segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dia das Mães




Zélia é uma mãe antiga, de um tempo cujos traços mais nítidos sumiram do horizonte do presente. Tão antiga, ou já tão irreal, que é do tempo em que as mães casavam para sempre e ao casarem consagravam sua vida ao marido, aos filhos e à casa. Quando casou com Eduardo, a quem maternalmente habituou-se a tratar como Dudu, o mundo da mulher e das suas relações com o mundo do homem parecia muito simples. Enquanto ele reinava na rua, ou no mundo, ela reinava na casa.

Dudu foi o único homem que conheceu e amou na vida. Casaram-se logo que ele se formou em medicina. Ele tinha então 23 anos de idade; ela, 17. Maria Vitória, a filha mais jovem, diz agora, com certo travo de amargura, que ele é apenas uma fotografia pendurada num móvel da sala. Ela não sabe, ou é incapaz de compreender, que Dudu está vivo. Apesar de morto há cinco anos, sua presença é tão dominante na vida de Zélia que nem consegue imaginá-lo morto. Agora que é viúva e velha, ou está na boa idade, como dizem por aí, Zélia tem a solidão dos dias que lhe restam para conversar com Dudu. Nada faz na vida, nada sobre ela decide sem antes consultá-lo. É sobretudo na hora de dormir, quando reza suas orações e pede a Deus pela vida dos filhos e netos, que senta no sofá ao lado de Dudu e conversa sobre os dois, sobre os 60 anos vividos um ao lado do outro. Um dia, tem fé, deixará de conversar apenas com o espírito de Dudu, apenas com a memória que dele preserva, e irá a seu encontro. E assim a vida e o amor que aqui compartilharam serão transpostos para uma eternidade sem incerteza ou sobressalto.

Faz dois anos que Zélia escolheu viver sozinha num pequeno apartamento. Deixou a cobertura luxuosa que dividia com arthurzinho e Maria Vitória para viver solitária na sua concha de 60m2. Ainda hoje os filhos e demais parentes são incapazes de compreender sua decisão de ficar sozinha na velhice avançada. Somente Fernando, o amigo que a escreve e assim a recria como abstrata figura tecida com palavras, somente ele aparenta compreendê-la. Sua explicação é simples: não quer morrer sem antes saber o que é ter seu próprio lugar, a pequena ilha onde precisa aprender a experiência da solidão antes da morte, da viagem última que a levará ao reencontro com Dudu.

Amanhã todos estarão aqui. Será um domingo de festa dentro da sua ilha que mal contém espaço para acolher tantos filhos, netos e outros parentes. Faz uns quinze dias que a televisão não fala de outra coisa que não seja o seu dia. Tudo isso lhe confunde a inteligência afeita apenas às práticas da vida simples que vive. De repente elevam-na a tantos modos de amor, a tantas provas de carinho, reconhecimento e importância que desacerta até o modo inconsciente de andar entre a sala e a cozinha, a TV e o telefone que amanhã tocará sem repouso.

Perplexa diante de tantas imagens sedutoras, erra estrangeira e anônima entre comerciais do shopping center e de um banco que nem conhece, entre geladeiras, móveis, farmácias, supermercados, lojas de roupas e joias, sapatarias e locadoras, sociedades comerciais e beneficentes e toda uma infinita sucessão de lojas, bancos, mercados , comerciantes, publicitários... Não bastasse tanto, ouve tanta gente famosa falando dela com amor, tanta gente que nunca a viu nem a conhece... “Meu Deus, como guardar em mim meu anonimato humilde depois de tanta celebração, depois de tantas provas e promessas de amor? Como comprar tudo que me querem vender em meu nome, tudo que me vendem do que não preciso? Até parece que gerei meus filhos e eduquei-os apenas com o propósito de que no meu dia me dessem presente. O mais engraçado de tudo é que também meus netos me querem presentear. Como não têm renda própria, me pedem dinheiro para me dar presentes que ironicamente acabo pagando”.

