terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ariano Suassuna na Bravo


Uma Nova Conciliação Cultural?

Alguns dos mais agudos críticos da história cultural brasileira têm com propriedade acentuado o caráter conciliador que permeia seu desenvolvimento. A argumentação geral se desdobra com igual propriedade para o domínio correlato da história política. Dado que as formas culturais não são nunca inocentes, ainda quando se possa argumentar em defesa da autonomia relativa dos produtos estéticos, como dissociar arte e ideologia, mais ainda quando a expressão artística segrega nítidos valores ideológicos?
Especificando as questões acima propostas em termos genéricos, como ler a ampla matéria sobre Ariano Suassuna publicada na revista Bravo! passando ao largo de alguns problemas ideológicos implicados nos juízos e formulações de louvação quase irrestrita dirigidos à obra e à ação intelectual de um escritor que se tem distinguido como um opositor intransigente das formas culturais e ideológicas geradas pelo capitalismo na era de sua triunfante globalização?
A conciliação aparente entre a orientação ideológica da revista e a do escritor fere o leitor atento com um inquietante rumor de perplexidade. Senão vejamos. Bravo! constitui em muitos sentidos um fato notável na cena cultural contemporânea. O que no caso importa acentuar com vistas aos propósitos deste artigo polêmico é o que simboliza como fator de aceleração mercadológica da cultura. Ostentando credenciais de requintada modernidade estética, assinaláveis na seleção geral das matérias e sobretudo na produção gráfica que lhe imprime inusitada vestimenta, a revista pode bem ser distinguida como um sopro revitalizador do acéfalo jornalismo cultural brasileiro. Sei que a modernidade, estética ou não, é impura e talvez indefinível. Ainda assim, reitero a perplexidade derivante da conciliação observável entre a revista e a obra e a ideologia de Ariano Suassuna.
A ideologia mercadológica da revista reponta, como frisei, em toda a sofisticada composição gráfica e na documentação fotográfica que imprimem relevo estético aos textos publicados. Assim, se Ariano Suassuna tem fundamentalmente concorrido para nobilitar o passado cultural nordestino, dissolvendo as bases da dominação patriarcal e oligárquica em mitologia sertaneja, convertendo a tradição artística popular em reacionarismo estético erudito, tudo isso operando no sentido de cimentar ideologicamente a manutenção das formas tradicionais de dominação no Nordeste, Bravo!,em contrapartida, mercantiliza, em termos capitalistas avançados ou sulistas, o folclore e a cultura da miséria nordestina. Em suma, Ariano Suassuna e Bravo! constituem uma variante cultural da aliança entre o Brasil do atraso e o Brasil moderno.
Observe-se, a propósito, a foto que ocupa toda a página 61 . Sugeriria que fosse interpretada em três planos distintos, e no entanto entrelaçados. No primeiro plano, a figura ambígua do mandarinato patriarcal. Ambígua porque, retendo na identidade individual de Suassuna símbolos vivos da nossa miscigenação cultural, alia o medalhão ostensivamente exibido sobre o peito à face matreira do popular, o ar bonachão dissimulando o mandarim gestor e protetor da identidade cultural do povo disposto no plano intermediário da foto. Esse povo, dançando sobre a poeira e difusamente enquadrado entre o primeiro plano, o do mandarim-popular, e o plano de fundo, onde se elevam as pedras míticas do reino sertanejo, paga o ônus secular do atraso e da dominação oligárquica.
Seria incapaz de negar a devoção sentimental de Ariano Suassuna a esse povo. Ele encarna, de fato, na arte que produz, assim como na viva figura humana que seduz e cativa a admiração de tantos que o lêem e convivem, valores fundamentais do povo brasileiro e especificamente nordestino. Essa verdade não é entretanto incompatível com a verdade da dominação ideológica que exerce no plano das relações simbólicas entre grupos e interesses sociais. Aparentemente, nada disso é merecedor de relevo no conjunto da matéria publicada pela revista Bravo!.
O tom laudatório dominante no artigo de Reinaldo Azevedo vale-se do artifício do elogio contra o outro para ressaltar os méritos de Suassuna. Assim, o outro desqualificado é ora o vanguardismo modernista de São Paulo, ora Caetano Veloso e os tropicalistas, ora os círculos acadêmicos colonizados, ora os intérpretes “derrotistas” do Brasil. A evidência maior desse artifício retórico está registrada na página 63. Contrapondo Ariano Suassuna a Mário de Andrade nas representações míticas e ficcionais de João Grilo e Macunaíma, louva no primeiro o tom otimista dirigido pela intenção de converter João Grilo em herói triunfante, enquanto o segundo, vítima de melancolia tropical, encarna no anti-herói Macunaíma o derrotismo que pontua muitas das nossas interpretações do Brasil. Não bastasse isso, alude ainda a Mário de Andrade como um mero turista descritivo, ou compilador de cocos.
