domingo, 6 de dezembro de 2009

Flávio Brayner -como uma canção de Jobim


Paulo Francis declarou certa vez que estamos ligados aos amigos verdadeiros pelos vínculos inapreensíveis da experiência geracional compartilhada. Noutras palavras, a amizade compreendida no seu sentido mais profundo seria inconcebível abstraída de um solo geracional comum. Penso que isso é discutível por anular uma noção de universalidade expressa na linha do tempo e do espaço que acredito verdadeira. Mas me parece inegável que sua afirmação contém muitos grãos de verdade. Amigos da mesma geração comungam uma unidade de sentido que é fruto de experiências sociais irrepetíveis e incomunicáveis a gente de outra geração, portanto singularmente associadas a determinadas circunstâncias infranqueáveis a quem viva antes ou depois delas. Pessoas pertencentes a uma geração distinta podem apreender o sentido dessas experiências, mas a apreensão será sempre de segundo grau, sempre mediada pela imaginação. Mesmo a imaginação empática, tão pouco comum, pode recriar o sentido do vivido, não a vivência. A vivência é privilégio ou desgraça exclusiva de quem viveu, não de quem pensa ou recria imaginariamente o vivido.

Vou falar de uma amizade perdida e no entanto presente na memória que no caso se traduz antes de tudo em memória musical. Se pudesse reduzir essa memória a elementos sensíveis constantes, minha descrição seria simples: dois amigos à volta de um piano, um tocando e outro cantando. O quadro se completa com alguma canção de Jobim, sempre Jobim, por vezes Chico Buarque, e bebida, cerveja e uísque ou vinho. Mas o solo profundo dessa amizade perdida, como acima sugeri, é incomunicável. Ele se enraíza na singularidade de situações próprias às pessoas que conviveram no contexto cultural típico de Recife e Olinda nas décadas de 1970 e 1980. Daí vieram desdobramentos musicais no cerne dos quais a música de Jobim se impõe soberana.

Flávio Brayner aprimorou seu toque de pianeiro durante os anos que viveu na França. O termo pianeiro, friso, nada encerra de pejorativo. Emprego-o com o propósito de sugerir que Brayner é um amador da música. Corrompido infelizmente pelo processo de mercantilização universal do amor, o termo amador hoje se reveste de sentidos depreciativos. Amador é agora oposto a profissional. Por extensão, o amador é aquele privado da competência ou qualificação do profissional, até porque não exerce seu ofício por dinheiro ou interesse, circunstâncias que adicionalmente o depreciam num mundo regido pela ideologia do mercado. Assim, foi sempre como amadores da música e da celebração da amizade e do convívio humano expresso em gratuidade e prazer que tocamos, bebemos e cantamos através de noites insones num país sem mapa ou exclusivismo de qualquer natureza. Sem nenhum ranço elitista, o que nessa atmosfera espontaneamente se manifestava era certa distinção de classe, traduzida no repertório ou gosto musical, hoje inconcebível nos círculos sociais que freqüentamos, o que nesse sentido justifica a observação de Paulo Francis relativa ao vínculo necessário entre amizade e unidade geracional. Como cantar e de fato ouvir as sofisticadas harmonias jobinianas dentro do tumulto que agora dá a nota a qualquer reunião social?

Flávio Brayner se gastou e nos gastamos em farras não raro sem hora ou lugar definíveis. Certa madrugada, acolhidos por amigos portugueses num hotel em Tomar, tocamos e cantamos para celebrar a passagem de três noivas cuja beleza deslizava pelo salão deserto alongando-se na cauda impecavelmente branca dos vestidos de casamento. Era como se do bojo daquele mundo remoto irrompesse uma cena felliniana pontuada pelos acordes do piano de Brayner. Poderia desfiar aqui um novelo infinito de memórias musicais variando os tons e circunstâncias da que acabo de sumariamente evocar. Mas ficarei na recomposição de apenas uma outra memória. É a que para mim mais importa, a que mais zelosamente retenho no baú das amizades idas e dissipadas, algumas irreversíveis, por ser a que melhor sintetiza o sentido da amizade que através de muitos anos me prendeu a Flávio Brayner. Antes mesmo de aventurar-me a esboçá-la na memória que aqui improviso, rendo-me humildemente à incapacidade de a contento traduzi-la. Seu sentido último e primeiro é intransferivelmente musical. Logo, não há para ele correspondente exprimível em palavras.

Um dia nos reencontramos no seu apartamento em Paris. Antes disso bebemos durante horas pelas ruas da cidade mais bela que conheço, não há bem como fugir no caso ao lugar comum. Com um litro de uísque diante do piano aberto, tocamos e cantamos até o amanhecer para matar saudades do Brasil. Vinha não apenas das ruas de um mundo estrangeiro, mas sobretudo de dois anos de absoluta ausência do Brasil, absoluta ausência da mais elevada expressão musical brasileira na companhia de brasileiros. Mais precisamente: da companhia do brasileiro com quem realizei um sentido de amizade intraduzível em palavra e gesto, em comunidade de confidência ou ofício.

