domingo, 8 de janeiro de 2012

Tempo e Filosofia Antiga


Viviane Campos lê meu poema “O tempo presente”, postado no meu blog, e me pergunta no Facebook: “Por que o tempo presente?” Ora, porque é o único real. Concordando com os filósofos estoicos, penso que o passado já foi e o futuro não é ainda. Aliás, sequer sabemos se será. Será que estarei vivo amanhã ou mesmo alguns minutos mais tarde? Esse pensamento, que pode ser angustioso para tantos, constitui a condição filosófica necessária para que sejamos capazes de viver integralmente dentro do presente, viver o agora como momento absoluto. O que foi, o passado, é irreversível. Pior que isso, pode ser fonte de infelicidade e sofrimento se dele não nos libertamos efetivamente. Diante dele, podemos adotar dois tipos básicos de sentimento: a nostalgia ou o ressentimento. O primeiro expressa, de forma idealizada, pois a nostalgia deforma o passado evocando-o com tintas idealizadoras, nossa dor diante da memória de algo valioso que perdemos e radica no passado; o segundo, o ressentimento, é uma paixão amarga voltada contra um passado que foi fonte de sofrimento e frustração. Ao relembrá-lo, renovamos a dor antes sofrida.

Quanto ao futuro, este não é ainda, como já frisei. Portanto, infelicitamos nosso presente quando nos preocupamos com o que ainda não veio nem de resto sabemos se virá. Também aqui podemos adotar uma dupla atitude: uma expectativa ou sonho de futuro radioso e feliz ou uma expectativa sombria orientada para o temor de que o futuro será ainda pior que o presente. Num caso ou noutro, perturbamos negativamente nossa relação com o presente, com o tempo real. Quantas vezes não deixamos de viver melhor , de fruir melhor o momento atormentados seja pelo fantasma luminoso ou sombrio do passado irreversível, seja pela expectativa positiva ou negativa de um tempo que não é ainda e provavelmente nunca será como o figuramos ou desejamos? E quantas vezes não nos preocupamos, isto é, não ocupamos antecipadamente o que não teve ainda lugar e realidade sofrendo pelo que não veio ainda e talvez nunca se converta em vida consumada? E quantas vezes, refluindo imaginariamente no tempo não moemos dores e frustrações irreversíveis na memória envenenando ou anulando possibilidades factíveis do presente?

Embora continue sendo um leitor dispersivo, incapaz de fixar-me em qualquer saber restrito ou domínio especializado, leio agora cada vez mais filosofia. Faço-o movido por muitas razões de ordem pessoal, incluída a questão do tempo acima considerada. Faço-o ainda por acreditar e precisar aprender alguns grãos de vida examinada e melhor fruída. Mas meu interesse não é a filosofia técnica, muito menos a filosofia técnica produzida pela cultura acadêmica. Além de nada importar para meus fins existenciais ou inquietações humanas, trata-se de uma filosofia dissociada da vida, da ordem prática da vida que sempre constituiu o alvo prioritário da filosofia antiga. Durante algum tempo convivi com amigos academicamente treinados em filosofia. Para além das inconsistências teóricas que captava nas suas conversas, no saber filosófico que me expunham, impressionava-me o fato de não identificar qualquer vínculo entre o que liam e ensinavam e a vida que viviam.

Esses professores de filosofia estudam, ensinam e escrevem filosofia para obedecer às normas institucionais reguladoras do desempenho intelectual e acadêmico que confere títulos e reconhecimento social, renda e poder. Para muitos, pensar e ensinar filosofia, ou produzir conhecimento de segunda ou terceira mão, é apenas cumprir metas burocráticas de desempenho acadêmico. Quero dizer, em nada traduzem o espírito da filosofia antiga. Esta, antes de ser um discurso sobre a realidade, era um modo de vida. Por isso filósofos como Sócrates e Epicteto nada escreveram. Foi graças a discípulos devotados que a filosofia de ambos foi transmitida à posteridade. Para eles, aprender a filosofar era aprender a morrer através do exercício de uma vida examinada; dizendo o mesmo de um outro modo, aprender a viver.

Marco Aurélio escreveu suas Meditações, mas escreveu-as para si próprio, não para um leitor hipotético. Epicuro constitui um caso à parte. Embora também fiel ao exercício da filosofia como uma prática de vida, escreveu muito, ainda que apenas uma fração mínima da sua obra tenha sobrevivido. No geral, o saber que esses filósofos viveram e comunicaram a seus discípulos sobrevive e ainda hoje nos ilumina graças a discípulos e compiladores que registraram parte do saber transmitido através da vida prática, da sabedoria convertida em ação. Por isso ainda esses filósofos nunca se preocuparam em sistematizar uma filosofia unitária e coerente. Tampouco sábios modernos como Montaigne e Pascal perderam tempo e sono elaborando uma filosofia sistemática. Spinoza foi o único que logrou viver como um sábio e ao mesmo tempo conceber uma filosofia sistemática.