Proposto nos termos acima, o paralelo neutraliza, antes de tudo, o caráter incaracterístico, o paradoxo é intencional, de Macunaíma. Ora, se Reinaldo Azevedo lesse as entrelinhas polissêmicas de Macunaíma não poderia deixar de perceber essa extraordinária representação do herói popular como um ser crivado de ambiguidades e contradições. Qualificá-lo como anti-herói é, em suma, privá-lo de seus traços substanciais. Por extensão, criticar Mário de Andrade como um derrotista é desconhecer por completo o fato de que nenhum outro intelectual brasileiro tanto concorreu, neste século, para o aprimoramento da nacionalidade inspirado por um desejo generoso e tenaz de reforma das nossas instituições culturais, de valorização das tradições móveis, friso bem o adjetivo, que sustentam essa suposta e controvertida identidade cultural brasileira. O período precedente não traduz um juízo de onisciência crítica, como procedeu Reinaldo Azevedo ao referir-se a Suassuna como “o maior prosador vivo da literatura brasileira”, mas um fato da cultura verificável por quem se dê ao trabalho de investigar a historiografia cultural do período.
Ao fazer de Macunaíma não um anti-herói, como quer o articulista, mas uma representação complexa do brasileiro distintamente incaracterístico e móvel – mobilidade que é tanto geográfica quanto psicológica e moral – Mário nos comunica uma noção muito mais fecunda e transformadora da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que não nos ilude quanto aos seus impasses, daí a atmosfera “derrotista” e “melancólica” que reponta no fecho da obra. Por outro lado, ao idealizar as virtudes mágicas e tradicionais do povo oprimido do Nordeste, Ariano Suassuna ratifica os mecanismos da dominação tradicional da qual é, aliás, o supremo representante intelectual e ideológico na cena contemporânea.
O mote do nacionalismo cultural, sempre explícita ou implicitamente reposto no debate intelectual brasileiro, sem dúvida aproxima, de modo genérico, Mário de Andrade, Ariano Suassuna, Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Jorge Amado, Glauber Rocha, Villa-Lobos e outros que decisivamente contribuíram para o nosso desenvolvimento cultural. Dada porém sua óbvia generalidade, tendente a dissolver num autêntico saco de gatos todo tipo de orientação estético-ideológica, impõe-se a necessidade de distinções qualificativas. Noutras palavras, importa acentuar não apenas o que os aproxima, mas sobretudo o que os diferencia, quando não os opõe. Ora, o que se observa é precisamente o contrário. Subordinando essas distinções fundamentais a valores de ordem mercadológica, cada vez mais favorecidos pelo empobrecimento do debate de idéias, inclinam-se os agentes do processo cultural para os parelelos e analogias carentes de qualquer exame criticamente sustentável.
Uma evidência é o paralelo acima proposto por Reinaldo Azevedo. Outros, antes dele, já propuseram parelelos regidos pelo desejo de aproximar Mário de Andrade e o que Ariano Suassuna e seus seguidores têm realizado culturalmente em Pernambuco. A apropriação do título “na pancada do ganzá”, convertido em bloco carnavalesco de identidade nitidamente conservadora, além de música idem composta e gravada por Antônio Nóbrega, ilustra bem o fenômeno. Despreza-se, no caso, entretanto, uma distinção essencial entre a militância nacionalista de Mário de Andrade, de um lado, e, de outro, a generalidade dos que no Nordeste, e sobretudo em Pernambuco, reivindicam o nacionalismo cultural e seus correlatos ou implícitos: a identidade cultural, a resistência à dominação cultural, o culto da tradição.
É sabido o quanto Mário de Andrade se empenhou na conservação e valorização da cultura popular, na qual discernia o fundamento da brasilidade cultural. Neste sentido, seria justificável aproximá-lo dos nacionalistas em geral. Não sendo entretanto um conservador cultural – para não dizer um reacionário, como é nitidamente o caso de Ariano Suassuna e seus seguidores mais fiéis -, resulta descabido aproximá-lo dos nacionalistas conservadores pela via equívoca dos paralelos e analogias sem rigorosa apreciação das afinidades e diferenças envolvidas.
Procurarei demonstrar ligeiramente meu ponto de vista tomando como referência uma questão essencial suposta no nacionalismo cultural: a relação entre a identidade cultural e a tradição. Embora Reinaldo Azevedo critique Mário de Andrade de passagem chamando-o de turista descritivo, conviria observar uma anotação feita por este durante sua viagem pelo Nordeste. Propondo a distinção entre tradição móvel e tradição imóvel, depois de acentuar que sua identidade de modernista não significava desprezo pelas tradições brasileiras, escreve ele:
“O que a gente carece, é distinguir tradição e tradição. Tem tradições móveis e tradições imóveis. Aquelas são úteis, têm importância enorme, a gente as deve conservar talqualmente são porque elas se transformam pelo simples fato da mobilidade que têm. Assim por exemplo a cantiga, a poesia, as danças populares”.
Assim, se de um lado defende e acolhe as tradições móveis, de outro repele as imóveis. Quem quer que tenha lido atentamente O Turista Aprendiz terá com certeza observado que Mário de Andrade nada tem em comum com um “turista descritivo”. Selecionando criticamente o legado da tradição, ao mesmo tempo que consciente de algumas relações fundamentais entre as formas de criação cultural e as bases materiais em que se inscrevem, chega mesmo a fazer restrições virulentas a Os Sertões, de Euclides da Cunha, por entender que seu apuro estético teria concorrido para estetizar a miséria da seca. Tendo visto de perto o que significa a devastação humana gerada pela seca, repele indignado as formas de representação ideológica que, ainda hoje, servem objetivamente à manutenção desse estado de coisas no Nordeste. Compreende-se, assim, as duras palavras que desfecha contra Os Sertões:
