quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma Passagem pelo Mosteiro



Diante da imensa repercussão da Jornada Mundial da Juventude liderada pela figura carismática do papa Francisco, parece-me oportuno voltar a postar no meu blog a crônica abaixo, escrita originalmente para o blog Amálgama, editado por Daniel Lopes. O essencial do que escrevo é memória pessoal. O que sobra, e talvez mais importe, sobretudo nas circunstâncias presentes, é matéria de controvérsia. O leitor religioso, ou demasiado otimista ao sopro do extraordinário impacto da Jornada que por pouco não monopolizou a programação semanal da Rede Globo, pode de imediato contestar o que afirmo acerca da irrelevância normativa da religião no mundo em que vivemos. Admito o caráter discutível das minhas afirmações mais extremas. Nâo tenho a presunção de ser detentor de verdades, apenas portador de uma voz crítica que tem o direito de ser ouvida e discutida.

A leitura de um artigo de Christopher Hitchens – The Pope is not above the Law, conferir tradução de Daniel Lopes no blog Amálgama – lembrou-me minha remota passagem pelo mosteiro de São Bento, Olinda, no início dos anos 1970. Embora já afastado de minha formação católica, que foi de resto muito permissiva, tinha e continuei tendo grandes amigos religiosos, não apenas católicos, ao longo da vida. Dentro de minhas convicções liberais e radicalmente individualistas, procurei sempre respeitar a liberdade de religião e credo em geral, contanto que fundados em valores de tolerância e respeito pelos direitos humanos, com perdão da fórmula abstrata. A leitura de alguns iluministas, sobretudo o anticlerical Voltaire, de Bertrand Russell e da cultura marxista da época afastaram-me por completo da religião. Essas marcas do meu passado intelectual reforçam o apreço que tenho hoje pelo combate antirreligioso travado por críticos militantes da religião como Richard Dawkins e Christopher Hitchens.

Fui levado ao mosteiro de São Bento por um amigo cuja coerência religiosa muito admirava. Admitido no mosteiro para viver a semana santa em estado de voluntária reclusão e penitência, obteve junto à abadia autorização para levar-me como acompanhante (favor não confundir o termo com o sentido que os sites pornô lhe emprestam no presente). Confesso haver seguido meu amigo com altas e líricas expectativas. Tinha enorme desejo de conhecer a famosa biblioteca do mosteiro. Além disso, era então leitor apaixonado de Hermann Hesse, que me perturbou a imaginação romântica com obras como Sidarta e Narciso e Goldmund.

Fui muito bem acolhido no mosteiro. Mal cheguei, o irmão hospedeiro surpreendeu-me ao me ceder o quarto de hóspedes em caráter exclusivo, enquanto meu amigo ficou recolhido em outro bem mais modesto. E logo as coisas começaram a desandar. Encurtando a história ao ponto de suprimir todos os detalhes embaraçosos, fui tão assediado sexualmente no decorrer de algumas horas que prontamente pedi socorro a meu amigo. Quando a história chegou ao conhecimento do irmão hospedeiro, este procurou-me visivelmente constrangido, pediu-me para não considerar casos excepcionais como prática normal dentro da instituição e logo providenciou minha transferência para o quarto do meu amigo, onde afinal me senti a salvo das tentações movidas contra minha carne. Como hoje diria Severo Machado, ressoando palavras de Boris Pasternak e Luciano Oliveira, a carne é forte até dentro das santas paredes dos mosteiros.

Na manhã seguinte, reunidos no refeitório, onde me impressionaram o excesso de comida e a voracidade de alguns monges em plena semana santa, nenhum dos que me assediaram na véspera sequer ousava olhar para mim. Em paz comigo, também com a bela paisagem histórica de Olinda, então isenta do batuque e da violência hoje correntes, refugiei-me na biblioteca. Foi lá que pela primeira vez encontrei a edição integral da obra de Freud e comecei erraticamente lendo-a. O fato logo desagradou ao irmão hospedeiro, cujo generoso acolhimento acima louvado encobria uma intenção que muito me incomoda: a bondade e a suposta compreensão praticadas com propósitos de conversão. Noutras palavras, a intenção dele era converter-me, ou reconverter-me. O fato de reiteradamente surpreender-me com um volume de Freud nas mãos logo o contrariou e logo passou da contrariedade à crítica impaciente.