Dentro do espírito com que muitos dos antigos reduziram a filosofia a uma prática de vida sábia, não foram poucos os que chegaram ao extremo de desprezar a ciência. Epicuro ilustra muito bem essa questão. Insistindo em que a filosofia se realiza na ação, na vida vivida, não na teoria, não dissimulava seu desprezo pela ciência. Assim se explicam estas palavras endereçadas a Pítocles: “Meu caro, foge a todo pano da ciência”. Seu desprezo pelo saber puramente teórico ou especulativo, que a seu ver nada importava para a realização da filosofia como norma ética de aprimoramento da vida vivida pelo filósofo, levou-o ao extremo de também desprezar o cultivo da arte, da poesia e da história. Negando à arte função utilitária, assim como importância à história por tratar do passado, não lhes concedeu nenhum lugar na sua concepção filosófica da realidade. Foi devido a perspectivas dessa natureza que Bertrand Russell apreciou as escolas filosóficas pós-aristotélicas com muito rigor crítico na sua A History of Western Philosophy.

É sintomático que esse ideal de filosofia se renove no mundo em que vivemos. Embora as analogias históricas sejam sempre discutíveis, ainda mais quando propostas por um amador como eu, vale a pena indicar alguns pontos de afinidade entre o declínio da cidade-Estado, fundamento político e social da Grécia clássica, e a realidade espiritual do presente abalada por processos de vertiginosa mudança cultural. Os filósofos que acima mencionei, representantes do estoicismo e do epicurismo, viveram entre o processo de desintegração da hegemonia política e cultural da Grécia e o império romano. A filosofia que declina a partir da morte de Aristóteles transita da ágora, da polis que regulava a participação do filósofo na vida pública, para a constituição de uma ética privada, em certo grau já prefigurada nos ensinamentos de Sócrates, fato que decerto explica sua adoção pelos filósofos estoicos.Vivendo durante o processo de desintegração da ordem grega, cuja hegemonia foi sucedida pela dos macedônios e depois pela dos romanos, os filósofos sucessores de Aristóteles deslocam-se da esfera política para a privada. Esse deslocamento se traduz na preeminência de uma ética baseada na virtude privada, na busca da sabedoria de viver dissociada da ação política, embora um estoico como Marco Aurélio, como sabemos, tenha sido imperador.

Que fatores do presente acaso nos religariam a esse ideal filosófico baseado numa ética privada? Penso que a desaparição da utopia no horizonte da política, seguida da despolitização hoje corrente, ou da política pragmática restrita a resultados calculáveis em termos de acumulação e riqueza material, deixaram-nos reduzidos ao hiperindividualismo árido palpável na cena cultura contemporânea. Como pensar ainda na política movida pelo ideal utópico, ou pela religião num mundo secularizado que converteu o reencantamento religioso em variante de consumo espiritual? Penso que é dentro desse quadro ideológico grosseiramente esboçado que ressurgem as filosofias epicurista e estoica, assim como o interesse pelo budismo. Privados de ideais coletivos inspiradores de autêntica significação espiritual, voltamos ao ideal ético da sabedoria contido na obra desses filósofos e neles nos inspiramos para modelar nossas subjetividades desertadas de qualquer horizonte de realização coletiva.

Ainda que demasiado grosseira, minha analogia indica algo da crise espiritual e ideológica em que vivemos. E. Joyau cita estudiosos da antiguidade grega (Droysen, J. Denys, Curtius) visando caracterizar a decadência provocada pela dissolução da cidade-Estado. Citando Curtius, Joyau anota num texto introdutório à filosofia epicurista: “Todos os nobres sentimentos que tinham florescido na Grécia tinham a sua razão de ser na ideia de Estado. Por isso, logo que o povo viu que lhe interditavam este terreno, logo que viu que não tinha pátria e que a própria vida municipal estava decaindo, perdeu todas as virtudes que tinha herdado do passado... O bem-estar material, o conforto da vida de pequena cidade, eis o que a multidão se pôs a procurar. Todos os nobres instintos se foram enfraquecendo de dia para dia”.

Tenho consciência de que esboço minha analogia implicando realidades histórico-culturais profundamente distintas. Mas como fechar os olhos para as afinidades observáveis no plano moral, na crise de valores assinalável lá e aqui, na antiguidade e no presente? Por isso sugiro certa comunidade de solo moral para justificar o interesse que o epicurismo, o estoicismo e o budismo inspiram na atualidade a filósofos como André Comte-Sponville, Luc Ferry, Pierre Hadot e muitos outros. Evidência ainda mais forte radica na recepção que suas obras têm merecido por parte de um vasto público.
Recife, 04 de janeiro de 2012

2 comentários:

  1. Oi, Fernando!

    Belo texto!

    Tbm concordo com vc sobre o tempo presente.

    Achei muito interessante a relação que vc fez sobre os "desmoronamentos" de ontem e hoje.
    Por sinal, muito oportuno, neste momento, em que as cidades não resistem mais às chuvas. Usei uma metáfora, é verdade, mas em pleno momento de desabamentos e alagamentos nas cidades.
    De certa forma, tem a ver com o que vc diz sobre o deslocamente da ética, não é?

    Bjo.

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  2. Vi: muito grato pela leitura e comentário. Como você sabe, e aliás deixo claro na abertura do artigo, devo-o à sua pergunta. Beijos,
    Fernando.

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