“O livro de Euclides da Cunha é uma boniteza genial porém uma falsificação hedionda. Repugnante. Mas parece que nós brasileiros preferimos nos orgulhar duma literatura linda a largar da literatura duma vez pra encetarmos o nosso trabalho de homens. Euclides da Cunha transformou em brilho de frase sonora e imagens chiques o que é cegueira insuportável deste solão; transformou em heroísmo o que é miséria pura, em epopéia... Não se trata de heroísmo não. Se trata de miséria, de miséria mesquinha, insuportável, medonha. Deus me livre de negar resistência a este nordestino resistente. Mas chamar isso de heroísmo é desconhecer um simples fenômeno de adaptação. Os mais fortes vão-se embora”
.
Será de fato possível qualificar passagens como estas, e tantas outras que pontuam a narrativa do diário de viagens de Mário de Andrade, como próprias a um “turista descritivo”, ou ainda como típicas de um observador derrotista dos problemas básicos da sociedade brasileira? Um dos grandes méritos do nacionalismo cultural praticado por Mário de Andrade – seja como artista, seja como intelectual militante – consiste no modo inventivamente crítico como soube combinar a tradição e a modernidade, a lição das correntes estéticas internacionais e os traços específicos da cultura e da sociedade brasileira. É isso, em síntese, o que o distingue como um nacionalista renovador. Os conservadores, em contrapartida, têm aversão incontida às forças da modernidade. Celebram esteticamente a tradição brandindo idéias em princípio louváveis, como a integridade da identidade cultural brasileira, concorrendo de modo objetivo na esfera ideológica para legitimar as formas tradicionais de dominação que se nutrem do nosso atraso e da miséria tão belamente emoldurada nas páginas da revista Bravo!.
A afinidade ou mesmo a aliança substancial observável entre as formas tradicionais de dominação e esses nacionalistas conservadores é exemplificada pelo próprio Ariano Suassuna, que se tem servido do exercício de um cargo público, o de Secretário de Cultura do Estado, para conceber e executar um projeto que é uma expressão do seu projeto pessoal de cultura, não dos distintos grupos sociais identificados com interesses, aspirações e representações coletivas irredutíveis a um projeto unilinear e excludente como é o dele. Essa questão, que me parece de interesse político fundamental no terreno da cultura, é entretanto obscurecida ou simplificada no artigo de Paulo Carneiro.
Outro fato que me parece sugerir o estreitamento do nosso debate ideológico transparece no louvor que se presta a Ariano Suassuna por se distinguir, no clima de conformismo dominante, como um suposto socialista empenhado na resistência à dominação cultural imposta pelo capitalismo na era da cultura globalizada. Não nego que seja um opositor irredutível do capitalismo e da expressão de modernidade que este hoje triunfantemente impõe. Mas o que propõe ele, ou o que sonha ele, senão uma utopia regressiva que delirantemente associasse a preservação de uma cultura mitológica do sertanejo a formas de organização social enraizadas nas tradições rurais? Em suma, uma manifestação delirante de socialismo primitivo.
Concluindo, o anticapitalismo representado esteticamente na obra de Ariano Suassuna é um anticapitalismo de natureza regressiva. Noutras palavras, nega de costas para o presente. Ou ainda, traduzindo de outro modo, desta vez citando palavras de inspiração legitimamente crítica estampadas numa das páginas da revista, “de frente para o passado”.

Nota: Não cabe numa nota sumária esclarecer devida e factualmente alguns processos correntes de censura ou silenciamento de textos incômodos, sobretudo quando o autor, como é o meu caso, é praticamente um anônimo. Esclareço apenas que este artigo me foi encomendado por Reinaldo Azevedo, então editor da Bravo! Foi solicitado sob a condição de ele, R. Azevedo, publicar uma réplica. Aceitei prontamente a proposta, pois meu propósito é discutir ideias. Ele nunca respondeu, sequer acusou recepção do artigo. Assim, esta nota explica um pouco melhor os dois comentários abaixo postados: o de César Melo e o meu.

Recife, 20 de maio de 1998

2 comentários:

  1. É importante observar que esse artigo não foi publicado porque não agradou o senhor Reinaldo Azevedo, na época editor da Bravo!, e hoje polemista neoconservador brasileiro, e defensor ferrenho da economia de mercado. Veja só como são as coisas!

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  2. César: Muito grato pelo adendo que diz muito da leviandade ideológica corrente no nosso tempo. Tudo o que poderia acrescentar à sua nota seria dizer que disponho das evidências que atestam sua pitada de crítica certeira.
    Fernando.

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