quinta-feira, 12 de janeiro de 2012
Revendo Daniel Lima
Visitando Daniel Lima
Ontem afinal, depois de muito me prometer, fiz uma visita a Daniel e Célia. Alguns amigos não compreendem meu distanciamento de Daniel. Tendo sido supostamente seu melhor amigo, o mais constante no curso de uma amizade que se estendeu por mais de 30 anos, deixei de procurá-lo quando a idade o forçou a morar no apto. de Célia. Minha visita precedente ocorreu há cerca de dois anos. Já então nitidamente notei sua perda de energia, seus apagões de memória e outros sintomas assinalando a impiedade do tempo e da natureza que afetam mesmo as inteligências mais agudas, os espíritos mais iluminados e passionais. Nessas circunstâncias, como renovar ou manter vivo um sentido de amizade lastreado no exercício da mais completa liberdade de convívio e pensamento que se possa imaginar?
Com Daniel pude realizar um sentido de amizade, de convívio intelectual isento das convenções que de ordinário constrangem mesmo as melhores expressões de vida compartilhada. Por isso amigos mais convencionais e mais respeitosos, mais atrelados a limites e reservas que conquistamos a liberdade de simplesmente ignorar, ora reagiam chocados diante do nosso galope desatado de convenções de qualquer tipo, ora admiravam nossa viagem imaginativa e fantasiosa, que entretanto não tinham como efetiva e espontaneamente acompanhar. De resto, o culto que muitos lhe devotam é por natureza inconciliável com o tipo de amizade que criamos. Se havia um princípio regente dessa nossa amizade, diria ser o da imaginação desatada de qualquer tipo de convenção. Nossas conversas mais espontâneas, não raro movidas a uísque, eram tão singulares e surreais que me parece simplesmente impossível transpô-las para a racionalidade discursiva do texto. Portanto, ninguém pode fazer ideia adequada do que eram nossos papos, nem sequer eu que os retive na memória definitivamente marcada por uma experiência de convívio irreversível e intraduzível.
O Daniel com quem convivi era antes de tudo um espírito anárquico e passional, investido de um senso de rebeldia e sensualidade indomável típicos de uma criança saudavelmente incivilizada. Por isso, dentro das fronteiras da nossa intimidade, era capaz de coisas que não poderia escrever sem trair nossa confiança recíproca, os modos de cumplicidade fruto de uma amizade tecida de fios e entrançamentos inefáveis. O que posso afirmar é que, no exercício da liberdade que inventamos, avessa a toda sorte de convenção e hipocrisia correntes nos nossos modos rotineiros de convívio, nada era sagrado.
Mas tudo passou. Quero dizer, o melhor dessa amizade iluminada, libertária e libertina, tornou-se luxo do passado, pois meu velho amigo já não tem energia física nem mental para acompanhar-me pelas estradas venturosas que durante anos imaginamos, refizemos e fruímos. Embora ainda me solicite a reatar certos tons de conversa, sinto que já não me acompanha ou reage perplexo diante de expressões de inteligência antes banais no nosso convívio. A memória lhe falha com tanto desconcerto e frequência que é difícil sustentarmos uma conversa coerente. Assim, entristece-me observar a força insidiosa do tempo corroendo um espírito antes tão ágil e agudo, tão irreverente e espirituoso. Revê-lo no estado em que ontem o medi com certa dor íntima e inconfessada é de algum modo nele antecipar a ruína que um dia também serei.
As breves observações acima explicam meu distanciamento de Daniel. O que constituía o sentido e o caráter absolutamente singular da nossa amizade é hoje impraticável. Daniel precisa agora, precisa já há alguns anos, dos amigos qualificados para socorrê-lo nas instâncias práticas que pouco afetam minha habilidade ou competência. Nesse sentido, ele é um velho afortunado, pois teve sempre uma rede de amigos fiéis generosamente devotados ao exercício da amizade feita de assistência e cuidado. Célia, antes de todos, é a mulher sempre a postos para servi-lo nas instâncias domésticas que hoje já não pode dispensar, embora isso constranja seu indomável espírito de independência.
Enquanto pôde, enquanto teve energia física e mental, Daniel isolou-se na sua ilha que era na verdade uma casa suja e mal cuidada em todos os sentidos, pois nunca deu a menor importância a esses cuidados rotineiros que eu, por exemplo, também habitante solitário, zelosamente administro. Até a descarga do vaso sanitário, avariada por excesso de uso, ficou inutilizada durante todos os anos em que ocupou a casa onde o visitava no bairro da Torre. Trocou-a por um balde de plástico e não mais se amolou com medidas de higiene. Sua geladeira era outro caso de calamidade doméstica. Ele pouco ligava, para não dizer que simplesmente cruzava os braços, arriava sobre sua cadeira desdobrável de leitura e afundava os olhos e a imaginação delirante nos livros. O mundo prático lhe era de ordinário indiferente. Nesse sentido, aproximava-se um pouco do cinismo praticado por um filósofo como o lendário Diógenes.
