sexta-feira, 28 de maio de 2010

Dylan Thomas - Amor Extremo


Curioso como na sociedade da informação as pessoas sabem de tanta inutilidade que se dão ao luxo de ignorar Dylan Thomas. Pelo menos é isso o que sugere a sinopse do filme Amor Extremo (The Edge of Love, Inglaterra, 2008). A sinopse nos informa que o filme é baseado em personagens reais, logo a seguir identificados: Caitlin (Sienna Miller), Vera (Keira Knightley), William (Cillian Murphy) e Dylan (Matthew Rhys). Além de não vir identificado como o grande poeta que foi e é, para o autor da sinopse Dylan é apenas Dylan. E pensar que Dylan Thomas foi um poeta famoso muito além dos círculos literários, muito além das camadas letradas que leem poesia e conhecem a tradição poética de língua inglesa. Dylan foi tão famoso que emprestou seu nome à criação do nome artístico de um dos ícones supremos do pop universal: Bob Dylan, cujo nome verdadeiro é Robert Allen Zimmerman.

Dirigido por John Maybury, o filme foi escrito por Sharman Macdonald, que se inspirou em duas obras de parentes dos personagens envolvidos na trama: David N. Thomas, A Farm, Two Mansions and a Bungalow e Esther Killick, Personal Sketch of Vava and Personal Sketch of Papa. Importaria acrescentar a esses créditos seletivos do filme a fotografia esplêndida e a trilha sonora, da qual destacaria duas canções assinadas por Angelo Badalamenti e o próprio diretor John Maybury: Careless Love e Careless Talk.

A ação de Amor Extremo concentra-se na Segunda Guerra, quando Londres era impiedosamente bombardeada pelos aviões nazistas. Algumas cenas de devastação e horror causadas pelas temíveis V2 projetadas contra a cidade descrevem algo da vida londrina suspensa num fio tênue entre o agora e o nada, a vida e a morte. Esse fio invisível mas palpável, the edge of life and death, o limite entre vida e morte, pulsa no cerne do filme, das tensões nele expostas. É nesse contexto pontuado por situações extremas que os dois casais se associam: Dylan e Caitlin, Vera e William. Para complicar ainda mais as coisas, Dylan e Vera tiveram um caso quando adolescentes. Dylan foi o primeiro amor de Vera e ambos, por vias divergentes e conflituosas, repõem a paixão adolescente no solo turbulento do presente. Outra fração substantiva da trama decorre em New Quay, País de Gales, onde os personagens se refugiam dos terríveis ataques aéreos dos alemães sobre Londres e Swansea, cidade natal de Dylan. Esse é o cenário dos episódios finais cujo clímax é a separação dos casais amigos. O filme acaba quando cada um deles segue seu próprio destino.
Enquanto William foi à guerra e dela voltou psiquicamente traumatizado, Dylan ficou com a poesia, as mulheres e o pub. Não foi à guerra talvez também por covardia, medo de enfrentar as situações extremas nela supostas, sobretudo a que implica matar e morrer, mas antes de tudo por recusar as paixões associadas ao espírito de beligerância nacionalista. O fato é que na véspera de sua convocação militar tomou um porre monumental e no dia seguinte apresentou-se suando, pálido e trêmulo como um incapaz para a guerra. Foi dispensado. Isso tornou-o compreensivelmente impopular, exposto à crítica e ao ressentimento nacionalista da maioria que apoiava maciçamente os combatentes.

O filme inclui alguns versos de Dylan Thomas. O espectador de ouvido musical, ainda que ignore a língua inglesa, retém a musicalidade que inscreve a obra de Dylan entre o texto impresso e o texto falado, a ponte sutil que vincula Dylan Thomas a Bob Dylan. O próprio poeta confessa o quanto o seduzia o poder encantatório das palavras. Desde a infância, contemplado pelo privilégio de ouvir Shakespeare e outros grandes poetas, viveu embalado pela musicalidade da palavra, pela inefável sonoridade da palavra que associava a outros sons primevos: o do vento, do mar, da chuva, dos instrumentos musicais, dos sinos... Esses sons primevos são também sensíveis na tela como se traduzissem metaforicamente o enraizamento das vidas vividas no limite da natureza e das paixões.