Maria Vitória virá com novo marido, que é já o quarto. Os filhos, saídos de amores tão desencontrados e instáveis, brigam tanto que precisa sempre testar sua paciência e compreensão do seu amor de avó para apaziguá-los quando a seu lado. Ana Célia, a primogênita, separou-se do último marido, que foi o terceiro. Queixa-se sempre da solidão da casa, da ausência dos filhos já crescidos e soltos na vida. De repente, deu para morrer de amores por cachorros e parece andar mais equilibrada. Já que nos desavimos como seres de convívio e vida rotineiramente conjugada, resta-nos agora o amor dos cachorros. Marluce, depois de tanto errar de amores, arranjou uma companheira com quem vive dentro de uma comunidade mística que criaram em Brasília. “E Arthurzinho, meu Deus, bebendo tanto que já precisou até fazer tratamento no AA... Tudo isso me confunde a cabeça e a imaginação, tudo isso desconcerta meu coração de mãe estrangeira num mundo tão desequilibrado”.

Mas amanhã todos estarão aqui. Farão tanto barulho com televisão ligada, celular, videogame e telefonemas simultâneos, conversas desencontradas em meio ao ruído do apartamento... “Meu Deus, confesso que preferiria a companhia silenciosa de Dudu. Com ele, na solidão da noite antes do sono, sinto-me afinal reconciliada comigo própria, com os valores e a atmosfera de um mundo apagado das trepidantes linhas do presente. Depois da festa, como sempre acontece, todos partirão e durante um ano viverei como uma ausência sem queixas na memória volúvel desses pedaços de mim nos quais já não me reconheço nem eles em mim se reconhecem. Não sei o que seria de mim e da minha velhice solitária, não houvesse o amor sempre fiel e presente de Dudu iluminando minha vida. Um dia viajarei afinal a seu encontro e então já não haverá dia das mães na vida de filhos e netos que gastam tanto tempo e dinheiro no shopping para me dar o que não preciso e enganar a falta do que tanto neles e em mim me dói: o sentido de um amor sem comércio”.

2 comentários:

  1. Olá Fernando:
    Gostei muito deste conto, se é assim que posso chamar esta postagem. Estava refletindo sobre a maternidade e seus descompassos. As vezes penso que nessa relação se tirar o comércio nada ficará. Conceição

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  2. Conceição:
    Acabo de ler e postar no meu blog seu breve comentário. É claro que sua outra mensagem é muito melhor, mas tem um caráter tão íntimo, tão pessoal, que você compreensivelmente preferiu enviá-la como correspondência privada. Lillian infelizmente leu minha crônica, ou conto,como diz você, como se minha personagem gostasse da solidão em que vive. Ora, não há nada disso no conto. Há solidão, sim, e de modo nenhum desejável. O que afirmo é que ela teve a coragem, somada à necessidade, de na velhice querer um lugar seu, exclusivamente seu, para conhecer a experiência da solidão, um tipo de solidão impensável no seio da família onde, desde a adolescência, foi educada para ser mãe, inclusive do próprio marido, avó, zeladora da casa e da família etc. Zélia quis e precisou descobrir na velhice o sentido de ter um lugar próprio. Por isso trocou uma cobertura por um pequeno apartamento. Numa coisa, pelo menos, ela é uma mulher afortunada, desfruta de uma fortuna impensável na história amorosa e conjugal da mulher de hoje. Zélia tem a memória de amor do marido. Essa memória é tão fundamental, impregna tão poderosamente sua vida e sua solidão que a ajuda a continuar vivendo na solidão do seu apartamento como se Dudu estivesse ainda vivo, como se sua presença espiritual sensível abolisse a fronteira entre vida e morte, entre a presença física e a espiritual. O mais negativo do meu conto remete à mercantilização extrema dos afetos, em particular o afeto que devotamos às nossas mães, nesse grande bazar que é o capitalismo de consumo brasileiro. Nesse sentido, a chave do conto, ou crônica, está na frase final. Confesso que tenho horror a essa realidade que domina o conjunto das nossas relações sociais. Evito proceder a uma crítica moralista desse problema, mas confesso não ter certeza de examiná-lo com a objetividade desejável. É uma ilusão supor que as relações íntimas estão a salvo dessa mercantilização que, de tão onipresente, torno-se transparente. Não a vê quem não quer, ou prefere viver cego pela ilusão do que deseja. Beijos,
    Fernando.

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