No que se refere à saúde, teve e tem amigos médicos sempre solidários e devotados nos momentos em que precisou da medicina e práticas conexas. Vital Lira, acima de todos, o tem assistido desde a juventude, quando era ainda estudante de medicina. Sempre que Daniel dele precisou, com ele irrestritamente contou. Além dele, há Zildo e Zeferino Rocha e outros amigos devotados que sempre o visitam e zelam para que nada de necessário lhe falte. Além da sedução única que exerceu sobre toda essa inumerável rede de pessoas, sabia astutamente empregá-la visando fins calculadamente pragmáticos. Como fui sempre incapaz de exercitar esses dons, muitas vezes me advertiu para a necessidade de saber cercar-me de amigos úteis, empregáveis nas circunstâncias em que precisamos de ajuda e solidariedade.
Por fim, até assistência editorial lhe foi recentemente oferecida por amigos e admiradores como Luzilá Gonçalves, Leda Alves, Lourival Holanda e outros atuantes na cultura e na burocracia cultural do Estado. Graças a esses e outros amigos, teve uma coletânea de poemas publicada pela Cepe, editora do governo do Estado. Além disso, alguns desses amigos, treinados nas artimanhas da política cultural, logo cuidaram de inscrever o livro como um dos concorrentes ao prêmio de poesia da Biblioteca Nacional. O resultado é que Daniel obteve por unanimidade o primeiro lugar derrotando concorrentes de peso como Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant´Anna.
E assim, já aos 95 anos, o velho corre agora o risco de se tornar célebre quando antes era apenas um mito astutamente costurado por um rol de anedotas e casos pitorescos bem típicos da nossa tradição cultural. Bicho desenraizado, cronicamente desajustado e delirantemente imaginoso, Daniel soube fazer disso tudo e de si próprio um mito que durante décadas se difundiu em certos círculos sociais do Recife. Agora, pesa-me dizê-lo, é um corpo velho e um espírito turvo que vão gradualmente definhando. Mas há o mito desde muito cultuado por uma devotada rede de amigos e admiradores; há agora o poeta publicado, o poeta ilustrado por fotógrafos, o poeta inspirador de um primoroso calendário editado pela Cepe.
Além dos vários livros de poemas, fonte da coletânea organizada por Luzilá Gonçalves, há ainda o autor de um extenso diário, artigos e ensaios versando uma grande variedade de temas. Acho que Daniel é superestimado por muitos que de resto não têm real conhecimento de sua obra nem credenciais intelectuais e críticas para melhor ajuizarem acerca do muito que erraticamente escreveu. Não tenho a presunção de conhecer tudo que produziu, mas li muitos dos volumes fielmente datilografados e encadernados por Célia. Além de os ler, discuti-os com ele dentro da medida de franqueza e paixão discursiva típicas das nossas conversas. Procedendo a uma apreciação sumária e grosseira, diria que muito pouco do que escreveu tem força para sobreviver. Seus ensaios filosóficos e literários traem muito da sua formação erraticamente autodidática e revelam um senso de gosto e apreciação crítica provincianos vincados por falhas clamorosas típicas de um intelectual preso a horizontes muito estreitos. Seu talento é inegável, sua cultura insaciável, mas desordenada e carente de critérios intelectuais consistentes.
Embora tenha lido uma enormidade, é com certeza o leitor mais onívoro que conheci, espantava-me a volubilidade, o hedonismo errático com que saltava de uma obra de nítido valor estético e intelectual para o best-seller mais descartável, ou capítulo de telenovela mais lacrimoso. Tudo isso traía no grande leitor que foi um autodidatismo de efeitos desastrosos do ponto de vista de uma formação intelectual mais consistente e equilibrada. Essas falhas flagrantes de formação são de resto comuns em intelectuais autodidatas como ele e eu, no geral presos a um ambiente mental bastante limitado.
Em suma, penso que o melhor do que nos deixa é sua poesia, embora ache muito discutível a seleção feita por Luzilá Gonçalves para o volume que foi lançado no ano passado,distinguido, como já ressaltei,com o prêmio da Biblioteca Nacional. O velhinho merece essas honras e o reconhecimento tardio decorrentes da sua rebeldia não raro dissimulada em extravagância e trapalhadas, não poucas astutamente maquinadas, que o converteram em figura folclórica. Antes isso do que a reclusão em que ele e sua obra viveram durante a maior parte de sua vida já bem longa e singularmente vivida.
Concluindo, Daniel soube fazer de si um personagem mítico e talvez aí resida seu inigualável poder de sedução. Para os que o supõem sábio, talvez sua sabedoria consista na crença delirante com que viveu a vida em estado de felicidade infantil nutrida e defendida por uma força de egocentrismo única. Daniel numa frase? Um narciso feliz em estado de embriaguês inocente.
Recife, 09 de janeiro de 2012.
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