Conversei livremente na biblioteca e no pátio com alguns noviços durante meu retiro no mosteiro. Dois claramente sofriam dramas morais decorrentes de homossexualidade reprimida. Ambos admitiram haver optado pela conversão à ordem regular movidos antes pelo desejo de suprimir suas tendências “pecaminosas” do que pelo apelo da fé. Apesar de então agnóstico, hoje sou ateu, chocaram-me as evidências rotineiras de futilidade e fuga negativa do mundo a que assisti durante minha passagem pelo mosteiro. Jovens privados de autênticos ideais espirituais ou intelectuais dissipavam sua vida de reclusão ouvindo lixo cultural com o ouvido colado ao radinho de pilha. A biblioteca, que tanto me encantou e revelou tesouros largados à poeira do tempo, vivia entregue ao abandono. Apenas um velho monge, de origem belga, dela cuidava catalogando zelosamente milhares de volumes e documentos que aparentemente a ninguém interessavam.

Se à volta de 1970 as coisas dentro da ordem regular já eram assim, o que dizer hoje, dentro e fora dos mosteiros? Tenho um jovem amigo, um dos melhores indivíduos que conheço, que certo dia cotejou sua experiência de interno num seminário católico com minha passagem pelo mosteiro acima condensada. O que mudou para pior, em tudo que se possa conceber, salta aos olhos de quem tenha a coragem e a honestidade de mantê-los abertos.

A verdade é que a Igreja católica teima hipocritamente em vedar o sol com a peneira. Não sou cristão, muito menos teólogo ou autoridade religiosa, para propor qualquer solução. Sei apenas, no que sigo a lição de Freud, que somos movidos por pulsões incivilizáveis. Ou algo que seria nosso cerne biológico indomável pela civilização. Aludiria, mais claramente, ao sexo, ou à fortaleza da carne, que desafiou sempre com astúcia e energia irrefreáveis todas as interdições impostas pela cultura, a religião, os códigos penais etc. É perda de tempo tentar suprimi-la. Tudo que podemos, e é o melhor que podemos, é elevá-la a formas de sublimação patentes na história da arte, da literatura, da própria religião, das forças humanas mais civilizadoras compreendidas no sentido positivo do termo. Noutros termos, nossas pulsões incivilizáveis podem ser parcialmente controladas, parcialmente convertidas em força sublimadora da destrutividade humana, mas nunca suprimidas.

O problema é que as forças civilizadoras do Ocidente estão reduzidas a bandalhos. A irrelevância normativa do catolicismo, assim como da religião em geral, salta novamente aos olhos de quem tenha a coragem de abri-los. Religião tornou-se antes de tudo investimento, show business, como diria um executivo da Globo, ou um pastor bem sucedido no mercado da fé. O maior espetáculo midiático da semana santa, sediado em Nova Jerusalém, Pernambuco, neste ano contratou a atriz Suzana Vieira para interpretar Maria, mãe de Jesus, símbolo milenar da castidade e das virtudes femininas pregadas pelo catolicismo. No comments. Um ladrão roubou uma igreja em São José dos Campos e se apropriou até da cabeleira que adornava a imagem do Cristo. Não bastasse tanto, levou o sacrilégio ao extremo de roubar todo o estoque de hóstias da igreja, que assim ficou privada de meios para prestar serviços de confissão e comunhão durante a semana santa. No Maranhão, medidas adotadas contra roubo, depredação e sacrilégio reduzem igrejas a autênticas penitenciárias ou fortalezas. Deus é fiel? E nós, a que somos fiéis?

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