Introvertido impenitente, Flávio Brayner pouco de si falava, salvo no que me dizia através da música de Jobim e Chico, nossa dupla suprema. Depois de mais de 30 anos de amizade, é espantoso considerar que nunca nos derramamos em conversas acaso comparáveis à magia da música através da qual sempre nos comunicamos e nos compreendemos e como amigos nos comovemos e sem palavras nos perdoamos o desleixo e o excesso tão freqüentes nos modos brasileiros da amizade. Foi no decorrer dessa madrugada que mais me senti amigo de Flávio Brayner, que, longe do Brasil, mais profundamente o senti revivendo em solo estranho, na inefável comunidade dialógica da amizade puramente musical, o que de mais alto e humano este país produziu. Cantamos Jobim e Chico, Lupiscínio e Caymmi, Noel e Pixinquinha, Edu Lobo e Antonio Maria, os frevos pernambucanos, a bossa e a fossa, tudo que é coisa nossa.

Quando enfim abrimos as altas janelas do apartamento, apercebi-me maravilhado de que a aurora já recobria os céus de Paris, seus telhados e boulevards. James Joyce celebra e recria na sua literatura os estados de epifania somente concebíveis através da experiência estética. Há outros modos de epifania, claro, mas o que para mim importa é o estético. Meu reencontro em Paris com Flávio Brayner foi um momento miraculoso, um momento de pura epifania que viverá em mim enquanto memória e enquanto sobreviva eu na matéria falível que sou.
Fernando da Mota Lima
Recife, 3 de dezembro de 2009.

7 comentários:

  1. Nandinho, que bonito!

    Porém, podia saltar Paulo Francis e raciocínios sobre se as velhas amizades é que contam mais. Acho que no caso interessa um papo de coração a coração.

    Podia começar na sala de Brayner, concluindo que quando escolhemos um introvertido para amizade íntima é por que queremos também, enaltecer a nossa dimensão introvertida. Jung diz que a dimensão introvertida anseia para num dia dar um grito de uma verdade tão grande, que ela tem que ser calada. Pois a verdade é uma das formas mais requintadas de destruir o Outro amigo. A verdade tem mil maneiras de ser dita, você e Brayner escolherem espadas sublimes das estocadas da poesis musical. E qual melhor árbitro do que Jobim? E que sutilezas um não disse ao outro nestes 30 anos? Com glisandos, sustenidos, muitos desafinados e foras de tom. E o outro trazendo a baila uma outra música pra afinar mais ainda a amizade musical. Que sutilezas! Apesar de que com tantas garrafas pra xilofone, não sei se era assim tão sublime...

    Acho que a amizade de vocês dois não foi feita pra troca de cartas sobre o insolúvel tema filosófico da verdade. Vocês dois são melhor versados pra verdades, mentiras, blefes e embustes musicais. Voltem ao velho curso do rio da música e acabem com nossa seca de pianadas. Estamos no Natal e merecemos uns pastoris pra enfrentarmos o novo ano com Dilma candidata a presidente...

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  2. Dirceu:
    Que bom ler seu comentário no meu blog. Vovó Quininha está aqui a meu lado, por pouco segurando as lágrimas. Você sabe, ela veio lá das profundas do nosso patriarcalismo áspero, sempre de prontidão para suprimir as emoções mais tocantes. Vovó Quininha veio dos mundos de Graciliano Ramos, Dirceu. Sempre pensei que ela precisava um tanto do sopro da beleza que transpirava dos nossos encontros musicais com Flávio Brayner, também do seu irracionalismo expresso em teatro espontâneo e comédia. Você nota que não estou propriamente comentando seu comentário,mas apenas retendo as bordas de um fio de emoção e sentimento e amizade que percorria muitos dos nossos encontros pontuados pelos acordes do piano de Brayner. Verei você por aí...
    Fernando.

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  3. Dirceu:
    Vovó Quininha ama você.
    Fernando

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  4. Dirceu:
    Se você postar mais dois comentários desse nível (melhor, dois contos, como diz você)impedirei seu acesso a esta página. A cultura é competitiva, sei, apesar do forte ranço de cordialidade que franqueia a infiltração do fura-fila, do corrupto, do investidor sem risco e outras mazelas brasileiras. Mas abrir a porta para o ladrão entrar e lotear meus bens, bem, aí seria repetir meu pai, que, falido, pagou aos credores com o pouco que lhe restava para refazer a vida e sustentar a família e assim acabou chutando lata pelas ruas do Recife. Explicando melhor: não mais permitirei que você publique seus contos no meu blog. Sério: Dirceu. Seu conto,que vou ainda chamar de comentário, merece um espaço mais visível e autônomo. Não gaste tanto de sua imaginação ilustrando minha página de comentário. Por coincidência, tinha lido alguns minutos antes a coluna de Luiz Felipe Pondé. Confira as afinidades entre seu comentário e o que ele hoje escreveu. Enviarei o texto para você logo em seguida. Vovó Quininha, sempre clarividente, resmunga na cadeira de balanço que você tem ainda pela frente o futuro que já desperdiçou. No mais, repetindo você, amor com arte é pra sempre. Dito e escrito.
    Fernando.

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  5. Vovó Quininha me ama também?

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  6. Acho que não entro na roda dos amores...Deve ser por causa dos meus dogs!

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  7. Cynthia e Anônimo (a?):
    Vovó Quininha, soprando uma pétala de flor que caiu sobre sua cabecinha de neve, responde que também ama você.
    Quanto a Anônimo, minha intuição escreveria Anônima, acho que sei quem é, embora seja uma aposta difícil já que todas as minhas amigas decidiram, com certa razão, trocar o amor aos homens pelo amor aos cachorros. au, au, au...
    Fernando.

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