sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
Dia e noite
Outro é o espaço dos sentidos quando o mundo anoitece.
À luz do dia a realidade objetiva é agressivamente visível
e é dilacerante sua impositiva matéria.
O olhar tropeça nos objetos
esbarra em telhados avenidas outdoors.
E a luz, essa abusiva luz dos trópicos
tudo inundando vem como o mar.
Jornais nas bancas expostos
gritados pelo jornaleiro condicionalmente
entre a polícia e a Febem.
À luz do dia tudo no Brasil é condicional.
Este país me entedia e irrita.
Alterno tédio e revolta
com a regularidade do dia
que a cada noite se segue.
Impotente o ódio que nutro contra nossas elites
e contra a carneirada que com generoso cinismo
alguns chamam de povo politicamente organizado.
Se é dia, tudo isso me é intolerável.
O que porém mais me agride os sentidos
são certos ruídos cotidianos e inescapáveis
a involuntária visão de certas pessoas que conheço.
Meu Deus, não há como delas escapar.
Estão sempre atravessadas no caminho
sempre obstruindo minha passagem
sempre pisoteando minha consciência tão fatigada.
Ah, quero o escuro da noite
quero o silêncio da noite.
Na noite objetos e pessoas se neutralizam
e pelas ruas circula um ar incontaminado
pela sordidez dos bem-postos
pela barbárie equipada segundo a última
vaga do progresso tecnológico.
Na noite o crime é quase sempre privilégio
dos canalhas de má fama
dos assaltantes sem firma registrada e reconhecida.
Há ainda, para além disso, o sortilégio de um imaginário
composto no tom noir das fantasias mais liberadoras:
o vapor das ruas sombrias filmadas por Sergio Leone
a atmosfera dos romances de Hammett e David Goodis
Ingrid Bergman pairando sobre as sombras de um bar fechado
onde um pianista negro canta: “You must remember this...”
E em algum lugar alguém
sopra as notas dolorosas de Round Midnight.
E entanto...Ó obscuras razões
a noite tem saudade do dia.
Sonha um dia vestido em tons de luz
tingidos por esse olhar
fiel às velhas miragens.
A noite tem saudade do dia
talvez porque as sombras em que mergulha
sejam o mítico refúgio
das suas desolações.
Sofre a noite da nostalgia
de um dia enfim retecido
na teia de uma vigília de séculos
e séculos e séculos
amém.
Porto de Galinhas, agosto 1987.
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