segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
Noite e dia
Um dia, certo fatigado
da luz absoluta que sobre a terra reinava
Deus mergulhou-a num poço de trevas.
Depois, partilhando-a numa e noutra mão
com a direita recolheu a fração de luz ainda pura
com a esquerda, a treva do poço.
A uma chamou-a dia, a outra chamou-a noite.
Ao dia, com o lento fazer-se do mundo
se conjugaram o trabalho, a safra dos campos lavrados
o exercício da infância acordada.
E ainda: a bicicleta, o futebol
a nudez da face entre cruel e pesarosa.
À noite ajuntaram-se o ruído das festas
e o silêncio das ruas
o trabalho dos garçons e dos vigias
do farol na barra, do furto meticuloso.
A brisa na noite é outra
(diferença acaso mais sensível àqueles
que se recolhem para as paisagens litorâneas do mundo).
Na noite outro é o amor
outro ainda mais do que outra
é a diferença da brisa.
Pois é no íntimo da sombra
que melhor revela sua nudez liberta
da constrangedora claridade do dia.
Na noite o amor viaja em ritmos de exaltação e repouso
e ao abrigo da sombra
sabe a delícia dos jogos mais perversos.
A noite vive de desejos e confidências
incogitáveis à luz.
À sua sombra os amantes instauram uma desordem
que equilibra a opressiva normalidade do mundo.
Ali, na opacidade da sombra
batem-se os seres mais ternos
em lutas de gozo e sangue.
E sonhos os mais furtivos
brotam do ventre da noite
sem pejo de se despir
despindo a nudez mais pura.
O mundo vão desmontando
sedentos de o refazer
com outra medida, outro erro
que assim sem cálculo pensado
até semelham um acerto.
Mas Deus inventou o sono
para o repouso da noite.
Sabe ele quanto são complicadas as suas criaturas.
Sabe que o dia as consome
em afazeres inúteis.
As grandes razões, sempre obscuras,
silenciosas deslizam
nos mais secretos porões.
Assim, o mundo dorme e também sonha.
Essas humanas carências
Deus não esqueceu de as prover.
Certo nem todos adormecem
mas é a hora do sono.
Adultos os mais austeros
carrascos, os mais severos
todos ao sono se rendem.
E o sono milagrosamente pacifica
os mais duros agentes do dia.
A ele todos os cuidados se entregam
todas as futilidades se abandonam.
Mas eu, eu que não durmo
eu que padeço de insônia
eu que medi a espessura da vigília
e os muros da solidão
há muito transporto o sono para o dia seguinte.
Sou parte dos que não dormem
a inconsciência do sono.
Fico com as sobras da noite
que a tantos já saciou.
Há uma hora na noite
largo silêncio, deserto: a hora da solidão.
Mas salve o dia que tinge
o mais remoto horizonte.
Garçons vigias faróis piscando na barra
o próprio Deus fatigado da vigília
fatigado de espreitar sua insolúvel criatura
todos aliviados respiram ante a perspectiva do dia.
E o dia lento vem vindo
lento crescente se faz.
Nele a saudade da noite
que só a noite sacia.
E a noite, quando anoitece
sente saudade do dia.
Porto de Galinhas, agosto 1987.
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