Talvez a conjugação entre a palavra e a música explique o caráter obscuro de tantos versos de Dylan Thomas que, não obstante obscuros ou incompreensíveis, encantam pela pura musicalidade, envolvem o leitor como se este ouvisse uma canção sem texto, ou acrescida de texto cujo sentido lógico seria irrelevante. Não duvido de que grande parte da força e da sedução da poesia de Dylan Thomas decorre dessas características. Ademais, do ponto de vista temático, são também valores primevos que nela ressaltam: o amor e a morte compreendidos como pulsões entrelaçadas, um no avesso da outra, a energia elementar da natureza entranhada na nossa condição.
Como tantos poetas, sobretudo quando românticos, Dylan começou a escrever poesia precocemente. Mas vale acentuar que não foi um artista entregue às intuições fáceis do romantismo espontâneo, tão corrente na nossa tradição, por exemplo. Além de ter tido um pai que era intelectual e professor bem formado, dedicou-se desde cedo à leitura e reflexão sobre a poesia. Tanto isso é verdade que, a julgar pela sua correspondência, já por volta dos 20 anos tinha nítida consciência do que queria realizar como poeta. Além disso, também precocemente trabalhou num jornal de Swansea para o qual escreveu crítica de teatro e música. Também desde cedo distinguiu-se pelo talento com que lia publicamente sua poesia em pubs e no círculo dos amigos. É significativo o fato de preferir que ouvissem sua poesia em lugar de a lerem. Isso novamente denota o valor fortemente musical do seu verso, sua identidade de bardo que aliás induziu alguns de seus críticos mais severos a depreciarem seu valor como poeta.

Dylan conheceu Caitlin Macnamara num pub e tudo aconteceu como amor ao primeiro porre, que durou até o último, quando ele morreu de uma overdose de álcool em Nova York. Caitlin era uma irlandesa passional e intensa, promíscua como ele, entregue às forças elementares da vida, também como ele. Em suma, tinham tudo para dar certo e errado, como o filme dirigido por John Maybury bem nos revela. Houve um tempo em que foram felizes o suficiente para que ela escrevesse que eram twin souls, almas gêmeas. Muita gente que ama acredita nesse mito romântico, ainda mais se são românticas, como era o caso.

Soa algo irônico o fato de entre tantos seres passionais, entre extremos inscritos na face da história e no corpo dos personagens, o mais extremo seja precisamente William, o militar que guerreava para saber que não tinha medo, ou que não podia ter medo. É o amor corroído pelo ciúme, ou já patológico, que o impele a desencadear a situação mais extrema e perturbadora do filme. Daí sobrevém o desenlace, a separação inevitável. Das duas mulheres, Caitlin e Vera, irradia o sopro de mais intensa e inusitada beleza do filme. A poesia que está na poesia e além da poesia de Dylan Thomas: a poesia das relações insólitas de amor e beleza que a arte eleva acima da banalidade em que nossas vidas de clipe publicitário se movem e desperdiçam.

Um dia fui a Swansea visitar amigos. Fazia um frio de doer, frio como o que gela Caitlin e Vera brincando na praia, na tarde em que fomos passear pelo centro da cidade depois de tomar algumas cervejas. De repente, no meio de uma praça deserta, deparamos a figura gordinha e baixa de Dylan Thomas imobilizada em forma de estátua. Uma justa homenagem prestada pela cidade a um dos seus artistas e alcoólatras mais eminentes, mais tarde acrescido de dois outros artistas e alcoólatras de peso similar: Richard Burton e Anthony Hopkins. Enfim, pensei comigo, ei-lo sóbrio, serenamente imóvel em meio às turbulências da vida que tanto o consumiram e tanto lhe serviram como matéria de poesia. Então fotografei meus amigos ao lado de Dylan Thomas, embora mal fizessem ideia de quem fora, e por fim eu próprio gravei na memória e no clique da câmera aquele momento único. Vamos reler Dylan Thomas.

Um comentário:

  1. Menos sobre o filme e mais sobre a poesia: se em Beckett encontro estes versos, que nunca deixam de me impressionar no plano imagístico-conceitual:

    "Unfathomable mind, now beacon, now sea"


    , são de Dylan Thomas estes outros versos, que conseguém ir além dos citados acima ao juntar em si não apenas a plasticidade visual (a imagem utilizada) e a conceitual ), como também uma plasticidade rítmica que não canso de escutar em voz alta. E todas essas três qualidades, inseparáveis uma das outras: o conceito que não pode existir sem a imagem; a imagem, inimaginável sem o conceito; os dois, integrados -- tecidos, entrelaçados -- por esse ritmo, que ao mesmo tempo em que conduz as palavras, paradoxalmente as condena, quando ensaiam uma explicação de si mesmas, ao silêncio:

    "Oh as I was young and easy in the mercy of his means,
    Time held me green and dying
    Though I sang in my chains like the sea"

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