quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Desarraigamento


Prossigo relendo espaçadamente o excelente livro de Lewis Coser sobre os mestres do pensamento sociológico. O capítulo dedicado à sociologia de Georg Simmel sugeriu-me algumas reflexões sobre o estranho e o marginal dentro da sociedade ou sobre os grupos restritos com os quais se relacionam. Vou selecionar para próxima leitura os ensaios que Simmel dedica ao assunto e Kurt Wolff agrega ao volume The Sociology of Georg Simmel.

Sempre me senti seduzido pelo estranho, o marginal, o desajustado. Não me refiro porém a estes personagens no sentido em que expressam um estilo de vida, muito menos um grupo controlado e com frequência punido pela polícia. É verdade que na minha juventude vivi a marginalidade como um estilo de vida, sobretudo nos tempos de dissipação olindense. No caso, o estilo se combinava com uma situação de marginalidade social efetiva, pois saíra da família sem lograr definir um lugar institucional no qual minha individualidade se acomodasse. Além disso, vivi durante muito tempo pulando de emprego, notadamente às voltas com a insegurança gerada pelo desemprego e a renda instável e magra.

Tornei-me desarraigado por circunstância biográfica e também por opção. A circunstância biográfica decerto mais remota liga-se ao fato de que tive pais inconciliáveis não só entre si, também inconciliáveis com a ordem cultural em que me formei. Se a norma era o homem dominador e a mulher dócil ao comando do marido e humildemente reclusa na esfera doméstica, tive em contraste uma mãe dominadora cujo descontentamento em face do meio a impelia a desafiar as normas correntes. Quanto a meu pai, este era dócil, submisso ao temperamento violento e dominador de minha mãe. Cresci privado de qualquer contato físico com minha mãe, temendo-a ao mesmo tempo em que recebia todos os afetos do meu pai isentos de temor ou mesmo autoridade.

Como isto é um diário, não um livro de memórias, evito demorar-me na reconstituição de minha infância, mesmo nos aspectos restritos à influência direta dos meus pais. O que em resumo anoto é que suas vidas desavindas, e desde o princípio inconciliáveis, afetaram de modo traumático minha infância e adolescência. Depois de infidelidades sucessivas, algumas escandalosas, minha mãe saiu em fuga para São Paulo na companhia do amante, um reles balconista da casa comercial de minha tia. A família entrou em desmantelo e seu presumível comandante, já de si humilhado e sem energia, rendeu-se vergonhosamente ao léu da sorte. Como certo dia me disse sem nenhuma culpa aparente, apenas resignação, “criei meus filhos como Deus criou batata”.

Se não fui vencedor, fui com certeza um trânsfuga, um traidor voluntário do meu pai: recusei-me discreta e seguidamente o destino de batata. É aí que entra o desarraigamento como opção. Recusei a família como legado ou pena que me impusesse pela vida afora. Sei que fiz muito no sentido de ajudar os mais errados e confusos que eu, sobretudo meu irmão mais próximo. Por um tempo, tocado pelo ideário humanista absorvido em leituras silenciosas e difíceis, além da experiência vivida à distância da família quando voluntariamente fui estudar num internato em Palmares, empenhei-me com as mais iludidas intenções na reforma da minha família retalhada por toda sorte de problema imaginável. Um dia dei-me conta de que tudo aquilo era insolúvel e de que era justificável o egoísmo que insistentemente me soprava ao ouvido relutante: se você não pode salvá-los, tente ao menos salvar a si próprio. Foi quando saí de casa, com dificuldades imensas, resistindo ao cerco das pressões morais e chantagens sentimentais de parentes desamparados, e caí na vida.

Errei durante anos inseguros movendo-me através de uma sucessão de endereços sempre provisórios, sem emprego durável ou renda previsível. Errei de cidade e sobretudo errei de corpo em corpo agitado por fantasias promíscuas longamente procrastinadas na adolescência mais temerosa. O desejo insaciável de mulher, errante de corpo em corpo, era decerto um sintoma de carência do amor que me faltou na infância e na adolescência, assim como uma objetivação das minhas fantasias de adolescente tímido e reprimido. O auge desta fase foi meu tempo de residência à deriva e vida boêmia em Olinda, Recife, Natal e São Paulo. Ao cabo, apalpei-me exausto, física e moralmente exausto, vendo à frente o desenho de uma paisagem sombria feita de esterilidade afetiva e lenta descida autodestrutiva. Fui salvo por um concurso para professor da UFPE, Depto. de Ciências Sociais, quando afundara em estado crônico de desemprego. Classificado por um triz, pela primeira vez na vida, já por volta dos 33 anos, me vi detentor afortunado de um emprego estável iluminado pela perspectiva de imprimir sentido e força construtiva à minha função docente.

O emprego estável concorreu de modo decisivo para que eu organizasse minha vida, antes de tudo acomodando meus livros, meus ideais praticáveis e minhas rotinas mais prazerosas dentro de uma ordem material equilibrada. Zombo às vezes dos idiotas conformistas que se danam a deitar em ouvidos descuidados frases do tipo: o dinheiro não traz felicidade. É verdade que o dinheiro não é garantia de felicidade, estou dizendo algo um tanto diferente da frase difundida pelo idiota conformista, nem compra tudo. Somente os que nunca tiveram dinheiro incorrem na tolice de presumir que ele compra tudo. Ficando porém no essencial, o dinheiro nem é garantia de felicidade nem compra tudo. Daí a sustentar que não traz felicidade é passar de uma consideração realista para outra completamente idiota – e conformista, como antes assinalei.

Quanto a meu desarraigamento por opção, diria que cheguei aos 55 anos sem negociar minha liberdade e minha solidão voluntária tentado pela segurança de uma família que me garantiria confortos e privilégios que não tenho nem me fazem falta. Sou um indivíduo, no sentido em que o termo goza de vigência em sociedades liberais como a inglesa e a norte-americana. Melhor dizendo: luto todos os dias para defender essa forma precária de liberdade, tão difícil de se materializar nos labirintos de uma sociedade que mescla de forma inextricável e desnorteante a norma liberal e a ordem hierárquica, a igualdade abstrata no reino do mercado e a reiteração deslizante da cordialidade regida pelo império da ação afetiva.

Não alcancei nenhum sucesso que de resto não me propus como meta social. Por outro lado, tenho consciência de que vivo muito aquém dos meus talentos e potencialidades que, sem falsa humildade, estão bem acima da média corrente no meio em que vivo. O que importa é o fato de que nenhuma mágoa de ressentido me tira o sono ou me rebaixa à tentação de invejar tipos medíocres e desonestos agraciados por um prestígio social que nunca me concederam. Deve ser triste a frustração dos talentos ressentidos, mesmo quando indiscutível a legitimidade da mágoa medida entre a ambição e o resultado efetivamente atingido.

O que quero é viver uma vida razoável e isenta de conciliações iníquas. Reiterando os limites modestos das minhas ambições, o que mais quero e tenho realizado é viver em paz comigo iluminado pela convicção serena de que comigo carrego um estoque de memória e beleza inegociáveis. No mais, gosto de dormir e acordar sossegadamente, sem no deserto da madrugada pular da cama assaltado por pesadelos que me denunciem a medida humana menor que o tolerável. Enfim, faço de mim em mim o elogio do desarraigamento autenticador de minha liberdade e autonomia possíveis quando não passo daquilo que na minha juventude meus companheiros supostamente radicais ou revolucionários qualificavam em tom desprezível como ideal de vida pequeno burguês. O irônico é que quase todos se amesquinharam nesse ideal desprezível.
Diário – Recife, 03 de agosto de 2004.

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