sábado, 19 de dezembro de 2009

Silke Weber - A Queda


After the Fall
ou
Uma queda e algumas (di)versões

Silke (recolhendo, ou ocultando?, algumas provas do crime) - Quando dei por mim, Heraldo, Adriana, Jorge e Pope estavam como que miraculosamente suspensos no ar da varanda. Como se levitassem. Se eu me encontrava caída? Claro que não. Isso não passa de conversa de desafeto. Ou da oposição, se você prefere entender esse estranho episódio em linguagem política. Já lhe disse que não caí. Apenas escolhi ver o mundo de uma perspectiva inusitada. Alguma conexão entre a queda do muro de Berlim e a queda da cadeira? Mas que absurdo! O muro não caiu. Eles desceram. Do muro, claro. Se eu recomendaria uma poltrona Dolfin? De modo nenhum. Nem na varanda de um anfitrião insuspeito.

Pope (saindo do consultório do ginecologista) - Mas é claro que ele anda muito mudado. Como não, gente? Afinal, sem querer dar uma de esposa indiscreta, ele vinha tentando há mais de dez anos. Passado o susto e o alívio de não mais precisar repetir aquela frase sombria de Machado de Assis, que com certeza tentou mais do que o meu marido e sempre em vão, como atesta a história literária, ele logo cedeu a outros temores absurdos. De que tipo? Temor de o nosso futuro filho aprender a cantar como João Gilberto, ou ser uma filha paquita como a Xuxa, ou transformar-se num ator de teatro lépido e fagueiro. Espera aí: o que isso tem a ver com o serrote e a queda da Secretária de Educação? Se vi meu marido escondendo um serrote? Claro que não. Na verdade, ele falou, sim, algo parecido. Mas não sei se disse serrote ou Seurat. Por que Seurat? Ele estava folheando um livro sobre pintura impressionista. Por que serrote ou Seurat? Por que serrar?

Heraldo (envernizando uma cadeira de três pernas) - Quem disse que empurrei a cadeira onde a Secretária estava sentada? O gravador está desligado? Nesse caso vou falar a verdade: não empurrei, mas bem que gostaria de. Por quê? Porque talvez fosse esse o único meio de afastá-la da disputa sucessória. Meus motivos? Puramente egoístas. Sinto falta das piadas nos corredores da pós-graduação, das nossas pequenas disputas acadêmicas, dos chopes no fim do expediente. Não sabe que importância têm essas coisas banais? Também não sei muito bem. Acho que é porque uma grande amizade, resistente aos anos, rotinas e toda a sorte de divisão, é como um casamento sem sexo, comunhão de bens e sucessão de propriedade. Como há muito concluí que não valeria trocar meu cavalo (quero dizer, minha amiga) pela manutenção do meu reino, não hesitaria em empurrar a cadeira. Contanto que se fosse apenas a da sucessão, não a da minha amiga. É. Alguém disse, sim, alguma coisa sobre reino e cavalo. My kingdom for a horse, acho. Mas naquele tempo não existia ainda poltrona Dolfin. Apenas execução sumária nas disputas pela sucessão política. Também lamento. Era um método mais eficaz e suscitava versões menos fantasiosas do que essas inspiradas pela queda da Secretária do alto de uma reles cadeira.

Adriana (levantando-se da cadeira, que tinha quatro sólidas pernas e não era Dolfin) - Não, não vi nada. Quero dizer, quando vi, a Secretária estava já na horizontal. Como se levantou? Tão imperturbável quanto Heraldo diante de uma heraldete reprovada ou Thomas More diante do homem que lhe cortou a cabeça. Não vi nada disso. Acho que tanto um quanto o outro seria capaz de serrar a cadeira. Não, Moacir estava ouvindo Miles Davis. Era Jorge quem folheava o livro sobre pintura impressionista. Concordo que ele é muito impressionável, mas é preciso muita imaginação para transformar Seurat num serrote. Talvez a Secretária pense algo bem diferente, admito. Especialmente se a cadeira foi de fato serrada. Se eu empurraria a cadeira? Meu Deus, nem Heraldo chegaria a tanto.

Moacir Miles Angels (de costas para o interrogante como Miles Davis soprava o trompete de costas para a platéia) - Se a Secretária estava sóbria? Não posso garantir. Até porque não aposto em Lei Seca numa roda onde houver músico de jazz, político e intelectual, acadêmico ou não. O que vi? Mas eu não vi nada. Aliás, não costumo ver nada. Meu negócio é ouvir: jazz, Miles Davis, João Gilberto, Billie Holiday, Chet Baker. Quando estou desocupado? Ouço jazz. Ah, esqueci de dizer que vejo filmes. A queda? Que queda? Não me lembro sequer de cadeiras na varanda.

Jorge (dissimulando um objeto suspeito) - Eu estava serrando as páginas de um livro de arte. Quero dizer, estava folheando um livro de arte. Lembro, sim, que depois da décima lata de cerveja chamei a atenção de Pope para a foto de uma obra de Seurat e disse: É Seurat. Não, não me lembro se a Secretária caiu antes ou depois da invocação deste nome. Se tenho um serrote em casa? Claro que tenho. Se tanta gente tem revólver, cachorro, dólar e até fuzil em casa, por que não posso ter um serrote? Ah, é um instrumento de mil utilidades. Serve para serrar pão, antigas edições de livros com páginas lacradas, imagens de Cidadão Kane e cd de João Gilberto. Uma vez pensei em serrar o corpo de Pope. Mas foi só uma vez. Quando vi Janela Indiscreta. Mas nesse tempo eu era de fato muito impressionável. Hoje eu serraria a janela e ficaria com Grace Kelly. Quero dizer, ficaria com Pope. A cadeira da Secretária? Desculpa, eu tinha esquecido. Não, não serrei. Vai ver que foi Seurat.

Nona (removendo livros de economia da estante sólida como uma cadeira Dolfin) - Ele mudou muito. Acho que tudo começou no dia em que fez uma palestra no Mispe sobre jazz e cadeira elétrica. Perdão, eu quis dizer jazz e cinema. É verdade. Ele alcançou num dia a fama que Keynes, Delfim Netto e outros economistas lépidos e fagueiros não alcançaram depois de anos produzindo na área da ciência econômica. Ficou tão convencido que até comprou uma caneta de ouro para assinar autógrafo depois da segunda palestra. Hoje não faz mais nem orçamento doméstico. Somente pra provar que não é mais economista. Serrote? Não. Anda falando em comprar trompete, saxofone, clarineta. Falou até em comprar uma tuba. Mas serrote não. O que ele iria fazer com um serrote num conjunto de jazz? Serrar a cadeira da Secretária? Melhor serrar a de Fernando Henrique Cardoso.

O anfitrião (bocejando na manhã seguinte) - Mas como? Eu nem estava em casa.
Epílogo
A Rainha destronada - Quando me vi sobre o chão, tão nula e nua de poder quanto quando nasci, medi-me pelo metro da poeira que daqui de baixo nos espreita e afinal compreendi o que significa dizer: vaidade, tudo é vaidade.Mas de que me valeu essa lição tardia, se dentro de alguns minutos minha cabeça rolará para fora do meu corpo? Tudo como antigamente, como nos tempos em que havia reis e sucessão real. Muito, muito antes de inventarem a poltrona Dolfin. Já que vão mesmo me decapitar, por que afinal não me revelam que força me destronou?

Fernando da Mota Lima. - Recife, 12 novembro 1995.

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