracia militarizada agora anseia por deixá-lo. Se o fluxo de deserção não é massivo, a causa não radica na sobrevivência do amor pela pátria arruinada, mas no fato de que lá fora o sol declina em algumas latitudes alvejadas pelo sonho do desertor potencial e muitas fronteiras estão fechadas.
Recife, agosto de 1993.



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